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Música

Revista - maio 2006

 

 

Corações dilacerados

Com letras e melodias sofridas, estrelas como Maysa, Dolores Duran e Nora Ney fizeram brilhar o samba-canção em sua versão mais sentimental, a música de fossa

A música brasileira viveu um momento especialmente dilacerado durante os anos 50, com o auge do samba-canção - ou a popular música de fossa -, estilo da MPB que andava de mãos dadas com o bolero. A ordem era rimar amor com dor, sem economizar na dor. Nessa época surgiram grandes divas da cena musical brasileira, como Maysa (veja boxe Das altas rodas para os palcos), Dolores Duran (veja boxe Rainha do samba-canção), Ângela Maria e Nora Ney. Esta última, na opinião do pesquisador e crítico musical Zuza Homem de Mello, a maior estrela do estilo. "Ela representava o protótipo do tipo de voz requerido por essas músicas. Nora foi a intérprete de grande parte das canções escritas por Antônio Maria, um dos maiores compositores desse tempo, junto com Fernando Lobo", diz Zuza. Se Nora foi a maior de todas, Dolores Duran divide com Maysa o posto de pioneira na composição de letras e músicas no Brasil. É o que conta Maria Izilda Santos de Matos, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora de Dolores Duran - Experiências Boêmias em Copacabana nos Anos 50 (Bertrand Brasil, 1997), entre outros livros que falam dessa época. Antes disso, só Chiquinha Gonzaga havia composto músicas, mas não letras, para canções.


Quando esse time de estrelas da fossa dos anos 50 surgiu, o círculo do samba-canção era dominado por nomes como Orlando Silva, Francisco Alves e Lupicínio Rodrigues. Este considerado um dos reis das letras dor-de-cotovelo, outro apelido do estilo. O termo, reza a lenda, se refere à clássica cena boêmia de alguém sentado no bar, cotovelos apoiados no balcão enquanto mexe a bebida no copo e chora o amor que perdeu. De fato, o samba-canção já existia bem antes dos anos 50. Surgiu no fim da década de 20, como explica o pesquisador José Ramos Tinhorão, no livro Música Popular - Um Tema em Debate (Editora 34, 1997). "O samba-canção, também chamado (...) samba de meio de ano, surgiu por volta de 1928, quando o samba realmente popular - o samba de carnaval - acabava de encontrar o seu ritmo, diferenciando-se de uma vez por todas do maxixe", afirma ele. "Não se deve esquecer também que a produção desse tipo de música vinha atender às exigências de camadas da classe média que cada vez mais se ampliavam e se diversificavam, em conseqüência do adensamento da população no Rio, a partir de 1930." Os lançamentos vinham sempre depois do Carnaval, quando o público já havia escutado muito samba animado.


Dor de amor
No comecinho da década de 50, os temas preferidos pelo gênero giravam em torno de terríveis traições, ciúme enlouquecedor, desejo de vingança e desilusão. É interessante notar, observa a professora Maria Izilda, como o estilo dilacerado da música de fossa possuía características próprias no que dizia respeito à dor de amor masculina, expostas em canções como as de Lupicínio, e a feminina, observadas nas canções de Dolores. "As composições escritas por mulheres trazem sempre a dor causada pelo amor sob a ótica da culpa, da solidão e da espera. Já as letras escritas por eles têm sempre a questão da desconfiança, da mulher que traiu, que é ingrata e traiçoeira", explica ela.


