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Em Pauta

Revista maio - 2006

 

 

Rede de insegurança

Em outubro de 2002, a estudante Suzane von Richthofen chocou o país ao confessar o assassinato dos pais enquanto eles dormiam em casa, no bairro do Brooklin, Zona Sul de São Paulo. O motivo do crime seria uma suposta oposição deles ao namoro de Suzane com Daniel Cravinhos, também envolvido nas mortes. No mês passado, um jovem de 17 anos confessou ter matado a mãe estrangulada, afirmando que o crime ocorrera após uma discussão. Casos de violência extrema como esses mobilizam a sociedade não somente por sua natureza, mas também por refletir um desgaste nos relacionamentos familiares. Em artigos exclusivos, o mestre em orientação familiar André Pessoa (leia o artigo) e a antropóloga Alba Zaluar (leia o artigo) abordam as complexas conexões que sustentam a relação entre pais e filhos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


Onde nasce a violência?
por André Pessoa

É rica a experiência de algumas pessoas que vivenciaram as mudanças que a sociedade tem experimentado no último século. Suas histórias se iniciam com recordações da infância, quando viviam numa estrutura familiar, cujas relações se baseavam no respeito hierarquizado e no autoritarismo do pai. Não deixa de ser uma injustiça que hoje não recebam o mesmo tributo que eles próprios dedicavam aos mais velhos de então.

Cantava Vinicius, "quem planta vento colhe tempestade". Seria a irreverência da juventude atual ainda conseqüência dos movimentos dos anos 60? Poucos foram aqueles que viveram de fato o Woodstock, mas partilharam de sua música, de seus ideais e de sua rebeldia. A tecnologia das comunicações em pleno desenvolvimento terminou por disseminar tais ideais por toda uma geração na civilização ocidental.

O lema "é proibido proibir" terminou na decisão de não se ser tão rigoroso com os filhos. A geração hippie teve como efeito colateral o que o autor Enrique Martín chama, em seu livro com o mesmo nome, "pais light".

Se, por um lado, a pressão nas relações familiares era alta, por força da submissão ditatorial e dos castigos físicos, por outro lado, os pais eram eficazes em incutir valores e virtudes nos filhos.

Os pais light eram pessoas de personalidade e de caráter, pela disciplina educacional recebida, que resolveram espontaneamente reduzir a pressão familiar. Por mais que fossem bem-intencionados, por outro lado, o conflito entre gerações permanecia, e com freqüência os assuntos polêmicos elevavam a tensão com os filhos. Laissez-faire, deixa para lá... se você quer conquistar o filho, limite-se a ser legal com ele. Adicionalmente, a onda tecnológica deslumbrava os próprios pais, que se deliciavam em fazer as vontades dos filhos e vê-los gozar a vida. Os pais light criaram o que o educador Içami Tiba chama de "geração dos folgados".

Nesse ínterim, se fez sentir as conseqüências nas escolas. Os professores, que até então eram felizes em desfrutar nas salas de aula a disciplina que havia nas famílias, passaram a não ser tão respeitados pelos alunos. Os avós, adeptos da educação rígida, também notaram a mudança dos tempos.

Os filhos "folgados" resolveram constituir família, com grande dificuldade. Por ser sem têmpera e menos virtuosos que seus pais, mais do que light, terminaram por ser vítimas dos próprios filhos.

Isso não havia acontecido com seus pais light, pois esses não se deixavam dominar pelos filhos. Tinham personalidade, pois haviam crescido em ambiente onde imperava a educação de valores. Eram light na criação de seus filhos por livre e espontânea vontade, e de certa forma curtiam que seus filhos fossem "folgados". Os netos dos pais light terminaram por se transformar em verdadeiros algozes de seus pais.

As crianças, nos tempos atuais, estão verdadeiramente impossíveis com seus mimos. Os pais sucumbem facilmente à vontade dos filhos, que se tornam tiranos dentro e fora da família. Nos colégios, são capazes de todo tipo de desrespeito às regras, e conseguem com habilidade o apoio dos pais "folgados", o que lhes dá ainda mais força. Tania Zagury lança agora um novo livro [O Professor Refém, Record], solidarizando-se com os professores vítimas da estrutura familiar permissiva.

Duas gerações de educação permissiva, em dois níveis distintos, que geram pessoas sem valor, sem personalidade, que acham que o mundo é como as novelas, que o padrão de vida não pode cair quando se tenta entrar no mercado de trabalho ou constituir família. Oriundos de lares abastados ou não, pensam que o dinheiro entra fácil em casa.
O filho da família permissiva não está acostumado à dificuldade e ao esforço, base da educação do caráter.

O doutorando em educação João Malheiros costuma chamar alguns dos filhos da família permissiva de "os bolhas". Seus pais protetores os mantiveram em uma bolha por toda a sua infância e adolescência. Egoístas, violentos e pouco virtuosos, chegam à idade adulta, como cantava Caetano, "sem lenço nem documento", enfim, sem rumo, sem ideais, com dificuldades de manter amizades e emprego.

