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Experiências e buscas

por Jacó Guinsburg

Jacó Guinsburg nasceu na Bessarábia, em região que hoje pertence à República da Moldávia, e chegou ao Brasil aos 3 anos. É crítico de teatro, ensaísta, tradutor, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) e diretor-presidente da Editora Perspectiva, uma empresa que, indo sempre além dos interesses comerciais, publica livros sobre artes em geral, literatura, filosofia e linguística.

É autor de mais de 50 livros sobre teatro e literatura e subscreveu 12 traduções, entre as quais se inclui a de A República, de Platão. Recebeu o Prêmio de Mérito Intelectual do Congresso Judaico Latino-Americano, a Medalha Anchieta da Câmara Municipal de São Paulo e o Prêmio Shell de Teatro.

Outros detalhes sobre sua longa carreira profissional e sua trajetória pessoal são revelados nesta palestra, proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo no dia 12 de abril de 2012.

 

Para caracterizar o caminho que me levou ao trabalho em edição e ao estudo de teatro não poderia recorrer a um traçado linear. Embora eles tenham acabado por definir essa trajetória, trata-se apenas de definições produzidas pelo olhar retrospectivo. Ambos se ligam por certo ao meu interesse pela literatura e pelas artes, bem como pela filosofia e pela política, que surgiram bem cedo no horizonte de minhas preocupações, mas grande foi a volta que dei para chegar aonde cheguei. E, para me autocitar a esse propósito, “aconteceu o que aconteceu”.

Quer dizer, mais do que através das escolas que mal frequentei e dos diplomas que não obtive, o desenvolvimento e a objetivação desses caminhos talvez possam ser explicitados por seu próprio curso: uma sequência irregular e contraditória de experiências e buscas.

Sou filho de imigrantes. Mas não apenas isso: eu mesmo sou imigrante. Vim da Bessarábia para o Brasil com 3 anos de idade. Como tantos outros, meus pais fugiam de um mundo de discriminações sociais e dificuldades econômicas, e como tantos outros – cristãos, judeus e muçulmanos – aqui aportaram.

Foi pouco depois da Revolução de 1924. Olímpia e Santos, no estado de São Paulo, e o bairro do Bom Retiro, na capital, são etapas e nomes desse primeiro momento de minha vida no Brasil. Ao estourar a Revolução de 1930, estava no terceiro ano do Grupo Escolar Regente Feijó, na Avenida Tiradentes. Quando o presidente Washington Luís foi deposto passei o dia todo na rua, correndo com os bandos que haviam tomado conta da cidade, destruindo os escritórios dos políticos do velho PRP [Partido Republicano Paulista] e empastelando os jornais que os apoiavam.

Ao voltar para casa, a rua inteira me esperava. Meu pai, por acaso, me encontrou na Avenida Tiradentes. Apanhei pra valer. Mas a minha adesão à Aliança Liberal não cedeu, pois fui receber Getúlio Vargas dias depois na Estação Sorocabana, quando passou triunfalmente por São Paulo de lenço vermelho no pescoço...

Nos anos que se seguiram, levei vida de garoto pobre, no bairro da imigração – troças e campinhos de várzea, andanças pela cidade, vendo o que acontecia à minha volta e assistindo aos tumultos e agitações que precederam a Revolução de 1932: tiros, correrias, manifestações e depois soldados e civis marchando – o MMDC.

Meus pais, porém, queriam algo mais para mim. Apesar de sua difícil situação econômica, fui preparado para tentar a admissão ao Ginásio do Estado da capital. A competição era árdua. Entrei. O que parecia o início de um encaminhamento regular foi antes um desencaminhamento – ao menos quando encarado pelo prisma normal. Uma inquietação e uma instabilidade que só me deixariam quase ao fim da mocidade apoderaram-se de mim.

Como todo garoto judeu, aos 13 anos cumpri o rito religioso de ingresso na comunidade (bar-mitzvá), isto é, assumi as obrigações e os mandamentos da lei e os preceitos da ética dos pais. A diferença, no meu caso, é que na medida do possível eu os descumpria. Talvez a parte endemoninhada se devesse um pouco à inspiração de meu professor de religião, um trotskista fanático que ganhava a vida ensinando aos meninos aquilo que descria e que me passava a letra dos mandamentos em cinco minutos, ocupando o resto do tempo a criticar todos os seus fundamentos sobrenaturais. Não sei até que ponto ele teve influência sobre mim ou veio ao encontro de dúvidas e desgarramentos que não me permitiam ficar em lugar algum e muito menos em paz comigo mesmo. Data dessa época minha iniciação no hebraico.

Fui sucessivamente, nesses anos, ginasiano, jornaleiro, balconista, frequentador assíduo da Biblioteca Municipal da Rua 7 de Abril, entregador de encomendas da loja de meu pai, cortador de roupas, aprendiz de tecelão na Escola de Tecelagem da Rua Piratininga, operário têxtil em duas indústrias e aprendiz de mecânico no Liceu de Artes e Ofícios.

Excetuando-se a literatura e as aulas de história do professor Cesarino Júnior, durante minha permanência no Ginásio do Estado, nada mais me atraía no curso secundário. Ao mesmo tempo, eu não conseguia fixar-me em nenhuma das ocupações a que me dediquei, para desespero de meus pais.

Tentei a vida no Rio de Janeiro: pensão na Rua do Catete, emprego numa loja de couros da Rua Buenos Aires, mas eu não suportava o tipo de trabalho. Perdi o emprego e passei por situações dificílimas, até que meu pai veio em meu socorro.

Nesse período, tanto em São Paulo quanto no Rio, não deixava de me interessar por atividades políticas, que aguçavam meu gosto por leituras de história, ficção de fundo social e rudimentos de filosofia política. Participei, então, da formação do Clube Juvenilista, em São Paulo, um instrumento concebido por Adolfo Aizen, um dos principais introdutores da história em quadrinhos no Brasil, visando à difusão do “Suplemento Juvenil”. Tomei parte do movimento estudantil inspirado pela Aliança Nacional Libertadora, quando ouvi, pela primeira vez, Paulo Emílio Salles Gomes falar. Foi num comício na Praça do Patriarca, numa campanha de reivindicações estudantis. Via o integralismo crescer e tinha consciência da ameaça que esse movimento representava para mim, como judeu. Passei a participar de grupos que se lhe opunham ativamente.

Cadinho da esquerda

Quando estourou a Segunda Guerra Mundial eu tinha 18 anos. Era um jovem inquieto, relativamente politizado, com muitas leituras não sistematizadas, discutidor de rodinhas. A Livraria Elo, dos irmãos Del Picchia, na Rua Senador Feijó, próximo da catedral, era um dos lugares onde eu “deitava a minha falação”, mas onde eu principalmente ouvia os outros falarem. Frequentavam-na estudantes de direito que faziam oposição ao regime getulista, como Germinal Feijó, Arroubas Martins, assim como escritores e poetas, como Oswald de Andrade, Rossini Camargo Guarnieri, Domingos Carvalho da Silva, Osmar Pimentel, e ainda pesquisadores de música e folclore, como Rossini Tavares de Lima, e muitos outros. Foi lá que conheci Jean-Paul Monteil, então engenheiro têxtil recém-chegado da França e que exerceria importante papel em minha vida. Das quatro às seis da tarde, além de entrar em contato com novidades em matéria de livros, conversava-se e debatia-se sobre tudo e todos – particularmente sobre literatura, arte e política. Creio que foi esse um dos cadinhos da esquerda democrática. De uma coisa tenho certeza: era um dos quartéis-generais da grande demonstração dos acadêmicos de direito contra Getúlio Vargas, reprimida violentamente por Coriolano de Góis.