Para dar idéia da dimensão do fenômeno dor-de-cotovelo que tomou conta do país de então, o crítico e pesquisador Zuza Homem de Mello compara aqueles tempos com as febres mais recentes da MPB. "Exatamente do mesmo modo como o pagode tomou conta dos bares das grandes cidades um tempo atrás, na década de 50 foi a música de fossa", conta ele. É importante lembrar que esse estilo de música foi um fenômeno absolutamente urbano. "Veio dos bares do Rio de Janeiro e acabou se espalhando para redutos de outras capitais, principalmente São Paulo. Nas cidades pequenas não havia um circuito de bares em evidência", explica Zuza. A professora Maria Izilda destaca também outro fator para que o auge da música de fossa acontecesse a partir do início da década de 50. Segundo ela, essa foi uma época existencialista. "Era o pós-Segunda Guerra, um tempo que, depois daquilo tudo, ficou marcado por um modo existencial de ver o mundo. Isso aparece na filosofia, na literatura, na música e nas artes de um modo geral", diz. Ainda segundo a professora, o sucesso do estilo também pode ser atribuído à popularização, principalmente pelo cinema, do jazz e do bolero. "Há uma grande internacionalização da música, influenciada principalmente por esses dois gêneros."


Marcou época
Um dos episódios memoráveis do período foi protagonizado pelo casal formado pela cantora Dalva de Oliveira e o compositor Herivelto Martins. "A separação do casal deu motivo a uma polêmica musical, que se estendeu por mais de dois anos", contam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello em A Canção no Tempo - 85 Anos de Músicas Brasileiras (Editora 34, 4ª edição, 2002). Segundo eles, de tal controvérsia participaram não apenas os dois envolvidos, mas também diversos compositores que abasteciam o repertório de Dalva e Herivelto, com "músicas-recado" de ambos os lados. Do lado dele, teriam ficado Lupicínio Rodrigues, Nelson Cavaquinho e Wilson Batista. Do dela, os partidários teriam sido Ataulfo Alves, Marino Pinto e Mário Rossi. Nessa história, quem saiu ganhando foi mesmo o público, presenteado com pérolas como Que Será, gravado com louvor (e dor, claro) por Dalva. O samba-canção ou música de fossa teve seu auge de 1952 a 1957. Daí em diante a bossa nova começa a roubar os holofotes da MPB para si. Sai o amor dilacerado e noturno da fossa e entra o amor leve e diurno da bossa. Os versos ficaram mais curtos e menos rasgados, o que seria um divisor de águas nas canções brasileiras. Mas essa já é outra história.


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veja boxe Das altas rodas para os palcos
veja boxe Rainha do samba-canção

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Das altas rodas para os palcos

Bem-nascida e casada com um herdeiro da família Matarazzo, Maysa deixou a vida de moça rica para tornar-se uma das maiores estrelas da MPB

As letras da música de fossa foram destaque em abril na programação de unidades do Sesc São Paulo. No Sesc Pompéia, a grande homenageada foi Maysa, a bela cantora e compositora saída da mais alta classe paulistana. O show, que teve a direção de Lea Freire e reuniu Paulo Moska, Pery Ribeiro, Virgínia Rodrigues e Paula Lima, fez parte do projeto Obra Viva, que visa a homenagear e resgatar o trabalho de alguns nomes da música brasileira. Nos anos 50, Maysa Figueira Monjardim seguiu o roteiro previsto para qualquer garota bem-nascida de sua idade. Em 1954, aos 18 anos, ela, que já compunha e tocava piano, estava casada com André Matarazzo, 20 anos mais velho e herdeiro de uma das mais tradicionais e ricas famílias paulistanas da época. Foi numa festa em sua casa que Maysa recebeu o convite de um produtor musical para gravar um disco. "Ela tomou de assalto o meio musical de São Paulo, à mercê de sua figura de mulher belíssima e exótica e do diz-que-diz em torno de seu sobrenome de casada, o de uma família notoriamente milionária, os Matarazzo", conta o crítico de música e escritor Zuza Homem de Mello, no texto de apresentação do show em homenagem à cantora, no Sesc Pompéia. "Todavia o que de fato fez de Maysa uma estrela, foi a música", afirma ele. Zuza lembra com nitidez a primeira vez que a viu. Era bonita, e ainda desconhecida como cantora. "Recebi um convite para tocar contrabaixo na festa de um casal muito rico (…), na Alameda Franca. Lá chegando, estava o pianista Louie Cole e a dona da casa, que, dizia-se, compunha e cantava. A horas tantas, paramos de tocar para que ela cantasse." Para surpresa de Zuza, Maysa abriu um caderno e cantou umas cinco canções, o suficiente para impressionar. Segundo ele, as músicas revelavam um grau de sofrimento em desacordo com a dona daquela festa. "Tivemos a sensação de presenciar o desabrochar de uma nova cantora, eventualmente uma compositora mais reflexiva que a média. Mas nunca o vulcão que seria", lembra Zuza.