Lemos todos os dias nos jornais a agonia da sociedade... a geração "bolha" enfiando os pés pelas mãos. Tiranos com os pais até o desprezo, há quem morra pelas mãos de seus filhos algozes. Suzane, por exemplo, assassinou seus pais friamente. Filhos da classe média, buscam dinheiro fácil no tráfico, e as meninas se tornam garotas de programa porque curtem. São garotos que não mais acertam suas desavenças nas esquinas, mas com fuzil em punho.
É somente a ponta do iceberg que sai na mídia. As auditorias nas empresas registram índices crescentes de falcatruas e roubos internos, o mundo empresarial sofre os efeitos da propina institucionalizada e os membros dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário advogam em causa própria.

A família permissiva pode chegar a níveis caóticos. Seja pelo baixo nível de escolaridade dos pais, pela falta de esperança ou pela exclusão, a unidade familiar pode chegar a se dilacerar pela violência... e esta se espalha pelas ruas.

Há esperança. O caminho permissivo que grande parte das famílias escolheu no final do século 20, para reduzir a tensão familiar, foi o mais cômodo para os pais, ao abrirem mão da educação de valores e da formação do caráter dos filhos, em prol de uma falsa harmonia.

A educação de valores e a harmonia familiar são compatíveis!!! - mesmo considerando os conflitos das gerações e a antipatia natural da imposição de limites aos filhos.

Na família harmônica, conquistam-se os filhos pelo prestígio. Isso requer apoio mútuo dos cônjuges, que defendem com esmero o prestígio do outro. É natural que os filhos argumentem contra os limites impostos pelos pais. Não querem, de fato, derrubar os limites, mas testá-los. Sentem-se mais seguros quando transitam livres na fronteira estabelecida pelos pais. Brigam somente para que esse limite seja mais amplo. Sentem-se amados quando os pais estabelecem limites. Os pais laissez-faire não amam seus filhos de verdade. Quando a autoridade é conquistada pelo prestígio e pelo respeito mútuo, não é necessário que haja castigos físicos nem autoritarismo.

O nível de violência nas ruas será menor à medida que cresça na sociedade o respeito mútuo - e este se aprende em família, com pais conscientes de que sua verdadeira missão no mundo é formar o caráter dos filhos.

André Pessoa é mestre em orientação familiar pela Universidade de Navarra, na Espanha, e professor do Instituto Brasileiro da Família (IBF)

 

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Indivíduos atomizados e violência juvenil
por Alba Zaluar

Há tempos fala-se de diferentes manifestações de violência como se fossem semelhantes e, pior, tivessem a mesma explicação. A tese da pobreza ou da desigualdade como a causa da criminalidade, inclusive a violenta, foi repetidamente utilizada na defesa dos pobres, mas justificando a preferência, carregada de suspeitas prévias, que policiais têm pelos pobres. Essa tese baseia-se no pressuposto utilitarista de que, movido pela necessidade, o homem agiria para sobreviver. Há uma redução de complexa argumentação para o primado do Homo economicus, comandado exclusivamente pela lógica mercantil do ganho e da necessidade material. Essa é uma das dimensões a ser consideradas, mas de fato explica a ambição de enriquecer de todos, sem importar o nível de sua renda e sua origem social. O maior problema com esse argumento economicista é que ele não deixa enxergar a dimensão do poder, do simbólico e da paixão destrutivos: o triunfo sobre o outro, o orgulho pela destruição do outro, o prazer de ser o senhor da vida e da morte, o gozo no excesso da liberdade na festa dentro da comunidade dos comparsas, presente tanto em assaltos à mão armada quanto em tragédias familiares e grandes massacres. Wolfgang Sofsky, sociólogo alemão que estudou o terror e escreveu um tratado sobre a violência, narra com crueza o que vem a ser essa paixão. Escolhe, para ilustrá-la, o personagem Gilles de Rais, nobre francês contemporâneo de Joana d'Arc que adquiriu o gosto de matar durante a Guerra dos Cem Anos e continua a fazê-lo quando não há mais guerra. Caçou, torturou e matou meninos com a ajuda de seus servos, conforme suas confissões.

Certos crimes recentemente noticiados, ocorridos principalmente em São Paulo, enterram, juntamente com suas vítimas, a possibilidade de empregar a mesma tese reducionista para entendê-los. Por que jovens de famílias abastadas, com alta escolaridade, matam seus pais, com ou sem a ajuda de terceiros? Por que, segundo as notícias truncadas do que ocorreu, os jovens assassinos eram usuários de drogas?

