Rede
de insegurança
Em outubro de 2002,
a estudante Suzane von Richthofen chocou o país ao confessar o
assassinato dos pais enquanto eles dormiam em casa, no bairro do Brooklin,
Zona Sul de São Paulo. O motivo do crime seria uma suposta oposição
deles ao namoro de Suzane com Daniel Cravinhos, também envolvido
nas mortes. No mês passado, um jovem de 17 anos confessou ter matado
a mãe estrangulada, afirmando que o crime ocorrera após
uma discussão. Casos de violência extrema como esses mobilizam
a sociedade não somente por sua natureza, mas também por
refletir um desgaste nos relacionamentos familiares. Em artigos exclusivos,
o mestre em orientação familiar André Pessoa
(leia o artigo) e a antropóloga Alba Zaluar (leia
o artigo) abordam as complexas conexões que sustentam a relação
entre pais e filhos.
Onde
nasce a violência?
por André Pessoa
É rica a experiência
de algumas pessoas que vivenciaram as mudanças que a sociedade
tem experimentado no último século. Suas histórias
se iniciam com recordações da infância, quando viviam
numa estrutura familiar, cujas relações se baseavam no respeito
hierarquizado e no autoritarismo do pai. Não deixa de ser uma injustiça
que hoje não recebam o mesmo tributo que eles próprios dedicavam
aos mais velhos de então.
Cantava Vinicius, "quem planta vento colhe tempestade". Seria
a irreverência da juventude atual ainda conseqüência
dos movimentos dos anos 60? Poucos foram aqueles que viveram de fato o
Woodstock, mas partilharam de sua música, de seus ideais e de sua
rebeldia. A tecnologia das comunicações em pleno desenvolvimento
terminou por disseminar tais ideais por toda uma geração
na civilização ocidental.
O lema "é proibido proibir" terminou na decisão
de não se ser tão rigoroso com os filhos. A geração
hippie teve como efeito colateral o que o autor Enrique Martín
chama, em seu livro com o mesmo nome, "pais light".
Se, por um lado, a pressão nas relações familiares
era alta, por força da submissão ditatorial e dos castigos
físicos, por outro lado, os pais eram eficazes em incutir valores
e virtudes nos filhos.
Os pais light eram pessoas de personalidade e de caráter, pela
disciplina educacional recebida, que resolveram espontaneamente reduzir
a pressão familiar. Por mais que fossem bem-intencionados, por
outro lado, o conflito entre gerações permanecia, e com
freqüência os assuntos polêmicos elevavam a tensão
com os filhos. Laissez-faire, deixa para lá... se você quer
conquistar o filho, limite-se a ser legal com ele. Adicionalmente, a onda
tecnológica deslumbrava os próprios pais, que se deliciavam
em fazer as vontades dos filhos e vê-los gozar a vida. Os pais light
criaram o que o educador Içami Tiba chama de "geração
dos folgados".
Nesse ínterim, se fez sentir as conseqüências nas escolas.
Os professores, que até então eram felizes em desfrutar
nas salas de aula a disciplina que havia nas famílias, passaram
a não ser tão respeitados pelos alunos. Os avós,
adeptos da educação rígida, também notaram
a mudança dos tempos.
Os filhos "folgados" resolveram constituir família, com
grande dificuldade. Por ser sem têmpera e menos virtuosos que seus
pais, mais do que light, terminaram por ser vítimas dos próprios
filhos.
Isso não havia acontecido com seus pais light, pois esses não
se deixavam dominar pelos filhos. Tinham personalidade, pois haviam crescido
em ambiente onde imperava a educação de valores. Eram light
na criação de seus filhos por livre e espontânea vontade,
e de certa forma curtiam que seus filhos fossem "folgados".
Os netos dos pais light terminaram por se transformar em verdadeiros algozes
de seus pais.
As crianças,
nos tempos atuais, estão verdadeiramente impossíveis com
seus mimos. Os pais sucumbem facilmente à vontade dos filhos, que
se tornam tiranos dentro e fora da família. Nos colégios,
são capazes de todo tipo de desrespeito às regras, e conseguem
com habilidade o apoio dos pais "folgados", o que lhes dá
ainda mais força. Tania Zagury lança agora um novo livro
[O Professor Refém, Record], solidarizando-se com os professores
vítimas da estrutura familiar permissiva.