Minha presença quase diária nessa livraria não me impedia de envolver-me simultaneamente com as atividades sociais e políticas na comunidade judaica. Como decorrência do que acontecia no mundo e daquilo que começávamos a saber acerca dos crimes nazifascistas, passei a perceber cada vez mais minha relação não só com as lutas do povo brasileiro pela democracia e pela renovação da sociedade (coisa que vinha se entranhando em mim desde a adolescência) como também meu vínculo com os homens e mulheres (alguns deles meus parentes) que estavam sendo barbaramente chacinados no Reich alemão.

Tudo isso talvez tenha contribuído para aclarar algumas linhas de minha consciência histórica e de meu pensamento político, porém não definia minha vida particular. Eu não me achava, nem acreditava, na possibilidade de me encontrar algum dia em nenhuma das carreiras que àquela altura (na idade de 20 e poucos anos) meus amigos e companheiros da mesma faixa etária já estavam trilhando.

Por desencargo de consciência, muito mais para atender ao desejo de meus pais, com os quais continuava morando, acabei por prestar exame de madureza. Feliz ou infelizmente, fui aprovado. Portanto, 11 anos depois de ter ingressado numa escola secundária, obtive um diploma. Foi em 1944.

Não cogitei, entretanto, sequer por um momento, de aproveitar a oportunidade que se abria a fim de tomar um rumo mais regular de realização profissional através de um curso superior. Presidente do Departamento Juvenil do Centro Cultura e Progresso, participante do movimento político de esquerda, que então adquiria grande envergadura no país, voltava-me apenas para a política como militante e para a literatura como leitor inveterado. Aprofundei-me, então, no pensamento marxista, chegando a ser professor de grupos de interessados. Também começava a me dedicar à literatura e à história judaicas, proferindo palestras e dirigindo debates no mencionado centro, onde, por outro lado, não descurava dos temas universais. Eram essas ambas as faces, para mim, de uma mesma unidade dialética.

Por isso mesmo não constituiu para mim uma ideia de ruptura quando, numa das livrarias que frequentava além da Monteiro Lobato, Edgard P. Ortiz, na época funcionário da Livraria Lux, e eu tivemos uma iluminação. A de fundar uma editora, para a qual convidamos Carlos Ortiz, primo de Edgard.

Considero a formação da Editora Rampa, em 1947, um marco em minha evolução. Essa aventura de mocidade, desenvolvida sem nenhuma base material mais profunda, por simples espírito de busca intelectual e segundo premissas que tinham pouco a ver com o mercado editorial do país, resultou num fracasso do ponto de vista econômico, porém consistiu num sólido lucro pessoal, sob o ângulo do aprendizado e do disciplinamento.

Legado judeu

Em termos de programa de publicações, a Editora Rampa apresentou uma particularidade por consenso explícito de seus três integrantes. Como primeiro passo, ela pretendia divulgar o legado literário e poético do povo judeu. Tratava-se de um direcionamento que não surgia de um apego ou de uma curiosidade fossilizados no tradicionalismo, mas do interesse dos que compunham o grupo pelo que acontecia no mundo e de sua vontade de participar política, social e culturalmente de sua transformação. Queríamos contribuir, como traduzia nossa divisa – “Só se penetra no espírito de um povo através de sua literatura” –, para que o leitor brasileiro pudesse adentrar as ricas características coletivas de um agrupamento humano vilipendiado e martirizado no curso de milênios e que acabava de passar por uma tragédia sem par na história moderna.

Entretanto, cumpre reiterar que nosso projeto envolvia igualmente a edição de literatura brasileira, estando mesmo previsto, como primeiro lançamento, um romance de Paulo Dantas, então jovem ficcionista que frequentava a editora e nosso grupo. Quatro livros foram o saldo dessa iniciativa: Antologia Judaica, Joias do Conto Ídiche, A Mãe, de Sholem Asch, e Contos, de I. L. Peretz. Alcançaram repercussão mais que razoável, tendo suscitado comentários estimulantes, na imprensa, de Otto Maria Carpeaux, Osório César, Paulo Edmur de Souza Queiroz, Spectator (jornalista alemão expatriado, Ernesto Feder) e, em correspondência particular, a reação favorável de Tristão de Athayde e Carlos Drummond de Andrade.

Contudo, a empresa não pôde sobreviver à falta de recursos materiais, como também à pobreza de expedientes comerciais. Após algum tempo, tendo ficado sozinho na direção, coube-me a tarefa de liquidá-la. Não foi fácil: para resgatar as dívidas acumuladas, vendi livros de porta em porta, tendo o restante do estoque terminado nos saldos que Polano expunha nas calçadas da Pauliceia. Porém, não posso me queixar: tive companheiros ilustres nesses pontos de venda – para citar só um, as magníficas edições da Ipê.

No contexto da Editora Rampa, minha função inicial e específica era organizar e traduzir o material de nossos projetos, o que fiz juntamente com Carlos Ortiz e, em grande parte, sob sua orientação. Perguntar-se-á como e de que maneira poderia eu, um mal-ajambrado autodidata, verter do ídiche, alemão, inglês, francês e espanhol? Bem, ídiche eu conhecia por ser a língua de meus pais e nela fora iniciado, tendo lido numerosos livros nesse idioma. O alemão eu chegava a decifrar por causa do ídiche. Inglês e francês, afora os rudimentos obtidos na escola e em vários cursos sempre começados e nunca terminados, o recurso foi mesmo o manuseio do dicionário e a sapiência de meu companheiro de trabalho, que também dominava o alemão, o que lhe serviu de base para comigo aprender o ídiche. Quanto ao espanhol, durante os anos de guerra, eu me alimentava das edições argentinas e do Fundo de Cultura mexicano, além da “Ercilla” chilena. Reunindo tudo isso, estava apto para começar, à boa moda brasileira, a “dar um jeito”. Foi o que fiz. Competia-me ainda, embora estivesse longe de ser um especialista no campo, redigir uma série de introduções a respeito de literatura judaica e dos autores selecionados, trabalhos esses que figuraram, de diversas formas, nas obras publicadas.

Isso foi possível principalmente porque Carlos Ortiz, antigo seminarista e professor de teologia, padre que fora, ensinou-me, com seu espírito metódico e seus amplos e bem estruturados conhecimentos, a conter minha tendência para a dispersão. Pude assim chegar a uma primeira síntese das informações e elementos de que dispunha sobre os temas por nós focalizados e discutidos. (As discussões versavam igualmente sobre assuntos mais amplos – por exemplo, todo um curso acerca de Aristóteles e do tomismo dado por Carlos Ortiz, além de temas que iam das artes e do cinema à política. Delas participava um círculo de amigos em que figuravam, entre outros, Regina Schnaiderman, Paulo Dantas, os pintores Berco Udler, Harry Elsas e Takaoka.)

Uma consequência do próprio programa da Rampa e de sua repercussão, não em termos de livros vendidos, mas de nossa iniciativa, foi a pretensão que começou a surgir em meu espírito: traduzir para o português as principais expressões da literatura judaica e ídiche, em particular. O Dibuk, de Sch. An-Ski, seria uma delas. Verti essa peça ainda no quadro da Editora Rampa, embora a tenha publicado, após várias e sucessivas revisões, somente em 1952, com uma introdução de Ruggero Jacobbi. Foi essa a única edição de uma nova editora que eu, juntamente com um amigo, Abraão Kertzer, fundamos. A tradução e a edição dessa obra, como se verá adiante, foram fundamentais para meus interesses teatrais.

