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Revista - maio 2006

 

 

Corpos em liberdade

O coreógrafo norte-americano Steve Paxton fala da ditadura dos corpos perfeitos na dança e do contato-improvisação, técnica que ele mesmo criou

Steve Paxton é um dos nomes mais respeitados da dança contemporânea por ter criado, nos anos 70, a técnica "contato-improvisação" - cuja idéia principal se apóia numa equação do toque e do peso dos corpos. Durante sua passagem pelo Brasil, onde apresentou em janeiro no Sesc Belenzinho o espetáculo Sonho de Uma Noite de Verão Paxton, o coreógrafo falou à Revista E sobre a ditadura de corpos esteticamente perfeitos e saudáveis e bailarinos magérrimos, de partes do corpo que foram esquecidas pela dança ocidental, além da aplicação de sua técnica na educação das crianças. Aos menos íntimos do assunto, num primeiro momento o contato- improvisação pode parecer algo que não passe do inventado na hora. Nada disso. "O contato-improvisação tem parâmetros claros. Por meio dos sentidos, sabemos onde e como estamos no espaço. De certa maneira, é uma improvisação formal", explica. Depois de ter vindo algumas vezes ao Brasil, o coreógrafo anda encantado pelo samba, que conheceu em 2000, numa apresentação da Vai-Vai. "Percebi que é um ritmo muito saudável para a pélvis. O treinamento que tive de dança moderna ocidental me ensinou que essa parte do corpo era uma espécie de âncora, um lugar fixo, e as pernas se movimentavam a partir dela. No samba, na capoeira e em toda cultura física brasileira há muita informação para transformar essas idéias com o que vi", diz. E o que ele viu? "Braços e coluna bem livres, muita elegância masculina e movimentos muito inventivos e bonitos, além de um ritmo muito forte. Há uma improvisação do mestre-sala, que dança em volta da porta-bandeira, que é muito elegante."

Cresci envolvido pela cultura norte-americana de dança moderna. Graças ao efeito do contato que tive com outros modos de mexer o corpo, como as danças balinesas ou as artes marciais japonesa e chinesa, muito rápido percebi que havia várias organizações para o movimento em diferentes culturas. No Japão aprendi muito com o aikido [arte marcial japonesa]. Em Bali [uma das ilhas da Indonésia] pude ver muitas performances, que aconteciam nas casas das vilas locais. Essas performances não eram exatamente para as pessoas verem, eram para os deuses. Isso foi muito refrescante, depois de séculos de performances norte-americanas. No balé clássico e na dança moderna, a escápula [osso que compõe a articulação do ombro, antigamente chamado de omoplata] geralmente é reprimida, ela fica estabilizada e para baixo, os ombros não sobem, como se os braços estivessem presos a uma articulação fixa. Certa vez, vi também um filme sobre dança javanesa e percebi que a escápula era usada expressivamente. Eles pensam na dança muito mais próxima da coluna do que a dança ocidental."




 

Corpos magníficos?
Cada cultura tem seus modelos físicos, o que produz nas pessoas a idéia do que é um corpo magnífico. Na cultura norte-americana, esse modelo de elegância é a mulher magérrima e a dança tem um papel nisso, porque ela produz essa superbeleza. Uma diferença básica entre a técnica contato-improvisação e a dança moderna e clássica é que a base da primeira está no peso e no toque no outro, enquanto na segunda, a base é sobre a potência de uma performance. O contato-improvisação é mais uma prática do que uma performance, e assim, de alguma maneira, tira os dançarinos da relação social em que eles são o centro. Não importa qual seja o sexo ou a condição do corpo, pois a técnica não é muito estilizada, nem muito rígida em sua fórmula. Percebemos que as pessoas em cadeiras de rodas poderiam praticar essa fórmula, de uma maneira que a cadeira se torne uma extensão de seus corpos. Ou seja, dança-se a entidade completa: a cadeira e o corpo. Porque o contato-improvisação é baseado no toque em vez do olhar, e através do toque acontece essa troca de peso. Nós procuramos muito para descobrir qual é a troca entre o portador de deficiência e o não-portador. Pessoas como o diretor norte-americano Alito Alessi vêm refinando seu método de trabalho por muitos anos, para ter em suas aulas qualquer tipo de pessoa: cegos, surdos, autistas, pessoas com paralisia e com danos cerebrais. Isso existe no balé? Nada disso tem a ver com a perfeição, mas sim com a lógica dessa técnica em particular. Por enquanto, ainda não se usa uma técnica específica para receber essas pessoas na dança, mas o contato-improvisação oferece uma técnica para trabalhar qualquer tipo de corpo, por isso funciona com eles. A diversidade de corpos tem um grande impacto na sociedade e o palco reflete a condição das pessoas. Portanto, se os portadores de deficiência estão no palco, se torna mais fácil incluí-los na sociedade. Pode ser esse o estopim para a sociedade pensar em tirar essas pessoas do pesado papel de deficientes físicos. É muito doloroso para um portador de deficiência ser tratado como uma criança.


Contato-improvisação nas escolas
O papel da educação física nas escolas é evitar problemas e doenças causados pelo sedentarismo. Para esse propósito, os jogos são perfeitamente corretos. Na verdade, não é realmente educação física, e sim educação sobre jogos, geralmente competitivos. Não contém informações sobre anatomia e sobre o sexo oposto. Se realmente fosse educação física, acho que o contato- improvisação seria útil. Porque é óbvio que através do toque o ser humano vai entrar em uma área de tabu. O contato- improvisação questiona muitas dessas coisas e pergunta se existe uma maneira de interação física que não seja focada no erótico. Isso requer que você reconheça a identidade e a integridade do outro. O contato-improvisação não se preocupa se uma pessoa é forte e outra é fraca. A técnica está interessada na solução da equação da fraqueza versus necessidade de força e da deficiência do conjunto em geral. Não é sobre quão rápido, alto, forte, flexível o indivíduo é, esses não são os pontos. O ponto é sobre a qualidade de uma parceria, não a quantidade. Se na escola os professores pudessem aceitar as diferentes realidades e soubessem lidar com os problemas dos alunos, então, seria interessante experimentar o contato-improvisação. Sinto que deveriam começar esse tipo de trabalho já nos primeiros anos do aluno na escola. Seria uma forma de ser honesto com as crianças, sobre como os corpos deles são e sobre como vão se desenvolver.

 

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