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Importações: cenário que assusta

Uso de mecanismos de defesa comercial não diminui entrada de produtos estrangeiros

ALBERTO MAWAKDIYE


Arte PB

País que jamais se cansa de reclamar dos subsídios agrícolas europeus, das leoninas tarifas norte-americanas contra produtos como o etanol e das cruéis sobretaxas impostas pelos argentinos a nossos fogões e geladeiras, o Brasil nem por isso vem deixando de recorrer às medidas legais de proteção quando se trata de defender seu considerável mercado interno, formado por uma população que já ultrapassou os 180 milhões de habitantes.

Os números são reveladores. De acordo com dados da Organização Mundial do Comércio (OMC), de 1995 até o ano passado, o Brasil abriu nada menos que 125 investigações antidumping sobre produtos importados, dos quais 45 estão hoje sobretaxados. São itens que o Brasil conseguiu comprovar serem vendidos em seu país de origem a preços superiores aos praticados na exportação, e sobre os quais impôs o necessário realinhamento, sob o tacape da lei.

A quantidade de investigações coloca o país entre aqueles que mais recorreram a esse mecanismo de defesa comercial desde a criação da OMC, em 1995, com o objetivo de regular o "livre comércio" nos então recém-chegados tempos da globalização. O Brasil está longe, porém, de ser seu principal usuário. Há países e regiões que apelaram às leis antidumping com muito mais freqüência nesses 12 anos.

Note-se que as investigações – feitas quase sempre contra uma empresa ou um grupo de empresas – são apenas um pouco menos prejudiciais aos exportadores que a própria imposição de sobretaxas, uma vez que deixam o mercado como que "em suspenso", à espera da sentença. Além disso, é comum as cadeias importadoras se desmancharem enquanto ela não é promulgada.

A recordista absoluta das ações antidumping é a Índia, país de economia ainda hoje relativamente fechada, com 448 investigações. Seguem-na os Estados Unidos, a meca do capitalismo liberal, mas onde os produtos importados não têm vida fácil, e a União Européia, ambos com cerca de 350 investigações. A Argentina – a histórica rival brasileira no futebol e na verdade em quase tudo, mas uma velha parceira no âmbito do Mercosul – vem na quarta colocação, com 209 iniciativas.

"A redução das tarifas de importação em quase todos os países do mundo vulgarizou, por assim dizer, a prática do dumping", explica o advogado e professor Welber Barral, do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). "Os países com economia mais aberta ou mais frágil, ou aqueles com grande mercado interno, são os que mais sofrem com esse tipo de concorrência desleal. Não é mera coincidência que estejam também entre os que mais apelam para as ações antidumping."

Vítima

Diga-se que o Brasil também tem sido alvo dessas ações. E uma das vítimas preferenciais, por sinal. Principalmente os produtos agroindustriais, minerais e semiacabados – que ainda compõem quase dois terços de sua pauta de exportação – têm sido freqüentemente objeto de investigação antidumping em vários países ao redor do mundo.

Segundo o mesmo levantamento da OMC, desde 1995 houve 87 investigações antidumping sobre exportações brasileiras. Os Estados Unidos são responsáveis por nove delas, relativas a produtos como o aço e o suco de laranja, por exemplo. Uma quantidade bem menor, de qualquer forma, do que os processos abertos pelo Brasil contra produtos americanos nesse mesmo período, num total de 23.

O México impôs uma ação antidumping nas suas importações de sacos para cal e cimento, mas tem em seu débito, por exemplo, uma investigação pedida pelo Brasil contra o PVC mexicano. O Peru sobretaxou dois produtos têxteis brasileiros acusados de provocar prejuízos à indústria daquele país.

O recordista em investigações antidumping contra o Brasil é, no entanto, a Argentina, a principal parceira do Mercosul, com 36 ações – ou 41% do total de 87 casos, parte dos quais referentes a produtos industrializados de alto e médio conteúdo tecnológico. Por sua vez, o Brasil é responsável por apenas seis ações contra os argentinos.

