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Quem Conta um Conto...

“Era uma vez...”. Para muitos, essas são palavras mágicas, que soam como um passaporte para um reino onde a imaginação é a regra. É dessa forma, com ouvidos atentos e muita criatividade, que começamos a ter o primeiro contato com a literatura. Quem nunca se rendeu a uma fábula ouvida ao colo ou ao travesseiro? E, por trás dessa emoção, existe um componente importante produzido pela literatura oral ou pela literatura “falada”. Pois, além de estimular o imaginário, divertir e entreter as gerações, ela consegue conduzir o indivíduo de ouvinte a leitor. “O momento em que atravessamos de tempo escasso e outros entraves não favorece a leitura, uma atividade que, em nossa sociedade, é tradicionalmente solitária, e demanda no mínimo tempo e concentração”, analisa a pesquisadora e professora de literatura da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Susana Ventura. “Por tudo isso, são extremamente importantes as iniciativas que ‘tiram a literatura do papel’, tornando-a um momento lúdico, partilhado e coletivo, cujo objetivo está em aproximar potenciais leitores das obras literárias.”

Na ponta da língua

Tirar a literatura do seu modo de fruição habitual, ou seja, apresentá-la como leitura dramática, leitura em voz alta, roda de leitura, adaptação teatral de texto literário, pode conduzir o indivíduo a abrir os livros. Segundo a especialista Susana, um exemplo interessante disso é o romance Iracema, de José de Alencar. Lido simplesmente em voz alta, torna-se imediatamente compreendido e amado por leitores que não conseguem enfrentar sua leitura, considerando-a difícil ou aborrecida. “Muitas vezes, ouço coisas como: ‘Ah, com você lendo, Iracema fica tão legal, tão
bonito’. Eu naturalmente digo: ‘Você lendo também ficará muito bonito, vá para casa e leia. Em voz alta, silenciosamente, como quiser, mas leia’”, relata. Susana ainda considera autores que, pela maneira de expressão e pela linguagem empregada, são mais fáceis de trabalhar em voz alta. E a identificação das pessoas com as obras literárias é imediata. “Por exemplo, Jorge Amado é um mestre na maneira de fazer falar a nossa gente”, aponta ela. “Ainda outros, com forte ligação com o universo da oralidade, são de difícil compreensão à primeira leitura, mas quase imediatamente amados quando falados, como José Saramago ou Guimarães Rosa.”

Doses de história

O ser humano está  programado para a narrativa, e todos necessitam da dose diária de histórias. Alguns satisfazem essa necessidade vendo telenovela, outros lendo revistas sobre o que vai acontecer na telenovela. Ou seja, as pessoas querem saber o que vai acontecer e como aquilo será encenado, esperam sentir a emoção de saber como o vilão será desmascarado ou a mocinha encontrará por acaso um novo amor. Já outros buscam sua dose de narrativa nos noticiários – lidos, ouvidos pelo rádio ou vistos pela televisão, ou nos casos relatados por colegas de trabalho, por companheiros de ônibus e metrô.
Essa necessidade também é preenchida pela leitura e pelas atividades que partem da leitura de literatura. “Na roda de leitura ou na leitura dramática, observo que a maior parte do público desconhece o que vai ser narrado, e faz parte do jogo tanto o anseio por ouvir uma história inédita quanto ver como essa história é colocada em cena; por isso, todos os elementos cênicos contam”, diz Susana Ventura. A professora aponta ainda um fator importante para aproximar os leitores da escrita: “Acho que uma boa contação de história, uma roda de leitura bem conduzida, uma leitura dramática bem feita, uma leitura em voz alta com entonação correta e emoção dosada realizam a tão necessária mediação de leitura de que vejo tanta carência”.

