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Traços Permanentes

No Brasil, são raros os casos de sucesso editorial permanente, ainda mais se o autor em questão se confunde com o próprio processo de formação de leitura do país. Curioso, e sintomático da força da linguagem dos quadrinhos, é que uma das principais referências nesse sentido seja o escritor e desenhista Maurício de Sousa. Em 1959, quando ainda trabalhava como repórter policial em um jornal de São Paulo e criou seu primeiro personagem, o cãozinho Bidu, Maurício não tinha ideia do espaço que suas histórias viriam a conquistar no imaginário dos leitores mirins.

Hoje, a Turma da Mônica e personagens como Piteco, Chico Bento, Horácio, Penadinho, entre muitos outros, são conhecidos mundialmente. Entre quadrinhos e tiras de jornais, suas criações chegam a cerca de 30 países, sendo que já alcançaram o extraordinário número de um bilhão de revistas publicadas.

A mais recente febre entre os leitores é a publicação Turma da Mônica Jovem, que em seus quatro primeiros números já vendeu mais de um milhão e meio de exemplares. Em depoimento à Revista E, o quadrinista relembra os caminhos percorridos, fala sobre seu processo criativo e revela novos projetos. “O jeito é acompanharmos a criança nos seus momentos de entretenimento, de leitura, de brincadeira”, afirma. Abaixo, os principais trechos.

PRIMEIROS PASSOS

Nasci numa família de artistas. Mamãe, poetisa, compositora, exímia costureira; papai, poeta, escritor, pintor, radialista, compositor. Não podia fugir às influências, principalmente depois que meu pai começou a trazer para casa os gibis da época, que aprendi a ler com ajuda da minha mãe. E ali, também, espiava e copiava as figuras, os cenários.

Começou assim o sonho de realizar minhas histórias, meus desenhos. Passei a ver também os quadrinhos como possibilidade de formação de novos leitores, da mesma forma que aconteceu comigo. Quando criança, gostava muito do Tarzan, Brucutu, Al Capp, Flash Gordon e Dick Tracy, entre outros. Mas uma referência que me fez sentir a arte sequencial foi Spirit, do artista americano Will Eisner.

CARREIRA

Não tinha essa pretensão de fazer tanto sucesso. Queria era escrever minhas histórias em quadrinhos e buscar meu lugar ao sol. Preparei-me demoradamente e confiantemente para isso. O que veio depois foi consequência de um trabalho focado, permanente. Quando ainda era jornalista, na Folha de S.Paulo, estudava como funcionavam os sindicatos americanos que distribuíam as histórias em quadrinhos para milhares de jornais do mundo.

Pensei em fazer o mesmo num esquema adequado ao nosso país, aos nossos periódicos, e me preparei para isso. Estudei como os americanos produziam, vendiam, cobravam, traduziam. E, quando comecei a desenhar minhas primeiras tiras, já montei o processo de redistribuição. Assim, consegui bons resultados. Em 10 anos, já estava distribuindo tiras e páginas tabloides (semanais), em cores ou em preto e branco, para mais de 300 jornais do Brasil.

Após tantos anos, desenhar ainda não cansa, é como uma mina d’água que não seca. Quando não estou escrevendo, desenhando ou revisando roteiros, fico ocupado em criar novos caminhos para a utilização dos personagens e de sua força no merchandising, no cinema, televisão, games.

CRIAÇÃO

Não há um “meu” processo criativo, mas sim sistemas que aprendemos a utilizar para atender as nossas ambições de crescimento e melhoria. Se no início eu trabalhava sozinho e planejava o que podia fazer no meu tempo/espaço, com o crescimento, tive que aprender e repassar aos novos colaboradores maneiras de criar e desenvolver um trabalho totalmente em equipe.

Um roteirista cria o tema, o desenhista dá as formas ao que foi imaginado e um arte-finalista cuida de dar o traço definitivo. Os letristas, os acabamentistas e depois o pessoal das cores dão os toques finais e está pronta a página para ser publicada. Todos os roteiros ainda passam pelos meus olhos, para não haver desvios de forma ou filosofia. Sou auxiliado por minha filha, Marina, que cresceu acompanhando meus cuidados com os conteúdos das histórias.

No controle da qualidade dos desenhos, sou auxiliado pela diretora de arte do estúdio, Alice Takeda, minha esposa. E, naturalmente, antes de todo esse processo, os personagens e suas características foram sendo criados para manter o nosso universo ficcional em pleno funcionamento, com vida e alegria.

PERSONAGENS

As minhas experiências pessoais são essenciais para o universo da criação dos quadrinhos. Meus primeiros personagens, Franjinha e Bidu, foram baseados um pouco em mim e em meu cachorrinho da infância. Cebolinha e Cascão eram amigos de infância, e Mônica, Magali e depois Maria Cebolinha foram baseadas em minhas filhas, com todas características básicas verdadeiras.

Com 10 filhos, 11 netos e dois bisnetos, assunto não falta. Gosto de todos os personagens como filhos. E de filhos não temos preferência. Mas o Horácio é uma espécie de alter ego para minhas visões de mundo. É mais fácil colocar ideias filosóficas em um personagem baseado em animal. É como poder falar dos humanos com uma visão de fora, sem conceitos e preconceitos estabelecidos.

Tenho um acervo de 30 anos de histórias do Horácio, mas, quando necessário, escrevo e desenho novas narrativas.  O pessoal da equipe ainda tem dificuldades para criar o ambiente filosófico das histórias do personagem. No sentido da criação, há outros personagens que são complexos, como, por exemplo, alguns dos novos da Turma Jovem e outros da Turma da Mônica Clássica, que se apresentaram como portadores de deficiência. Estes exigiram muito estudo, cuidados e ternura. Tive que ter (e passar para os roteiristas) todo o apuro para que não se transmitisse aos roteiros qualquer tipo de preconceito, que normalmente se encontra na vida real. 

TURMA JOVEM

Percebi que meus leitores estavam migrando para o mangá japonês cada vez com menos idade. Eu via a infância encolhendo e buscando o passo seguinte nas suas escolhas de leitura em quadrinhos. Então, imaginei uma forma de conter essa evasão: se esses jovens foram leitores da turminha e já não se sentiam parte dela, só me restava passar a Turma da Mônica para o estágio seguinte do desenvolvimento dos leitores.

Resolvi que a turma iria acompanhar os pré-adolescentes e no formato gráfico que eles estavam apreciando: o mangá japonês. Assim, desenvolvemos a Turma da Mônica como jovens de 15, 16 anos, estudamos argumentos, roteiros, na forma e na comunicação que eles buscavam ou exercitavam. Criamos, assim, a revista de maior sucesso editorial das últimas décadas.


“Após tantos anos, desenhar ainda não cansa, é como uma mina d'água que não seca”