Dois polos

Encerrado o projeto de vida que girou em torno da Rampa, tive de procurar outro caminho, tanto de subsistência quanto de trabalho intelectual. A subsistência busquei no labor jornalístico e como tradutor. Os anseios intelectuais voltaram-se para os comentários literários. Datam dessa época algumas versões de romances policiais e de aventuras, assim como, curiosamente, de uma peça de Strindberg: Há Crimes e Crimes, feita por encomenda de um amigo que a publicou em edição particular para uso de um grupo teatral ao qual eu pertencia e que ele pretendia dirigir. Por outro lado, meu interesse movia-se entre dois polos, já então espelhados no que eu escrevia: a moderna literatura brasileira e a judaica. Algumas de minhas produções nesses campos, estampadas no “Diário de Notícias”, do Rio de Janeiro, na revista “Brasil-Israel”, em “Quincas Borba”, “Para Todos”, “A Gazeta”, “Última Hora” e outros órgãos de imprensa, foram reunidos numa coletânea ulterior, Motivos, editada em 1963 pela Comissão Estadual de Literatura.

Entrementes, fora convidado, em 1954, por Jean-Paul Monteil para trabalhar com ele na recém-criada Difusão Europeia do Livro (Difel). Nessa editora pude cooperar, no correr dos anos, com alguns projetos que reputo de grande importância cultural e editorial: a publicação da série “Saber Atual”, uma proposta de colocar ao alcance do grande público um amplo espectro de temas de estudo; a coleção “Clássicos Garnier”, dirigida no Brasil por Vítor Ramos; a versão da História Geral das Civilizações, coordenada por Maurice Crouzet; a História Geral da Civilização Brasileira, dirigida por Sérgio Buarque de Holanda; uma “Brasiliana” moderna sob o título de “Corpo e Alma do Brasil”, cuja direção foi confiada a Fernando Henrique Cardoso; e, finalmente, uma série de ficção, “A Novela Brasileira”, afora obras como a História Geral das Ciências, a Presença da Literatura Brasileira, de Antonio Candido e José Aderaldo Castello, e a Presença da Literatura Portuguesa, de Antônio Soares Amora, Massaud Moisés e Segismundo Spina, além de importantes textos de ficcionistas e ensaístas europeus, tais que Sartre, Simone de Beauvoir, André Gide, Górki, Lampedusa e assim por diante.

Em função desse trabalho, ao longo dos anos tive oportunidade de manter contatos com Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Sérgio Milliet, Haroldo de Campos, Maria José Werebe, Octavio Ianni, Gérard Lebrun, Roger Bastide, G. G. Granger e outros intelectuais brasileiros e estrangeiros, ao lado de figuras internacionais, como Sartre e Simone de Beauvoir. Isso sem mencionar o fato de que, por feliz acaso, me foi dado conviver, enquanto companheiros de trabalho, com Vítor Ramos, Bento de Almeida Prado, Leôncio Martins Rodrigues, Bráulio Pedroso, Amazonas Alves Lima e Fernando Pedreira, os quais, até certo ponto – acredito –, interagiram comigo nas lides editoriais. Pude também traduzir, nesse âmbito de atividades, obras representativas em diferentes áreas, como textos de Descartes, Platão, Sartre, alguns volumes da História Geral das Civilizações, supervisionar as publicações das várias séries e redigir diferentes materiais para esses fins.

Se na Difel fui absorvido por uma séria proposta de edição, sob a direção de Jean-Paul Monteil – a quem sou grato não só pelo que me ensinou, mas também pelo que me permitiu aprender (a ele devo, inclusive, meu estágio na França em 1962-1963) –, fui sujeito a outro processo que simultaneamente se desenvolvia em mim, graças a relações pessoais de amizade que estabeleci com Anatol H. Rosenfeld no começo da década de 1950.

Desde o início, Anatol Rosenfeld me impressionou por sua erudição e aguda inteligência. Espírito crítico e filosófico, argumentador brilhante e obstinado sob a aparente polidez germânica, era não só articulista excepcional como professor e conferencista nato, a quem sobejava muito do que me faltava em termos de formação profunda e sistemática em literatura, artes, filosofia, psicologia, sociologia e antropologia.

Foi no convívio com ele e através de suas lições de filosofia – que se davam em minha casa, acompanhadas por um círculo de amigos que compreendia, entre outros, Regina e Boris Schnaiderman, Roberto Schwarz, Zulmira Ribeiro Tavares, Isaías Melssohn, Leo e Rita Seincman, grupo que, em companhia de Anatol, encontrava ocasião, antes e depois das aulas, para ventilar e debater o que acontecia no Brasil e no mundo, nos mais diversos terrenos, do político ao cultural – que durante mais de 12 anos, semanalmente, quase até às vésperas da morte de Anatol Rosenfeld em 1973, fui-me aprofundando em epistemologia e estética até suas correntes modernas, as quais eu conhecia muito pouco ao iniciarmos esses estudos, muito embora possuísse algumas leituras de clássicos do pensamento e, principalmente, do marxismo. Foi dessa forma, talvez, que consegui efetuar, de maneira inconsciente para mim na época, um segundo desenvolvimento intelectual, que complementava e me levava a nova etapa no meu processo de formação autodidática.

Devo assinalar ainda que, por volta do mesmo período, a convite de Décio de Almeida Prado, tornara-me colaborador do “Suplemento Literário” de “O Estado de S. Paulo”, estando a mim afeta a seção de letras judaicas. Tal incumbência me permitiu abordar e difundir valores e nomes da literatura judaica em ídiche e em hebraico. Na redação de “O Estado de S. Paulo” conheci Sábato Magaldi, com o qual, nos sucessivos encontros, travei sólida amizade. Como resultado dos artigos e ensaios estampados no “Suplemento Literário”, além de ser convidado a integrar o Conselho Editorial da revista “Comentário”, a Comissão Brasil-Israel, dirigida por Fernando de Azevedo e Romeu Mindlin, propôs reuni-los em livro (As Portas de Sion). Foi para mim uma agradável surpresa vê-lo publicado com prefácio do professor Antonio Candido: não o conhecia pessoalmente, mas fora leitor de seus artigos críticos na “Folha da Manhã”, acompanhando sua atuação intelectual desde a revista “Clima” e os trabalhos que desenvolvia em sociologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Por tudo isso, senti-me envaidecido e grato. Porém, minha admiração por ele cresceu mais ainda quando li seu livro Formação da Literatura Brasileira, obra que me rasgava horizontes de compreensão do fenômeno socioliterário brasileiro e da qual guardo até hoje a mais viva impressão.

Tudo isso me levou a sugerir a Monteil que tentasse obter a colaboração do professor Antonio Candido para a publicação de uma antologia da literatura brasileira feita em moldes modernos. Fui encarregado das tratativas, o que me ensejou primeiramente conhecer pessoalmente o professor Antonio Candido, ao mesmo tempo em que contribuía para tornar realidade o projeto da Presença da Literatura Brasileira. Outra consequência dessa aproximação foi que, tendo Antonio Candido se transferido de Assis para São Paulo a fim de ministrar aulas na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP [Universidade de São Paulo], na área de teoria literária, tive oportunidade de assistir ao primeiro curso que proferiu nessa ocasião em Teoria do Romance, uma série de aulas brilhantes sobre os elementos realistas na obra de José de Alencar, particularmente no romance Senhora. Do ponto de vista intelectual, encontrei nessas exposições um guia que me levou a muitos nomes da teoria literária, entre eles Auerbach e vários outros, que depois editei pela Editora Perspectiva, a qual, em seu primeiro livro na coleção “Debates”, timbrou em tornar pública essa influência e a linha de sua edição ao lançar A Personagem de Ficção, composto de textos de um curso coordenado por Antonio Candido e do qual participaram, como se sabe, Anatol H. Rosenfeld, Décio de Almeida Prado e Paulo Emílio Salles Gomes.