O primeiro disco teve de esperar o nascimento de Jayme - Jayme Monjardim, hoje diretor de novelas da Rede Globo. Finalmente, entre 1956 e 1959, saíram, pela RGE, os quatro volumes da coleção Convite para Ouvir Maysa, com sucessos como Ouça, Adeus e Meu Mundo Caiu. Para felicidade da cantora e desgosto da família, ela se tornava, enfim, uma estrela da música brasileira. "Ela projetou-se como um foguete no ambiente musical mais sofisticado da capital paulista. (...) Logo teve um programa semanal exclusivo na TV Record, dirigido por Eduardo Moreira. Em branco e preto, mas dava para sentir o verde de seus olhos", conta Zuza. O sucesso na carreira levou a cantora para o mundo e contribuiu para o fim de seu casamento, fato que a abalou profundamente. "Ela foi a mais internacional estrela brasileira da época. Tocava na língua original, e sem sotaque", afirma o crítico. Após a separação, em 1960, Maysa mudou-se para o Rio e gravou o disco O Barquinho, um marco da bossa nova. Desde o fim do casamento, sua vida tornara-se agitada por casos amorosos e problemas com bebida. A morte chegou precocemente, aos 41 anos, em um acidente de carro no estado do Rio de Janeiro.

 

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Rainha do samba-canção

Apesar da breve carreira, os acordes e letras sofridas criados por Dolores Duran são lembrados até hoje

No Sesc Vila Mariana, o show interpretado pela cantora Patrícia Nabeiro foi em homenagem a Dolores Duran. Nascida Adiléia Silva da Rocha, Dolores adotou seu nome artístico quando descobriu que com o da certidão não ia muito longe. Escolheu, então, Dolores - nome latino e forte, numa época em que o bolero estava no auge - mais o Duran, que circulava bem mesmo em línguas estrangeiras. A estrela integra o time das que tiveram a breve carreira interrompida por um fim trágico. Aos 29 anos, em 1959, morreu, provavelmente devido a problemas cardíacos, depois de uma apresentação na boate Little Club, no Rio de Janeiro. Uma de suas primeiras incursões no mundo da MPB aconteceu também precocemente, aos 10 anos, quando foi a vencedora do programa Calouros em Desfile, comandado por Ary Barroso. Seu primeiro disco é de 1952 e traz músicas como Bom É Querer Bem, de Fernando Lobo. Três anos mais tarde, em 1955, sua carreira deu um passo largo, quando Dolores compôs sua primeira música, Se É por Falta de Adeus, com Tom Jobim. Foi, segundo a crítica especializada, o início de uma grande compositora. "Situada na fronteira da canção tradicional com a bossa nova, a obra de Dolores Duran a credencia como uma das maiores letristas da música brasileira", escrevem Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano no volume 2 de A Canção no Tempo. A parceria com Tom Jobim rendeu outras músicas, como Por Causa de Você e Estrada do Sol. Também são de Dolores Duran composições como Castigo, Fim de Caso e Solidão. "(...) O samba Castigo desenvolve de forma primorosa o tema do arrependimento, da culpa assumida ante a perda de um amor irrecuperável. É uma confissão sofrida, conformada, cantada em palavras simples (...), o que dá encanto maior ao poema", escreve a dupla de autores em A Canção no Tempo. Ao todo, Dolores Duran foi autora de 28 canções, entre as que escreveu em parceria e as de que criou letra e música. Foi pouco antes de morrer que ela compôs Noite do Meu Bem, seu maior sucesso.

 

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