Há uma explicação, no entanto, para esse aparente excesso de zelo da Argentina contra a indústria brasileira e a boa vontade desta para com a parceira do Mercosul. Como o Brasil é mais competitivo e uma parte significativa de tudo o que os dois países produzem está sob o relativo regime de livre mercado, os produtos brasileiros chegam à Argentina a preços mais convidativos que os similares lá fabricados. Obviamente, a atitude dos argentinos não vem contribuindo em nada para o fortalecimento do bloco, que até por conta dessas ações parece hoje agonizar.

O que espanta nos processos brasileiros contra as importações tidas como comercialmente desleais não é apenas a quantidade de investigações antidumping, mas também a incrível variedade de produtos que deram origem a elas. Na verdade, parece não existir setor da economia em que os empresários brasileiros não sintam cheiro de dumping. Desde 1995, as ações incluíram cerca de 40 segmentos, que vão do metalúrgico ao de eletrodomésticos, do siderúrgico ao de brinquedos, do ferramenteiro ao de utensílios domésticos, do químico ao de plásticos.

Se até alguns anos atrás os países mais visados eram os latino-americanos, os europeus e os Estados Unidos – tradicionais parceiros comerciais do Brasil –, a atual grande vilã é, naturalmente, a onívora China, que responde por mais da metade dos 19 produtos hoje investigados no Departamento de Defesa Comercial (Decom), órgão do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior que decide se a eventual sobretaxa deve ou não ser aplicada.

Aliás, não é apenas no Brasil que a China desperta esse tipo de reação. Somente no primeiro semestre de 2006, o gigante do Extremo Oriente sofreu a imposição, por parte de vários países, de 15 novas sobretaxas contra exportações suspeitamente baratas. É bem verdade que os chineses aplicaram o mesmo número de ações contra parceiros, mostrando que o comércio internacional está cada vez mais longe de ser um paraíso do livre mercado.

A relação de produtos chineses investigados hoje no Brasil, além de extensa, é um pouco extravagante. Inclui ferros elétricos de passar, talhas manuais, armações de óculos e óculos de sol, alto-falantes, ventiladores de mesa, pneus e peças para bicicleta, brocas, escovas de cabelo, árvores de natal e até alho fresco.

E essa lista deve aumentar. A Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados) já está reunindo a documentação necessária para também pedir a adoção de uma sobretaxa antidumping contra a China. "Como está, a situação não pode continuar", esbraveja Hélcio Jacometti, presidente da entidade e proprietário de uma fábrica em Franca, pólo calçadista do interior de São Paulo. "A China, com seu baixíssimo custo de mão-de-obra, passou de uma produção de 3,7 bilhões de pares em 1994 para 9 bilhões em 2005, dos quais 6,9 bilhões destinados à exportação. Isso representa metade da produção mundial e 65% das exportações, que chegam ao Brasil em quantidades crescentes. Temos de nos defender dessa concorrência, que nos parece desleal."

Queixa de gigantes

De modo geral, a briga contra a China tem avançado para além do terreno da investigação, uma vez que das 45 sobretaxas hoje em vigor no Brasil, nada menos do que 12 incidem sobre importações que procedem de lá.

Outros países que estão sob investigação são o Chile (cartões semi-rígidos), a Nova Zelândia (leite em pó) e os Estados Unidos (resinas de policarbonato). Empresas da União Européia também são objeto desses dois últimos processos.

O porte das companhias brasileiras ou instaladas no país que solicitaram ação do Decom e estão à espera da sobretaxa (o processo costuma levar no mínimo um ano) é outra surpresa. Há verdadeiras gigantes entre elas: Philips, Black & Decker, Agfa, Panasonic, Bravox, Klabin, Papaiz e Policarbonatos do Brasil, para citar algumas. De todas, sempre a mesma queixa e justificativa: estariam perdendo espaço no mercado por causa do dumping de similares estrangeiros e, sem a imposição de sobretaxas, acabarão por ficar inteiramente fora dele.