Teatro

Por outro lado, o contato com Anatol Rosenfeld e Sábato Magaldi despertou – ou melhor, avivou – em mim outro foco de interesse: o teatro. Este me atraía há muito. Durante minha juventude assistira a um bom número de ensaios e representações de teatro amador em língua ídiche e portuguesa. Como pagante ou penetra, vi espetáculos de Procópio Ferreira, de Dulcina [de Moraes] e Odilon [Azevedo] e de Jaime Costa nos Teatros Santana e Boa Vista, bem como encenações das companhias de ópera italiana e de Jouvet nos anos 1940 (devo confessar que entendia muito pouco o que se dizia em cena, à época, na língua de Molière). Assisti depois, com muita emoção, às representações do Grupo Universitário de Teatro, de Décio de Almeida Prado, e de Os Comediantes, que foram os verdadeiros iniciadores de minha apreciação do teatro moderno, de sua dramaturgia e de seus recursos.

Outro estímulo que fez incidir minha atenção na moderna arte de encenação veio de parte de Jacob Rotbaum, diretor e professor de teatro judeu, que mais tarde trabalhou com Ida Kaminska na Polônia. Ele permaneceu em São Paulo por longo período, quando dirigiu os grupos de teatro amador do Centro Cultura e Progresso, onde realizou montagens de excelente nível artístico. Isso sem levar em conta que me foi dado assistir às interpretações de Morris Schwartz, Ben Ami e outros atores judeus, argentinos e americanos. Sua arte reforçou em mim aquilo que, já na época da Editora Rampa, se havia manifestado, quando organizei e ministrei, para um grupo de jovens, um curso de história do teatro judeu.

Não obstante, foi sob o impacto dos trabalhos apresentados pelo TBC [Teatro Brasileiro de Comédia], bem como das temporadas paulistas de grupos cariocas e das leituras mais específicas que eu efetuava por iniciativa própria ou por sugestões advindas das conversas com Anatol Rosenfeld e Sábato Magaldi, que comecei realmente a me familiarizar com aspectos mais profundos da história e da teoria dramáticas.

O primeiro resultado dessa aproximação com o teatro moderno traduziu-se numa série de artigos que escrevi para o “Suplemento Literário” de “O Estado de S. Paulo”, uma sequência natural de meus trabalhos sobre temática judaica para esse jornal e, sobretudo, de minha tradução de O Dibuk. Com efeito, ao fazê-la, senti-me envolvido não só pelo universo de mito, cabala e folclore que se entreteciam no texto, como também pelo que a bibliografia contava da mise-en-scène clássica do Habima [teatro nacional de Israel].

Um halo romântico de teatro envolvia a peça e sua encenação. Já atraído por ele, ao compor a introdução para a edição brasileira de O Dibuk, meu primeiro impulso foi iniciá-la por uma protohistória do teatro judeu (fiz pesquisas, chegando a começar a redação, a qual me serviu de base para um trabalho ulterior, publicado muitos anos depois no “Suplemento Cultural” de “O Estado de S. Paulo” sob o título “A Expressão Artística entre os Antigos Hebreus”, e na revista “Shalom” como “Elementos de Espetáculo e Drama entre os Antigos Hebreus”). Na época, o incentivo anterior incorporava-se ao meu crescente interesse pela arte da representação.

Revolução e vanguarda

Para escrever os quatro artigos da série sobre o Habima, vali-me não só da história do movimento teatral judaico em línguas ídiche e hebraica e de livros então acessíveis sobre a contribuição de Vakhtângov – o armênio que dirigiu genialmente a versão hebraica da peça de Sch. An-Ski em Moscou, tendo-a convertido num marco artístico universal –, como também de uma larga bibliografia sobre Stanislávski, Meierhold e Taírov. O movimento da teatralidade moderna fascinava-me, muito especialmente as notáveis realizações do teatro russo pré e pós-revolucionário – este, em sua conjunção estética entre revolução e vanguarda.

Creio, no entanto, ter sido minha estada na França o impulso fundamental que me conduzia para pontos centrais dos estudos da cena contemporânea. Durante o tempo em que lá permaneci (1962-1963), além dos compromissos com meu estágio técnico e profissional em edições, procurei absorver, na medida do possível, aquilo que Paris oferece aos estudantes de todo o mundo: um amplo elenco de possibilidades e experiências artísticas e culturais. Afora os cursos de filosofia no Collège de France – sobretudo o de [Jules] Vuillemin sobre Kant –, de conferências sobre temas então na ordem do dia – como os do nouveau roman e da nouvelle vague –, bem como palestras e debates acerca de diversos aspectos da literatura, artes, pensamento (foi quando ouvi [Roland] Barthes e [Lucien] Goldmann, inclusive discutindo entre si), eu tentava ver tudo o que não vira no Brasil por razões várias, tanto em matéria de cinema quanto de teatro. Não estaria exagerando ao dizer que assisti à maior parte das peças encenadas naquela temporada pelos teatros parisienses mais conhecidos e por grupos experimentais.

O TNP [Théâtre National Populaire], com Jean Vilar, no Trocadéro, Jean-Louis Barrault e Madeleine Renaud, no Odéon, espetáculos da Comédie-Française, entre outros, evidentemente me colocaram em dia com as manifestações marcantes do fazer cênico da época. Foram, entretanto, muito particularmente os espetáculos ligados ao Teatro do Absurdo – cujo auge fora nos anos 1950 e que, àquela altura, já declinava, mas cujas lições (sem nenhum trocadilho com A Lição, de [Eugène] Ionesco) abriam-se então para mim – que chamaram minha atenção. Li bastante sobre o assunto em Paris, tendo sido em função desse aprendizado que, ao retornar ao Brasil e a pretexto do livro de Léonard Pronko, Théâtre d’Avant Garde, bem como sob a influência da análise de Martin Esslin, escrevi um conjunto de seis artigos que apareceram no “Suplemento Literário” de “O Estado de S. Paulo”, numa tentativa de analisar os lineamentos fundamentais do Teatro do Absurdo e de seus principais expoentes.

A essa publicação seguiu-se – sem que me pareça estar um fato ligado ao outro – minha entrada na Escola de Arte Dramática (EAD). Jamais sonhara, em toda a minha vida, ser professor, mesmo porque passara boa parte dela a detestar a instituição escolar. Assim, quando Sábato Magaldi e Anatol Rosenfeld insistiram para que eu fosse lecionar Crítica Teatral na escola de Alfredo Mesquita, senti-me desconcertado.

Aceitei o convite pela via costumeira de minhas reações, em que o medo ao desconhecido é sempre acompanhado da tentação de enfrentá-lo. Confesso, no entanto, que, ao penetrar pela primeira vez numa sala de aula para desempenhar o papel de professor, tive a sensação de um ator totalmente despreparado para executar sua parte – muito embora já houvesse proferido conferências, tendo chegado até a dar cursos de teatro e literatura ídiche para grupos interessados.

Entretanto, o ambiente da EAD e o interesse dos estudantes de Crítica e Dramaturgia eram de tal ordem que rapidamente fui envolvido. Carreando para mim suas expectativas e indagações, os alunos incitavam-me a satisfazê-los na procura de conhecimentos profundos dos diferentes aspectos da arte teatral. Eu preparava as aulas e as redigia, embora sempre acabasse por discutir livremente os temas – e numa escola onde davam aulas Augusto Boal, Sábato Magaldi, Anatol Rosenfeld e outros militantes da vida teatral paulista, era preciso discutir com propriedade e precisão.