Mesmo que o Brasil não seja um país com um dos maiores números de usuários de cocaína no mundo, é preciso antes de tudo dizer que nem todos que usam habitualmente a cocaína terminam por matar os próprios pais. Longe disso. Há diferentes relações da pessoa que usa com a droga usada. Só a pessoa que se anula no desejo de repetir compulsivamente o consumo tem suas relações afetivas e seu cotidiano alterados para que essa imposição da busca imediata do prazer seja satisfeita imediatamente. Os "fissurados" ou viciados ou os que se submeteram à droga e perderam o controle sobre si mesmos são os capazes de furtar, roubar e até matar para satisfazer a vontade imperiosa de continuar elevando várias vezes o nível de dopamina no cérebro - aquela substância responsável pela sensação de bem-estar e prazer. Segundo os últimos estudos feitos sobre as interações entre os sistemas de neurotransmissores, a cocaína aumenta em 500% os níveis de dopamina em áreas críticas do cérebro.

Não temos estatísticas nacionais anuais para certificar, como faz a National Survey on Drug Use and Health nos Estados Unidos, onde se estima que 2 milhões de pessoas usavam correntemente a cocaína em 2002. Segundo o UNODC (Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime), no Brasil, 1% da população total fuma maconha, e 0,4% faz uso da cocaína. O mesmo órgão estima percentuais muito mais altos para os Estados Unidos e alguns países europeus: nos Estados Unidos, 2,5% usam cocaína e 11% a maconha; no Reino Unido, 2,1% e 10,6%; na Espanha, 2,6% e 9,7%, respectivamente. Como não há notícias de assassinatos cometidos por filhos contra os pais em proporções compatíveis com o maior uso de drogas ilegais nesses países, é preciso investigar melhor a interação entre o uso de drogas, a vida familiar e as políticas de tratamento do uso abusivo, para a redução de riscos, que marcam esses três países e deixam muito a desejar no Brasil.

Também não há dúvida de que as relações familiares mudaram na esteira de outras modificações havidas no consumo que hoje divide a família por ser muito mais individual e de estilo, com tantas marcas e modelos disponíveis nas lojas, quando antes era parte da produção familiar. As teorias são muitas. Uma delas, de fundo psicanalítico, diz que a adoção de um comportamento em que a sociabilidade e a moralidade se tornaram adversárias fez abandonar séculos de ideais democráticos e humanitários em prol dos prazeres individuais que se tornam o centro do mundo. Acompanha esse deslizamento para o indivíduo e seu prazer o descarte dos valores tradicionais, substituídos pela obsessão com o corpo e o consumo de drogas sem limites. A crise moral que se segue esvazia a autoridade das figuras que representavam e resguardavam aqueles valores: pais, professores, líderes políticos não têm mais a força moral que os fazia portadores de tais valores. O respeito, especialmente o respeito ao outro, é substituído pela busca desenfreada do sucesso, da imagem, dos ganhos monetários.

De fato, na sociologia contemporânea, a caracterização da sociedade no pós-guerra tem suscitado a reflexão em torno da fragmentação social, da atomização e da importância cada vez maior das atividades de lazer e consumo na definição das novas identidades. Se, de um lado, a individualização crescente garante possibilidade de escolhas que tornariam o indivíduo mais responsável pela própria biografia e por suas identidades - não mais prescritas nem determinadas pelos familiares e demais figuras de autoridade -, de outro, ressalta o isolamento do indivíduo, encapsulado nas gratificações narcísicas das imagens especulares. A primeira abordagem faz da crítica um passo necessário para a participação societária do homem enquanto sujeito de suas ações, fragilizando os controles morais convencionais que seriam substituídos por uma nova ética pós-convencional fundamentada na liberdade pessoal e no entendimento com os outros por meio do diálogo, da mutualidade e do respeito ao direito alheio.

Mas a idéia acerca dos compromissos de cada um com os demais no espaço público não se disseminou nas práticas sociais do final de milênio dominado pela idéia do mercado. Por isso mesmo, espalham-se em parte da juventude os hábitos mais imediatos de busca do prazer, seja no jogo, seja nas drogas, seja na diversão, que ganham maior importância na vida de vários setores da população, especialmente os mais jovens, o que torna lucrativo o investimento nos negócios que exploram o consumo, organizando atividades criminosas em torno daquilo que é proibido pela lei. As mudanças no consumo observadas como um dos efeitos do processo de globalização - do consumo familiar para um consumo "de estilo", muito mais caro, que inclui o uso de drogas - favoreceram igualmente o aumento impressionante verificado em certos crimes contra a propriedade (furtos e roubos) e contra a vida (agressões e homicídios). Nos jovens mais tomados por essas práticas sociais, nem mesmo a vida de seus pais pode ser um obstáculo à satisfação imediatista dessa busca desenfreada do prazer, do dinheiro, do poder e da gratificação adquirida pela imagem diante de seus pares.

É preciso retomar o processo que retira o caráter absoluto da autoridade, que estimula o diálogo e que permite aos jovens descobrir novas formas de estar no mundo, respeitando o próximo.

Alba Zaluar é antropóloga especializada em violência urbana

 

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