"Por mais justa que seja a demanda para um país, entrar com ações antidumping indica falta de competitividade", afirma Roberto Nicolsky, diretor-geral da Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica (Protec), sediada no Rio de Janeiro. "É sinal de que os produtos fabricados internamente, além de não agregarem tecnologia diferenciada – o que os tornaria mais valorizados, mas de certa forma imunes à concorrência –, trazem embutidos custos muito altos. Porque nenhuma empresa iria praticar dumping se isso a obrigasse a baixar os preços até níveis insustentáveis."

Nicolsky vai mais longe. Segundo ele, a grande quantidade de medidas antidumping adotadas pelo Brasil – e a diversidade dos produtos envolvidos – seria também sintoma de uma doença mais grave, um certo fracasso do país em se inserir de modo mais confortável na economia globalizada. Olhando pelo outro lado do binóculo, ele atenta para o número muito maior de produtos que estão entrando no Brasil dentro das regras da OMC – ou seja, fora do alcance das medidas antidumping.

"Na verdade, por conta de seu portfólio tecnologicamente pobre, o Brasil vem se tornando, cada vez mais, um grande exportador de commodities e importador de artigos industrializados", diz o especialista. "Por isso, sente tanta necessidade de se defender." De fato, o volume de produtos importados aumentou 16% somente no ano passado – e, considerando apenas bens de consumo, o salto foi de 74%.

Enquanto isso, as exportações, baseadas em produtos relativamente baratos, que se impõem mais pela quantidade, cresceram irrisórios 3%. A participação brasileira no comércio internacional continua pouco acima de 1%, o mesmo patamar de 20 anos atrás – chegou a cair para 0,7% no transcorrer da década de 1990, quando o Brasil procedeu à abertura comercial, por meio da redução das tarifas alfandegárias. Assim, visto mais de perto, o decantado "salto nas exportações" dos últimos anos permitiu ao Brasil apenas recuperar a parte que lhe cabia em meados da década de 1980.

De acordo com Nicolsky, os países desenvolvidos também passaram a importar mais nesse período de globalização (o que fez, por sinal, o volume do comércio internacional duplicar nos últimos dez anos), mas evitam o desequilíbrio exportando principalmente itens de alto valor agregado. Na prática, eles importariam apenas os produtos de média ou baixa densidade tecnológica que já não têm maior interesse em fabricar, o que prejudicaria somente os setores mais atrasados de suas economias e que estão em vias de extinção.

"Não é esse o caso do Brasil, que, embora esteja ainda longe de se perfilar entre os grandes importadores do mundo, está simplesmente comprando no mercado externo produtos que ancoram sua indústria", observa Nicolsky. "Não consegue exportá-los, porque são artigos pouco competitivos, e não é capaz de aumentar a escala de produção porque o mercado interno está ainda muito concentrado nas classes médias. De certa forma, a globalização emparedou a indústria brasileira", sentencia o diretor da Protec, que vê como únicas saídas para o Brasil um maior investimento em pesquisa e desenvolvimento e a desoneração da produção, além da adoção de medidas conjunturais importantes, como a redução da taxa de juros e a retirada do real do alto patamar em que está hoje em relação ao dólar.

Escape

É pela porta do investimento, aliás, que alguns setores, impossibilitados de deter a invasão dos importados por meio de barreiras antidumping, estão tentando escapar. Um deles é o de máquinas e equipamentos, cujas vendas caíram 0,6% no ano passado, principalmente por causa da concorrência chinesa. O setor, que reúne quase 4 mil fabricantes (80% deles de pequeno porte e capital nacional), investiu em 2006 R$ 6,9 bilhões em modernização tecnológica, na reposição de equipamentos antigos e na ampliação da capacidade de produção.

Hoje, há máquinas chinesas que chegam ao Brasil com um preço equivalente a 30% do valor estipulado para similares nacionais. No entanto, o fato é que é muito difícil para as indústrias do setor comprovar a eventual existência de dumping por parte dos chineses – o que explica não haver nenhuma máquina atualmente na lista do Decom –, devido às próprias características técnicas e comerciais que vigoram na área.