O esforço de ordenação que se fez necessário, e que implicava igualmente numerosas leituras, foi importantíssimo para mim, ao me permitir coordenar e sistematizar meus conhecimentos no domínio do teatro, levando-me, no confronto semanal com os alunos, a submeter os conceitos a uma crítica mais intrínseca. Acredito que essa solicitação formulada pela sala de aula, indo ao encontro de meu desejo de motivar os estudantes para os debates teóricos, acabou por ensinar-me muito mais do que, provavelmente, aquilo que a eles ensinei. Foi gratificante.

Não sei até que ponto fui bem-sucedido como professor. O fato é que Alfredo Mesquita me manteve na função até a incorporação da EAD à Universidade de São Paulo e isso deve ter pesado, afora a recomendação de Sábato Magaldi, para que o professor [Julio García] Morejón me convidasse a ministrar na então Escola de Comunicações Culturais da USP o curso de Crítica Teatral sob a forma de conferências e, em 1969, o professor Antônio Guimarães Ferri me contratasse para a disciplina, mesmo sabendo que eu não dispunha de formação curricular ou diplomas acadêmicos.

Meu encontro com a atual Escola de Comunicações e Artes (ECA) começou, portanto, com a primeira turma de alunos de Crítica e Dramaturgia, do que era então denominado Departamento de Teatro, encabeçado por Alfredo Mesquita. No ano seguinte, com a necessidade de implantar as várias disciplinas previstas pelo primeiro currículo, foi-me solicitado que respondesse igualmente pela de Estética Teatral.

Coleção “Judaica”

Por essa época e um pouco antes, duas outras atividades dividiam meus esforços. Uma era a Editora Perspectiva. Fundada em 1965 por mim e um grupo de amigos, ela se propusera, apesar de seu pequeno capital e ainda menor número de sócios ativos, a concretizar um programa bastante ambicioso. O primeiro item compreendia a edição de uma “Judaica” que abarcaria, no plano da produção ficcional, poética e do pensamento religioso, filosófico, ideológico e político, 4 mil anos de criação cultural do povo judeu. Seriam 12 volumes – que depois se tornaram 13 –, dispostos segundo uma diacronia que se detinha nos pontos altos da expressão coletiva e individual. Foi um insano trabalho de pesquisa, tradução, organização e redação de ensaios e análises, por mim coordenado e realizado em grande parte pessoalmente, embora tenha contado com numerosas colaborações de nível, como as de Anatol Rosenfeld, Zulmira Ribeiro Tavares, Boris Schnaiderman, Rifka Berezin e outros.

O projeto da Editora Perspectiva não se cingia, porém, à mera divulgação de uma cultura específica. Constituía já meu objetivo, além de continuar ampliando a “Judaica” com outras obras de importância, desenvolver, numa segunda etapa, a publicação de obras de vanguarda e da bibliografia fundamental em humanidades em geral, particularmente aquilo que viera à luz nas correntes renovadoras dos anos 1950 e 1960, tanto no Brasil quanto no exterior.

Nasceu assim a coleção “Debates”, ideia que trazia comigo desde o meu retorno da França, porém cuja concretização não conseguira realizar anteriormente. Essa coleção resumia meu aprendizado editorial com respaldo em minhas preocupações intelectuais. Outras coleções vieram juntar-se a ela, sempre com uma diretriz mais ou menos parecida: unir qualidade e importância do texto à qualidade da edição.

A segunda atividade que dividia meus esforços com o ensino de teatro, a que me referi acima, consistia em trabalho realizado no recém-criado Centro de Estudos Judaicos da FFLCH [Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas] da USP. Chamado a colaborar na sua formação, participei de seu primeiro conselho como diretor de publicações. Permaneci nessa função mesmo quando exerci a vice-diretoria, tendo coordenado a edição de textos universitários de interesse do centro. Além disso, no curso de hebraico, coube-me a responsabilidade pela disciplina de Literatura Hebraica, cujos programas organizei, tendo no começo ministrado as aulas pessoalmente e, ao fim, através de assistentes por mim orientados.

Essa diversidade de encargos não impediu que minhas tarefas, no setor de teatro, tanto didáticas quanto administrativas, fossem sempre crescentes. Nos anos subsequentes integrei comissões e tive obrigações de direção, quando, simultaneamente, por insistência de colegas – dentre eles cito Miroel Silveira –, comecei a cogitar de regularizar minha vida acadêmica através do doutorado. Foi decisivo, nesse sentido, o empenho quer de Sábato Magaldi, quer de Clóvis Garcia – este então chefe do Departamento de Cinema, Teatro, Rádio e Televisão, que acompanhou o difícil processo de formalizar a inscrição de candidato que prescindia dos pré-requisitos regulamentares. Porém, sou ainda mais grato a Antonio Candido, que consentiu em ser meu orientador, estimulando-me com a nobreza de caráter e a notável capacidade intelectual que lhe são peculiares a escrever minha tese de doutorado.

O núcleo de minhas atividades como professor da ECA traduziu-se em cursos de graduação e pós-graduação, nos encargos de orientação de mestrado e doutorado. Passei pelas várias etapas da carreira acadêmica de então, livre-docência, professor-adjunto e titular da disciplina de Estética Teatral e Teoria do Teatro, função em que fui aposentado em 1991, embora meu vínculo acadêmico com os estudos teatrais tenha prosseguido como orientador de pós-graduandos do Departamento de Artes Cênicas da USP. Todavia, não foi esse o setor exclusivo de minha atividade, pois continuei, nos anos subsequentes, e continuo ainda, a colaborar na imprensa dentro do repertório de temas que motivaram meu interesse e a levar adiante os projetos da Editora Perspectiva.

Sempre trabalho com uma perspectiva positiva. Pessoalmente, não sou propenso ao otimismo, mas quando se quer desenvolver uma ação com vistas a um objetivo, é preciso operar e planejar – penso eu – como se ela fosse durar eternamente, em especial no caso de uma editora, pois sem projetos ela está morta, ainda que pareça estar viva. Por isso mesmo, nossas coleções são sempre abertas, quer as mais antigas – inclusive quando contam com dezenas ou centenas de títulos, como a “Judaica”, a “Debates”, a “Estudos”, a “Signos”, a “Stylus”, a “Signo-Música”, a “Khronos”, a “Paralelos” –, quer as novas ou as renovadas, como “Textos”, “Elos”, “Perspectivas”, “Estudos Judaicos”, “Big Bang” (ciências), isso sem mencionar obras que por sua natureza não podem ser enquadradas em séries, como a História do Teatro Mundial, a História da Ópera, o Dicionário do Teatro Brasileiro, o Dicionário SESC: A Linguagem da Cultura, o Dicionário de Teatro (mundial), a História da Arquitetura e a História da Cidade, além de outras obras ligadas à arte-educação e de uma História do Teatro Brasileiro, em dois volumes (no prelo), perfazendo um catálogo com mais de mil títulos.

Sem dúvida, à luz de nosso efetivo porte econômico, o de uma pequena empresa, trata-se de um total significativo, que resulta antes de uma política seguida ao longo de mais de quatro décadas. De fato, a Perspectiva sempre operou assim, investindo muito pouco em marketing e aplicando quase todos os seus recursos na edição. Terá sido um erro? Certamente, em termos de gestão e de concepção mercadológica. Mas a culpa é do gestor. Foi a sua opção... ao enveredar pelo que o seduzia.

