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Teatro sem idade

Ilustração: Marcos Garuti
Ilustração: Marcos Garuti

Há pelo menos 100 anos inventamos muitas coisas: o avião, o automóvel, a bomba atômica, o computador, a televisão, o cinema, a internet e por aí vai. Com tudo isso, temos outros modos de estar e perceber o mundo, de guerrear, trabalhar, criar, odiar e amar. Faz parte do pensar e atuar da sociedade contemporânea, com seu cientificismo e tecnicismo, tornar a vida compartimentada e segmentada. O capitalismo, como modo de nos organizarmos para produzir e repartir os bens e riquezas, exige-nos um individualismo e um egoísmo que estabelecem a propriedade dos objetos e sentimentos como os valores principais e indissociáveis também nas relações entre as pessoas.

Assim, tudo – ou praticamente tudo – é produzido e vendido a partir de uma leitura estritamente econômica, na qual o lucro é a medida. Por isso, temos os “produtos certos” para o público específico. O universo infantil não escapou a esta lógica: a criança tornou-se, ao longo do século 20, um grande mercado para todo o tipo de objeto. Desde a roupa, o brinquedo, o livro, a escola, até os produtos culturais e artísticos como o teatro, a música, a literatura. A infância tornou-se um lugar mercadológico, ainda que se tenham conseguido leis e convenções acerca dos direitos da criança e de um lugar no projeto de cidadania. Por isso, devemos tomar cuidado com alguns modismos que também podem surgir, como simples produtos do mercado. Há criações mais superficiais e que não estão definitivamente preocupadas com a arte, apenas com o mercado, e em obter vantagem com assuntos de momento.

Entretanto, essa mesma lógica é questionada quando se depara com um fazer artístico legítimo e comprometido. A meu ver o “teatro para crianças” tem sido feito para toda gente: pais, mães, tios, avós, amigos, crianças e outros interessados. O teatro chega com seus matizes e suas nuances e atinge a todos, sem escolher faixas etárias. A poesia presente nas linguagens artísticas, é sempre um mistério. Um não saber, que se vai sabendo, fruindo, vivendo, mas que se mantém num lugar desconhecido, não completamente desvendado.

Daí que a fruição da arte nunca pode ou deve ser hierarquizada. A percepção de uma criança para uma imagem, um texto, um ritmo é tão complexa quanto a percepção de um adulto letrado, um jovem ou um velho. Cada fruição e percepção têm seu sentido conectado com a história de vida de cada um, seus medos, intuições, racionalidades, emocionalidades e atenções.

Assim, o dito “teatro para crianças” está se tornando cada vez mais intergeracional, com seus temas e conteúdos que também perfazem um arco muito mais abrangente que, partindo das fábulas clássicas, têm sido cada vez mais aprofundados e trazem questões da sociabilidade contemporânea. As novas e velhas configurações de família, as diferentes orientações e vivências da sexualidade, o entendimento da finitude, o convívio com a diferença, a liberdade, a expressividade do corpo, o combate ao preconceito e a política são temáticas, felizmente, cada vez mais recorrentes no vasto leque de criações dos fazedores de teatro.

Então, é primordial aprofundar os processos de abertura de espaços de criação e apresentação para o teatro que amplie as possibilidades de fruição e crítica de nossos modos de ver e fazer as coisas. O teatro deve ser sempre um novo ponto de vista, um lugar que valoriza o desconhecido, o não completamente cognoscível, com o qual temos que nos deparar e enfrentar com coragem. Tem que se manter, ao mesmo tempo, mistério e desvelamento.

Ademais, devemos sempre lembrar que o teatro, como toda e qualquer arte, não pode estar a serviço de uma missão, de colocar ênfase na “moral da história”. O teatro para crianças ou para qualquer outro espectador não tem que ser “instrutivo”, mas um teatro que expande o horizonte, que descobre frentes e espaços de conhecimento, de reflexões, de bons incômodos. Dá-se como transgressão crítica, para novas possibilidades de vida. O teatro para todos funda-se na historicidade anunciando futuros, incertos porvires. Salve!!
 

Sergio Luis de Oliveira tem formação em História na PUC-SP e é assistente da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo.

 

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