Na boca do povo

Por que a literatura “falada” pode ser estimulante também para quem recebeu uma alfabetização funcional apenas? De acordo com o escritor e crítico literário Fábio Lucas, muitas pessoas nessas condições encontram, por exemplo, no cordel a literatura de entretenimento que se difundiu no país. “Esse tipo de literatura está nas feiras e em todos os recantos do Brasil, sendo alcançado pelas classes mais humildes que não têm poder de compra, nem para formação de letramento nas escolas”, explica o estudioso. Segundo ele, após os espetáculos as pessoas passam a gostar de decorar ou rever os poemas cantados. “E, por isso, o cordel também pode simular essa ponte entre literatura falada e escrita, porque está à disposição do grande público que vai buscá-lo como recreação e passa a praticá-lo no dia a dia”, completa.
Aproximar o ouvinte da literatura escrita é algo também constatado nos saraus realizados na Casa das Rosas, localizada na Avenida Paulista. Através das atividades ou das apresentações de poesia – conforme prefere classificar o poeta e diretor da instituição, Frederico Barbosa, os presentes se integram e se comunicam. E mesmo quem não tem contato anterior com a poesia ou formação acadêmica se sente atraído pelas atividades. “Há o exemplo de uma senhora frequentadora da Casa das Rosas que passou a fazer poesia com mais de 80 anos”, lembra Frederico. Também professor de literatura brasileira e diretor da Poesis – Organização Social de Cultura, Barbosa afirma que na periferia é infindável o número de pessoas que passam a fazer poesia e a frequentar os saraus. “Elas acabam por se interessar pelos poemas, a escrevê-los e até a estudá-los”, informa. “Mas, além de quererem escrever, a poesia os estimula a pensar, processo ainda mais amplo e importante.”

Em voz alta

Foi-se o tempo em que ler em voz alta era sinônimo de falta de educação (conheça algumas manifestações da literatura oral no boxe Cantado em gerações). Mas ainda há professores que estimulam apenas a leitura em silêncio. Para alguns especialistas, essa receita passa certo preconceito, com base na ideia de que o aluno que lê em voz alta é pouco alfabetizado. “Essa metodologia vem da Idade Média, quando os teólogos diziam que não se podia ler a bíblia em voz alta, porque consideravam que a voz alta interpunha a voz de Deus”, teoriza Frederico. “Então até hoje se fala que ler em voz alta é grosseiro, não é educado, mas isso pode podar a criança em ter vontade de balbuciar as palavras, de brincar com elas, do prazer lúdico de expressá-las.”
Em contrapartida, se a leitura deveria ser feita em silêncio, a música esteve muito presente nos processos do ensino religioso. “Principalmente quando o ensino foi monopólio da Igreja Católica, na qual as canções eram indispensáveis nos ritos e nos cultos”, afirma Fábio Lucas. “As músicas eram feitas mediante as orações, como o canto gregoriano, para cantar os ritos da Semana Santa, da Quaresma, da Ressurreição, do Natal, conservados pela igreja até hoje.”

Arte de contar

Além de atrair leitores, a contação de histórias e outras formas de literatura falada têm servido historicamente para desenvolver a expressão oral. Por isso, na Biblioteca Hans Christian Andersen, situada no Tatuapé, estimula-se não só a leitura, mas a literatura contada ao público. Tanto que oferece um curso gratuito para “formar” contadores, que atrai dezenas de pessoas, como as 35 que o concluíram em dezembro. Durante a realização do aprendizado, são aplicados exercícios fonéticos para as pregas vocais, para o diafragma e há um trabalho de expressão corporal. “Os alunos aprendem que, para contar história, é preciso senti-la e falar como se a narrativa estivesse acontecendo com ele próprio”, revela a bibliotecária da Hans, Maria Aparecida Teles Gomes. “Os participantes não aprendem a contar a história, mas a representá-la de verdade. Portanto, a maior parte do curso é realizada na prática.”

É por causa da fantasia criada que muitos não perdem uma contação, sobretudo as crianças. E elas podem ser as mais beneficiadas com o entretenimento, assim considera a bibliotecária. “Quando se cresce a ouvir histórias, a pessoa terá mais vontade de ler no futuro do que aquela não habituada a ouvi-las. Isso faz parte de um processo automático no ser humano”, defende Maria Gomes.