Debate

VAMIREH CHACON – Qual será o futuro, a curto prazo, da revista, do livro e do jornal escritos? Sabemos que, a começar pelo “New York Times”, pelo “Times”, de Londres, por “Le Monde”, “Le Figaro” e jornais do mundo inteiro, as tiragens têm diminuído à metade ou menos. Não sei como está a redução nos livros. Qual será o futuro, portanto, da imprensa escrita em papel a curto prazo?

JACÓ GUINSBURG – A curto prazo, a imprensa de informação mais geral sofrerá, sem dúvida nenhuma. Mas não creio que, no que respeita à informação mais profunda, possa desaparecer totalmente. Talvez as características dos jornais tenham de mudar. Nunca me preocupei com o que vem pela frente, porque meu trabalho editorial se pautou mais pela agenda cultural que por uma preocupação de caráter mercadológico ou técnico. A meu ver o livro não desaparece, mas é uma experiência puramente subjetiva: parece-me que a fixação de elementos através da leitura eletrônica não é da mesma ordem que a da leitura efetuada no papel. Pelo menos no meu caso é assim. Mas isso não significa que o meio eletrônico não vá ter importância enorme – haverá uma relativização das formas e dos níveis de informação.

Entretanto, não há dúvida de que os processos eletrônicos desenvolvem uma democratização na informação, no que tem de bom e no que tem de mau. Basta ver o acesso que largas camadas das populações agora têm, mesmo em países mais avançados. A meu ver, portanto, a imprensa terá de mudar suas características, talvez se volte mais para as chamadas revistas acadêmicas ou de uma informação mais profunda, deixando o cotidiano, o imediato, para o meio eletrônico. Do ponto de vista das tiragens, é claro que os jornais vão sofrer, e muito. E vão passar por um processo de especialização. Do ponto de vista editorial, não creio que o livro eletrônico possa substituir totalmente o livro em papel.

NEY PRADO – Queria saber o que sobrou de marxismo em sua formação intelectual e visão do mundo.

GUINSBURG – Realmente, o marxismo foi uma ideologia que atingiu um largo círculo intelectual, nem sempre se aprofundando em Karl Marx, que, afora sua postura, tem análises econômicas e sociais geniais. Não podemos nos desfazer de Marx de maneira alguma, muito ao contrário. Entretanto, suas previsões políticas levaram a desenvolvimentos que ele não previa e, para mim, após um período de crença, muito mais do que de análise crítica mais aprofundada, que só vim a fazer posteriormente, sobrou o instrumental de análise e uma ligação profunda com a história, que sempre tive, aliás.

Do ponto de vista do método, ele oferece alguma flexibilidade, ainda que a dialética seja um instrumento que serve para muita coisa. O que sobrou do marxismo para mim foi a análise que ele faz, com razão, de certos aspectos da história moderna, dos seus componentes estruturais e das classes que os dirigem. Não podemos desprezar a contribuição de Marx e o valor de suas análises para nosso conhecimento das estruturas e dos processos vigentes em nosso mundo.

JACOB KLINTOWITZ – Além de fazer uma pergunta, quero dar uma opinião. A discussão em torno das novas tecnologias esquece que o fundamental não é o suporte, mas o símbolo. O que caracteriza o processo cultural e artístico é a elaboração, a redescoberta do símbolo, sua formatação. Então as novas tecnologias de comunicação sempre anunciam a morte do livro, como o cinema anunciava a morte do teatro e a fotografia a da pintura. Ao contrário, teatro e literatura nunca estiveram tão vivos e a pintura inclusive retoma hoje os temas clássicos que a orientaram desde sempre. Então parece que a anunciada morte era só o desejo que alguns tinham de que essas formas morressem, mas nunca na história do mundo se leu tanto.

Minha pergunta é: de que maneira a Perspectiva tem caráter paulista como uma liderança no Brasil e uma possibilidade de tornar nossa vida mais cosmopolita e menos regional?

GUINSBURG – Em todos esses anos, com a exceção de uma breve estada na França e de algumas viagens, nunca saí de São Paulo. Morei no Rio de Janeiro, mas foi por algum tempo apenas. O mundo contextual em que vivi e com o qual de certa maneira tentei dialogar é paulista e paulistano. Não tenho nenhuma pretensão de ter dado um pulo para o que era a elite, não só intelectual como também social. Na livraria de Alfredo Mesquita, na Rua Marconi, as pessoas se misturavam, havia desde algum comunista procurado pela polícia até a dona fulana de tal, com todos os seus balangandãs.

Mas passei por ensejos que a vida oferece ninguém sabe como. É o caso do teatro. O Rio de Janeiro partiu na frente na renovação do teatro brasileiro, com Os Comediantes. Entretanto, quem consolidou esse movimento foi São Paulo, primeiro através do TBC, depois com o Arena e o Oficina, que estabeleceram o marco. Não é que os outros estados não tivessem feito. Fizeram, mas aqui houve esse marco, talvez até pela estranha mistura que existe em São Paulo de segmentos de toda ordem, tanto de natureza étnica quanto espiritual. A mesma coisa ocorre com outros aspectos da vida econômica, política e principalmente intelectual. Veja o modernismo, que fixou aqui uma de suas raízes mais importantes, na Semana de Arte Moderna. Um dos principais expoentes foi Mário de Andrade e outro o anti-Mário, Oswald de Andrade.

São Paulo foi também o principal centro dos movimentos de reivindicação operária, de organização sindical, de movimentos políticos. Nisso teve a participação de imigrantes, como os socialistas italianos, anarquistas espanhóis e portugueses, e a contribuição judaica também. Os judeus participaram de maneira bastante ponderável no movimento de esquerda brasileiro, uma análise que não foi feita ainda devidamente. São Paulo, talvez por seu desenvolvimento socioeconômico, centralizou isso e muita coisa foi irradiada daqui.
Por outro lado, é preciso dizer que São Paulo é um centro não só de difusão como foi e ainda é de confluência. A cidade tem sido o cadinho de um Brasil moderno, sem que isso se constitua em nenhum privilégio, é a realidade. No campo editorial, sem dúvida nenhuma a Companhia Editora Nacional, por exemplo, inovou, não só por causa de Monteiro Lobato, mas principalmente pela atuação de Octalles Marcondes Ferreira, porque o que foi um sonho de Lobato se tornou uma realidade com Octalles e graças a ele existiu depois a Editora Civilização Brasileira. Ênio Silveira, além de genro, era uma pessoa altamente capaz e exerceu seu papel desassombradamente. Mas isso ocorreu em São Paulo.

O Rio teve papel importante também, como no jornalismo. Era a capital da República, e a relação entre imprensa e política é de irmãos xifópagos, embora se odeiem. Quando o “Correio da Manhã” ou o “Jornal do Brasil” escrevia uma coisa, de manhã o senador ou o deputado já acordava lendo aquilo. Hoje o desenvolvimento do Brasil é muito mais amplo, embora São Paulo ainda seja uma célula das mais importantes, tanto do ponto de vista industrial quanto intelectual e cultural. Mas naquele momento era aqui que as coisas estavam acontecendo e daqui se irradiavam. A ideia da superioridade ou da suposta arrogância paulista creio que era mais devida a dor de cotovelo que a outra razão.

ZEVI GHIVELDER – O historiador Isaías Golgher, no livro A Tragédia do Comunismo Judeu, fala sobre a perplexidade em face do antissemitismo da política oficial da União Soviética. Menciono isso en passant, porque queria lhe perguntar sobre Bashevis Singer, um autor que escreve sobre temas judaicos com enorme profundidade, chegando inclusive ao sobrenatural. A que você atribui o reconhecimento universal à obra dele?