Os empresários podem pagar por uma máquina com similar nacional uma média de 14% de imposto de importação (ainda um dos mais altos do mundo), mas, por um equipamento sem similar, em torno de 3%. O problema é que há milhares de "exceções", ou seja, máquinas com similares nacionais, mas diferenciadas em algum aspecto operacional, por exemplo, pelas quais o importador pode pagar uma tarifa especial, geralmente bastante baixa.

É por essa brecha, de resto perfeitamente legítima, dos "ex-tarifários", que as máquinas chinesas estão entrando no Brasil, ocupando hoje de 20% a 40% do mercado em alguns segmentos, como tornos, fresadoras, prensas e injetoras de plástico.

"O cenário é realmente complicado para nós, pois são dezenas os segmentos da indústria que estão comprando equipamentos chineses pela via dos ex-tarifários", diz Newton de Mello, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), cuja sede fica em São Paulo. "Para piorar a situação, são também muitos os setores que estão eles mesmos sendo afetados pela importação, e precisam de cada vez menos máquinas para tocar a produção."

Outro setor que tem patinado na luta contra o avanço chinês e em que as ações antidumping são, igualmente, de difícil aplicação (pelo mesmo problema da similaridade) é o têxtil, cuja produção física caiu 5% em 2006. As vendas no varejo, entretanto, cresceram 7% – a diferença foi suprida, é claro, pelos importados. Ainda assim, o setor está investindo em tecnologia e aumento de produção, com vistas à recuperação de espaços tanto no mercado interno como na exportação.

"É uma luta desigual", reclama Fernando Pimentel, diretor-superintendente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), entidade que reúne mais de 30 mil indústrias em todo o país, responsáveis por 1,6 milhão de empregos. "Além da importação a preços abaixo do normal, somos obrigados a conviver também com vendas ilegais. Em 2005, por exemplo, a China registrou a saída para o Brasil de 32 mil toneladas de peças de vestuário. Só que o Brasil computou a entrada de apenas 20 mil toneladas."

De acordo com Pimentel, o setor, que apresentou superávit por cinco anos seguidos – o último foi em 2005, de US$ 684 milhões –, despencou para um assustador déficit de US$ 600 milhões em 2006, e a expectativa é que essa conta alcance US$ 1,3 bilhão no final de 2007. Em janeiro deste ano, o saldo negativo já era de US$ 47 milhões.

"Entre janeiro de 2006 e janeiro de 2007, nossas exportações caíram 5%, e as importações cresceram 50%. Não há quem agüente tanta pressão", afirma Pimentel. Segundo ele, o setor continuará a exigir do governo, à falta de medidas macroeconômicas, pelo menos a elevação das alíquotas na área têxtil (que hoje oscilam entre 10% e 20%) para um patamar próximo ao da indústria automotiva, que é de 35%. "Não vamos desistir", garante, "mas precisamos de um mínimo de apoio oficial."

Já há muitos empresários e executivos brasileiros, no entanto, sem o mesmo ânimo de Pimentel. A fabricante multinacional de ferramentas Black & Decker, há décadas instalada no Brasil, simplesmente reduziu seus investimentos pela metade na comparação entre 2005 e 2006, de R$ 15 milhões para R$ 8 milhões. Por causa principalmente do dólar baixo, a empresa decidiu importar alguns produtos, em vez de fabricá-los. Obviamente, da China. A participação de itens importados – como ferros de passar roupa – em seu portfólio saltou de 20% para 35% de um ano e meio para cá. "Esticamos o elástico até onde foi possível", diz Domingos Dragone, diretor da companhia.

A ironia é que a Black & Decker foi a empresa que entrou, juntamente com a Philips, com um processo antidumping no Decom contra os populares ferros de passar chineses. Como diz o ditado, se não podes vencer o inimigo... 

 

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