Pequenos aprendizes

Embora a contação de histórias e os eventos de literatura falada não sejam especificamente destinados às crianças, o sucesso para esse público é inevitável. A companhia A Hora da História, por exemplo, já se faz conhecida em escolas e nas próprias unidades do Sesc, como a de Interlagos. Com a atual apresentação Sementes da África, o grupo composto das atrizes Camila Cassis e Natália Grisi, ambas formadas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) em Interpretação Teatral e em Contação de Histórias pelo Movimento Hora do Conto, leva aos “pequenos” quatro contos apresentados com o uso de recursos cênicos, interação e música ao vivo. “Fazemos uma viagem às nossas origens, redescobrindo a diversidade da nossa tradição e valorizando o povo e a cultura negra”, explica Camila.

A linguagem de cada trabalho, de acordo com ela, é simples, mas requer muito estudo. “Com poucos elementos e de uma forma lúdica, procuramos criar um universo fantástico para estimular o público a exercitar a imaginação e criatividade”, conta. As apresentações consistem na adaptação da linguagem escrita para a linguagem narrada. “O intuito é que a criança tenha interesse na história e procure um livro ou objeto de conteúdo escrito por curiosidade”, afirma a educadora.

Ao aproveitar a imaginação aflorada das crianças, a Hora da História faz a ponte entre o livro e a linguagem narrativa. Função que começa a se expandir em diversos lugares. “Quando começamos a contar história há dez anos não havia demanda como hoje”, lembra a atriz Camila. “Agora, os contadores de histórias estão cada vez mais abundantes – o que mostra o sucesso dessa arte.”

Condução da palavra

O desafio de apresentar a literatura oral e aproximar o ouvinte da literatura escrita está  no modo de fazê-lo. Os elementos cênicos são ingredientes importantes nesse processo – tanto para arrebatar as crianças quanto para envolver os adultos. “A maneira como o leitor apresenta o texto ao público faz com que a história ganhe vida ou não”, afirma o poeta Frederico Barbosa. Mas, para dirigir rodas de leitura, realizar contação de histórias ou leituras dramáticas, é preciso algum tipo de treinamento e técnica.
Embora a literatura falada tenha lugar garantido no imaginário dos diversos ouvintes, os especialistas fazem a ressalva de que não faz muito sentido escrever textos literários apenas para serem lidos em público. “Isto é, o jogo cênico não deve ser mais importante do que a literatura escrita”, adverte o poeta Frederico, considerando que tal prática tornaria superficial a produção. “Se baseada apenas no contexto cênico, a poesia pode ficar como a música do axé em que a letra já sugere a ação: ‘pule aqui, abaixe aqui’, carregada com o gestual”, explica. “Ela não pode ficar, portanto, simplesmente a reboque da apresentação cênica.”

Cantado em gerações

Especialistas indicam como a literatura oral se difundiu entre os povos

A contação de história está entre as práticas culturais mais antigas do homem. Foi de boca em boca, aliás, que muitos povos divulgaram suas lendas, mitos e aventuras por muitas gerações. De acordo com o poeta e professor de literatura brasileira Frederico Barbosa, a literatura nasce da oralidade. “A Ilíada e a Odisséia [poemas épicos da Grécia Antiga] eram decoradas pelos gregos e transmitidas oralmente aos demais”, lembra o especialista. Já a língua portuguesa começa nas cantigas trovadorescas, apresentadas por poetas ambulantes, os menestreis medievais, que passavam de castelo em castelo, e em feiras populares. “Tanto as cantigas quanto as novelas de cavalaria eram passadas de boca em boca durante séculos”, reforça Frederico.

Segundo o poeta, o rei de Castela, Afonso X (1221-1284), por exemplo, ordenava que fossem contadas as novelas de cavalaria, em episódios no almoço, como forma de exortar os cavaleiros a serem heróis. “A própria origem de literatura portuguesa, seja na poesia ou na prosa, também está ancorada na oralidade vinda das cantigas de festas, das novelas de cavalaria que serviam para reunir e divertir o povo”, sintetiza.

Para o escritor e crítico literário Fábio Lucas, o próprio cordel difundido no Brasil tem reminiscências medievais. “Quer pelo poder narrativo ou pela forma como o poder narrativo se transmite, com versos e estrofes de oito ou quatro versos que, repetidos, recompõem todo um cancioneiro que veio da Idade Média para o Brasil com os portugueses”, explica o especialista. A literatura oral, segundo ele, antecede presumivelmente a literatura escrita. “Um dos diálogos de Platão [filósofo grego, 428-348 a.C.], aliás, narra a chegada da escrita, mas foi repugnada por um rei egípcio”, diz Fábio. “É presumível que nas epopeias de Homero os cantos e expressões tenham sido conservados oralmente pelos sacerdotes e por pessoas de pequenas comunidades.”