GUINSBURG – Só posso atribuir à qualidade do texto. Naturalmente, ele descobriu um meio que os outros escritores não encontraram, na medida em que escrevia em ídiche, e a tradução era feita diretamente. A aceitação que obteve nos Estados Unidos foi fundamental para a difusão de seu nome. Bashevis, por sua formação, tinha um conhecimento imenso de todo o ethos cultural judaico. Participou dos movimentos literários pós-Primeira Guerra Mundial, dos quais seu irmão foi um dos principais expoentes.
As primeiras obras de Bashevis foram extremamente ideologizadas e partidarizadas, mal recebidas. Livros como Satã em Gorai, por exemplo, que foi publicado no início da década de 1930, foram considerados subliteratura no meio intelectual. Desde cedo ele foi um crítico feroz da esquerda. Na literatura ídiche Bashevis só tem um par, que é Sholem Asch, com O Nazareno. Com o desenvolvimento, no pós-guerra, principalmente do interesse pela ampliação do espectro étnico literário ou cultural, começou a haver uma exploração antropológica do diferente e ele encontrou seu nicho.

ROBERTO MAGALHÃES – Acredito que o livro vá sofrer mais ainda do que hoje, bem como os jornais impressos, mas concordo inteiramente que não vai desaparecer. O que quero perguntar é se por acaso vai desaparecer o capitalismo, o livre mercado, o que vai substituir a democracia, porque é difícil ela continuar existindo. Seremos todos uma China? Não pergunto se o capitalismo pode ser reformulado, pois está em permanente reformulação, às vezes para melhor, às vezes para pior. A própria globalização ainda não sei se veio para o bem ou para o mal, se bem que ela existe desde as Grandes Descobertas, no século 15. O senhor acredita que possa desaparecer o capitalismo neste século? E se isso acontecer, o que virá?

GUINSBURG – A iniciativa e a liberdade estão ligadas intimamente, o capitalismo selvagem é outra coisa. Não temos nenhuma previsão para isso, exceto a república dos funcionários públicos, que seria uma panaceia para todos. Temos uma prova disso com o que está acontecendo na União Soviética e na China, embora se fale de capitalismo de Estado, mas de qualquer maneira está ocorrendo, e provavelmente vai se repetir em Cuba. Não sabemos que outros tipos de trabalho econômico, de troca de bens ou de formas de produção são passíveis de realmente atender as necessidades humanas, não apenas no nível grosso dos grandes planos quinquenais, em que se pode planejar aço, ferro, máquinas, pois há coisas que não é possível prever. As necessidades mais íntimas são extremamente variadas e somente podem ser atendidas por um mercado extremamente variado, que só é controlável em certos níveis.

LENINA POMERANZ – O mundo está passando por transformações fundamentais, é muito difícil prever o que vai acontecer. Lembro-me de discussões que tive com meus colegas professores a respeito do que é o mercado e do que é o capitalismo. O capitalismo pode ser fantástico, como o mercado, mas não resolve o problema da grande desigualdade que existe no mundo. Diziam-me que não é papel do mercado discutir distribuição de renda. Não é seu papel, é preciso compreender suas limitações. Se há iniciativas e coisas que podem se desenvolver, trata-se de um desenvolvimento que está sendo altamente concentrador e que aprofunda as desigualdades sociais.

GUINSBURG – Não vou discutir com a professora de economia, porque não entendo do assunto. O que disse é um palpite meu, minha visão da coisa. Entretanto, penso que a equalização teórica, passar o trator por cima verbalmente, é muito fácil.

LUIZ GORNSTEIN – Nos últimos anos houve muitas leis de incentivo, a mais conhecida é a Rouanet, para iniciativas culturais. O senhor considera que isso foi bom para a população? Já que é dinheiro público, está sendo bem usado?

GUINSBURG – Que é positivo, é. Mas é positivo para alguns, não para todos. Infelizmente, a lei é excelente, mas cai às vezes num aspecto mercadológico e é explorada de maneira inadequada. Não sei dizer mais, porque minha editora nunca teve benefício da Lei Rouanet, assim como nunca teve proximidade com os poderes constituídos, nem com os não constituídos, nem com os inconstitucionais, que estão hoje à mostra. A lei em si é positiva, porque abre uma brecha para o financiamento da cultura. Talvez ela deva ser mais bem regulamentada e sobretudo menos burocrática. O problema de todas essas leis é a burocracia e nem sempre os dirigentes. São os estratos intermediários, em que ocorrem fatores imponderáveis. A pequena empresa, por exemplo, dificilmente pode ter acesso a isso, a não ser que existam relações pessoais com alguém etc. Isso tudo torna essa lei discutível, embora em si seja positiva.

Ainda com respeito ao problema levantado pela professora Lenina, é evidente que o capitalismo, como todas as formas de organização humana, tem lados maléficos e até diabólicos. Mas os regimes experimentados até agora têm igualmente esses lados. Pelo menos em termos do capitalismo há uma abertura, uma possibilidade de transformação e de regulamentação, talvez impedindo ao máximo sua manipulação. Quando o planejamento chega até à raiz do cabelo, não há como se mexer. Ninguém pode contestar o caráter socializante das tendências atuais. Agora, pensar num Estado messiânico...

LENINA – Não foi o que quis defender.

GUINSBURG – Sem dúvida nenhuma.

CLÁUDIO LEMBO – Professor, o ídiche corre perigo?

GUINSBURG – Sim, a massa falante do ídiche foi trucidada. Mas ele foi cultivado subsequentemente, e ao mesmo tempo, tanto nos Estados Unidos quanto na Argentina. Só que era uma língua de imigrantes e as gerações seguintes deixaram de empregá-la. Nasci numa casa onde se falava o ídiche, mas não o usei com meus filhos.

Existe uma massa religiosa que utiliza o ídiche como comunicação corriqueira, porque o hebraico para eles é uma língua sagrada. Mas até que ponto essa massa utiliza o ídiche como instrumento cultural? A expressão é quase zero. Por exemplo, fazem comentários religiosos eventualmente em ídiche, mas sempre semeados de expressões em hebraico. Atualmente, aliás, com o ressurgimento do hebraico, um dos milagres linguísticos que ocorreram na modernidade, o ídiche desapareceu. Na corrente sionista havia um grupo de esquerda que propugnava pela manutenção do ídiche como língua nacional, mas foi vencido. Os judeus da Europa Oriental, por exemplo, tinham no mínimo três línguas, falavam o ídiche, liam ou conheciam o hebraico e geralmente utilizavam a língua do país – russo, polonês, lituano etc.

ISAAC – Em São Paulo os sefaradim falam francês.

GUINSBURG – Falam francês por causa da Aliança Israelita Universal, que difundiu a educação secular entre os sefaradim desde o século 19. Mas há os que hoje defendem a manutenção do ídiche. Tanto nas universidades como em centros culturais tem-se estudado muito o ídiche e sobretudo seu rico acervo literário, porque os outros povos não têm noção da riqueza do que foi criado nesse idioma, que começou como língua literária a partir do século 19. E em ídiche existe a tradução de quase todos os clássicos ocidentais, e inclusive do Oriente, assim como de obras das principais correntes artísticas e filosóficas. Por exemplo, você encontra em ídiche a literatura marxista quase toda, Nietzsche, os filósofos mais importantes e uma dramaturgia, uma literatura poética e de ficção extremamente ricas. Basta dizer que tanto o dadaísmo quanto o surrealismo estão representados em ídiche, com criações importantes. Mas de um ponto de vista objetivo é muito difícil vaticinar um futuro para o ídiche.