Som das palavras

Unidades do Sesc São Paulo descortinam o prazer entre a literatura escrita e a literatura falada

Lida ou falada, a literatura está cada vez mais próxima. Pelo menos para os frequentadores do Sesc São Paulo, já que a instituição tem oferecido um espaço singular para aqueles que pretendem conhecer uma boa história em unidades espalhadas tanto na capital quanto no interior.

Os projetos são muitos e os títulos falam por si só: “Diálogos Sonoros”, “Contos Brasileiros”, “Rodas de Leitura”, “Ópera Literária”, e outros que misturam desde a literatura infantil até a leitura dramática. De acordo com o assistente da Gerência de Ação Cultural do Sesc, Francis Manzoni, a instituição compreende que parte indispensável da experiência humana está na literatura oral e escrita. Do mesmo modo é sensível às novas tecnologias que guardam outras experiências. “Durante muito tempo os livros foram inacessíveis à maior parte das pessoas e esse cenário coloca a oralidade em destaque na transmissão da cultura dos livros”, comenta. “Por isso, para estimular o gosto pelas narrativas e pelas obras literárias, o Sesc realiza várias atividades destinadas às crianças e aos adultos.”

Com as “Rodas de Leitura”, por exemplo, o Sesc Pinheiros apresenta em janeiro um novo modelo ao inserir a literatura por meio de brincadeiras. Outros projetos, como o realizado em novembro na Mostra Sesc de Artes 2010, trouxeram às unidades de Interlagos e Pompeia o grupo português Social Smokers, praticante do poetryslam, numa performance de leitura poética e musical. Outra experimentação da Mostra foi a performance Sybabelia, com André Vallias e Lica Cecato, composta por imagens, sons e transcriações de poetas como a japonesa Ono No Komachi e Haroldo de Campos.

ABC das letras

Para o público infantil, um dos atrativos é o “De quem é essa história?”, realizado no Sesc Araraquara. Criado em 2007 e apoiado pela Secretaria Municipal da Educação de Araraquara, busca fortalecer de forma lúdica e instrutiva os laços existentes entre as crianças e a literatura brasileira e mundial através de histórias narradas por profissionais. O projeto já explorou o vasto repertório dos contos de fadas adaptados de clássicos europeus, percorreu a cultura popular brasileira ao homenagear Monteiro Lobato e sua obra, abordou a produção literária do Brasil durante a década de 1980 e ainda na edição de 2010 flertou com os títulos infantis lançados por autores como Tatiana Belinky, Leo Cunha, Heloisa Prieto, Flávio de Souza e Daniel Munduruku.

Além da gama de atividades, há também o Programa BiblioSesc, pelo qual dois caminhões de livros em forma de biblioteca volante (foto) emprestam títulos e periódicos em onze bairros de São Paulo, nas regiões de Interlagos e Itaquera. “Como a literatura nem sempre pode ser traduzida como espetáculo e a leitura é quase sempre um hábito, trabalhamos permanentemente com projetos que visam formar novos leitores e estimular quem já gosta de ler e quer se aprofundar”, informa Manzoni. “Assim, experimentamos conexões entre tecnologias, literatura e outras linguagens artísticas”.

Saiba mais:
 Sarau (do latim seranus): evento cultural ou musical utilizado para as pessoas se expressarem por meio da dança, da poesia, leitura de livros, pintura e teatro.
Cantigas de roda ou cirandas: brincadeiras, geralmente infantis, pelas quais as pessoas
de mãos dadas cantam as melodias folclóricas.
Canto gregoriano: gênero de música vocal caracterizada pela repetição da voz acompanhada pelo órgão musical na liturgia católica romana.
Cordel: tipo de poema popular, originalmente oral, cujo nome surgiu em Portugal.
Folclore: gênero de cultura popular – constituída por costumes e tradições – transmitida através das lendas, provérbios, canções e brincadeiras.