SAMUEL PFROMM NETTO – Minha pergunta é pontual e dirige-se ao editor. Há um consenso de que existe uma relação íntima entre o nível educacional de um país e sua indústria editorial. Os países que conseguiram alcançar níveis elevadíssimos de educação, compartilhados pela imensa maioria da população, são ao que tudo indica aqueles que têm maior expressão do ponto de vista de edição de livros. Como você vê a situação paradoxal deste Brasil que se expande em todas as direções e em todos os aspectos e que, no entanto, tem 75% de sua população constituída por analfabetos e semianalfabetos? Como não ver aí o gargalo da cultura e um drama para o editor que quer publicar livros sérios? Como você vê esse divórcio entre, de um lado, uma imensa população analfabeta e semianalfabeta e, de outro, a tentativa, que considero verdadeiramente heroica, dos editores brasileiros de fazer bons livros?

GUINSBURG – Todos são unânimes em dizer que o problema da educação é fundamental, não em termos de sua democratização, mas porque é preciso deixar de produzir analfabetos funcionais. Eles são piores que os próprios analfabetos, porque estes têm uma cultura própria, às vezes riquíssima, que apenas não se manifesta por escrito. Nesse sentido, até as tendências mais recentes da mescla entre o ethos popular e o ethos culto têm trazidos grandes benefícios, principalmente no plano da arte.

Por outro lado, é evidente também que a literatura de alto nível é por sua natureza circunscrita. Ainda que os percentuais sejam assustadores, há os 10% que são os receptores dessa literatura, isso inclusive nos países avançados. Se você for verificar as primeiras edições de alguns dos nomes mais consagrados que se conhece, vai verificar realmente quão pouca receptividade tiveram. Mas pode-se dizer que no Brasil houve uma expansão. O círculo dos receptores na área culta aumentou, ainda que em uma progressão aritmética, enquanto a população cresce geometricamente.

Uma das necessidades fundamentais é a reforma do ensino, não só do secundário, mas do primário. Quando saí do grupo escolar, tínhamos obrigação de conhecer o português a ponto de fazer uma redação praticamente sem erro. Sem falar de história e matemática. No primeiro ano de ginásio, estudava-se equação de primeiro grau. Os ginásios eram extremamente exigentes, no segundo ano se tinha latim, havia ainda grego e francês. Do jeito que está agora, o ensino secundário é um horror. Então não se pode exigir a um cego que veja.

JOSEF BARAT – Retomando a questão do mercado editorial, quando entro numa livraria, principalmente essas megalivrarias, fico impressionado com a quantidade de títulos lançados. Não faço nenhuma comparação com as de Nova York, Londres ou Paris, mas com as que conheci na juventude, pequenas, restritas, com um número limitado de volumes. Pergunto: quem está lendo, quem compra livros no Brasil? Outra questão: um escritor famoso, inclusive detentor de Prêmio Nobel, pode ter uma atitude idiota também?

GUINSBURG – Pode.

BARAT – Refiro-me a Günther Grass, que fez uma declaração às vésperas da Páscoa judaica, acusando os judeus de quererem ter o domínio mundial. Qual a sua opinião sobre isso?

GUINSBURG – Günther Grass apenas respondeu às suas raízes iniciais. Afinal de contas, apresentou-se como voluntário aos 17 anos para a tropa de elite da SS. É evidente que a acusação levantada por ele, tanto em termos gerais quanto específicos, é incompreensível. De discordar de Israel todos têm o direito, e nenhum Estado pode-se dizer que é composto de anjos. Se existem erros que devem ser corrigidos e criticados, tudo bem. Agora, propugnar pela extinção de um Estado é ser extremamente parcial, unilateral e preconceituoso.

Quanto aos livros, o sistema de distribuição no Brasil, dada a imensidão territorial, sempre foi muito deficiente. Havia um distribuidor local, que comprava fixamente certo número de exemplares a cada edição. Isso sumiu, não existe há muito tempo. As pequenas livrarias eram em geral papelarias e foi aí que a Companhia Editora Nacional inovou, porque ela levava o livro didático a essas pequenas papelarias ou bancas de jornais. Começou a distribuir por aí, mas naturalmente havia um prejuízo enorme, que ela conseguia compensar eventualmente por um crescimento de vendas.

Esse sistema todo nunca funcionou direito e agora menos ainda. Há uma parte de livrarias mais afastadas onde vender não é problema, o difícil é receber. A consignação é outra complicação, o livro vai e depois você o recebe de volta. Agora melhorou um pouco por causa da capa plástica, mas essa embalagem tem uma desvantagem, impede que o leitor folheie o livro. Então a distribuição sempre foi péssima.

As grandes livrarias vieram suprir alguma coisa, mas ao mesmo tempo elas têm um inconveniente, primeiro pela concentração. Concentração significa domínio, em termos de percentuais. Antigamente eram 30% do preço de capa para o livreiro, 50% para o distribuidor. Hoje você trabalha com 50% a 60% para o livreiro, com imposição de condições. Como a distribuição está bastante restrita, só existe um campo de escoamento onde ninguém mexe, mas que também não se sabe como funciona, que é a venda para os órgãos oficiais. É uma caixa preta, ou melhor, é uma caixa branca para alguns e preta para todo mundo.

JOÃO TOMAS DO AMARAL – Gostaria de perguntar se houve convivência específica com o professor Fidelino de Figueiredo, que foi um grande divulgador da literatura portuguesa no Brasil e estreitou os laços entre essa literatura e a brasileira.

GUINSBURG – Foi uma grande época da Faculdade de Filosofia, quando havia Fidelino de Figueiredo e outros professores estrangeiros. Ele foi de fato uma célula-mater para o ensino da literatura portuguesa. Só o conheci indiretamente, sabendo de suas atividades pela imprensa, mas tive contato com Soares Amora e todos os outros. Foram professores que renovaram e atualizaram o ensino de maneira brilhante.

PAULO LUDMER – Ouvi seu depoimento completamente comovido, porque é a minha história. Minha família é da Bessarábia, e estou aqui em condições assemelhadas às do senhor. Minha pergunta: além de ensaísta, sou ficcionista e o senhor também é. Por que o senhor precisou da ficção em meio a tudo isso? O que ela é para o senhor?

GUINSBURG – Meu sonho sempre foi ser ficcionista, coisa que não fui. A certa altura resolvi cometer alguma coisa dessa natureza, mas de fato também nunca pensei em ser professor e tampouco editor. Esse livro de contos surgiu da mesma maneira. Na verdade, sempre estive voltado para a ficção, quer por interesse de leitura, quer talvez por uma tentação de fazer isso. Depois parei, dediquei-me a outras coisas, mas após minha aposentadoria, em 1996, escrevi uma boa parte dos contos que estão aí. Eles não pretendem retratar coisa nenhuma, são invenções, é claro que entra a minha experiência de vida, pois nenhum ficcionista deixa de colocá-la, fantasiada ou não.

Aliás, emendando com o que me foi perguntado anteriormente, estamos tendo agora no Brasil um florescimento muito grande da literatura, com um número enorme de jovens escritores, e que se traduz inclusive no que as editoras estão fazendo. Com os meios eletrônicos, a quantidade de pessoas que têm condições intelectuais e técnicas para a edição aumentou enormemente. Um dos pontos de confluência, além das várias profissões que existem hoje, é a edição, então vicejam por aí pequenas editoras.

A ficção, por sua vez, é um campo onde a experiência humana conflui da maneira mais autêntica, porque incorpora não só as cogitações realistas do cotidiano como os sonhos do homem, em suas formas metafóricas, simbólicas e em sua dinâmica. A grande literatura não é ensaística, é de ficção.