Duas gerações de educação permissiva, em dois
níveis distintos, que geram pessoas sem valor, sem personalidade,
que acham que o mundo é como as novelas, que o padrão de
vida não pode cair quando se tenta entrar no mercado de trabalho
ou constituir família. Oriundos de lares abastados ou não,
pensam que o dinheiro entra fácil em casa.
O filho da família permissiva não está acostumado
à dificuldade e ao esforço, base da educação
do caráter.
O doutorando
em educação João Malheiros costuma chamar alguns
dos filhos da família permissiva de "os bolhas". Seus
pais protetores os mantiveram em uma bolha por toda a sua infância
e adolescência. Egoístas, violentos e pouco virtuosos, chegam
à idade adulta, como cantava Caetano, "sem lenço nem
documento", enfim, sem rumo, sem ideais, com dificuldades de manter
amizades e emprego.
Lemos todos
os dias nos jornais a agonia da sociedade... a geração "bolha"
enfiando os pés pelas mãos. Tiranos com os pais até
o desprezo, há quem morra pelas mãos de seus filhos algozes.
Suzane, por exemplo, assassinou seus pais friamente. Filhos da classe
média, buscam dinheiro fácil no tráfico, e as meninas
se tornam garotas de programa porque curtem. São garotos que não
mais acertam suas desavenças nas esquinas, mas com fuzil em punho.
É somente a ponta do iceberg que sai na mídia. As auditorias
nas empresas registram índices crescentes de falcatruas e roubos
internos, o mundo empresarial sofre os efeitos da propina institucionalizada
e os membros dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário advogam
em causa própria.
A família permissiva pode chegar a níveis caóticos.
Seja pelo baixo nível de escolaridade dos pais, pela falta de esperança
ou pela exclusão, a unidade familiar pode chegar a se dilacerar
pela violência... e esta se espalha pelas ruas.
Há esperança. O caminho permissivo que grande parte das
famílias escolheu no final do século 20, para reduzir a
tensão familiar, foi o mais cômodo para os pais, ao abrirem
mão da educação de valores e da formação
do caráter dos filhos, em prol de uma falsa harmonia.
A educação de valores e a harmonia familiar são compatíveis!!!
- mesmo considerando os conflitos das gerações e a antipatia
natural da imposição de limites aos filhos.
Na família harmônica, conquistam-se os filhos pelo prestígio.
Isso requer apoio mútuo dos cônjuges, que defendem com esmero
o prestígio do outro. É natural que os filhos argumentem
contra os limites impostos pelos pais. Não querem, de fato, derrubar
os limites, mas testá-los. Sentem-se mais seguros quando transitam
livres na fronteira estabelecida pelos pais. Brigam somente para que esse
limite seja mais amplo. Sentem-se amados quando os pais estabelecem limites.
Os pais laissez-faire não amam seus filhos de verdade. Quando a
autoridade é conquistada pelo prestígio e pelo respeito
mútuo, não é necessário que haja castigos
físicos nem autoritarismo.
O nível de violência nas ruas será menor à
medida que cresça na sociedade o respeito mútuo - e este
se aprende em família, com pais conscientes de que sua verdadeira
missão no mundo é formar o caráter dos filhos.
André
Pessoa é mestre em orientação familiar pela Universidade
de Navarra, na Espanha, e professor do Instituto Brasileiro da Família
(IBF)
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Indivíduos
atomizados e violência juvenil
por Alba Zaluar
Há tempos fala-se
de diferentes manifestações de violência como se fossem
semelhantes e, pior, tivessem a mesma explicação. A tese
da pobreza ou da desigualdade como a causa da criminalidade, inclusive
a violenta, foi repetidamente utilizada na defesa dos pobres, mas justificando
a preferência, carregada de suspeitas prévias, que policiais
têm pelos pobres. Essa tese baseia-se no pressuposto utilitarista
de que, movido pela necessidade, o homem agiria para sobreviver. Há
uma redução de complexa argumentação para
o primado do Homo economicus, comandado exclusivamente pela lógica
mercantil do ganho e da necessidade material. Essa é uma das dimensões
a ser consideradas, mas de fato explica a ambição de enriquecer
de todos, sem importar o nível de sua renda e sua origem social.
O maior problema com esse argumento economicista é que ele não
deixa enxergar a dimensão do poder, do simbólico e da paixão
destrutivos: o triunfo sobre o outro, o orgulho pela destruição
do outro, o prazer de ser o senhor da vida e da morte, o gozo no excesso
da liberdade na festa dentro da comunidade dos comparsas, presente tanto
em assaltos à mão armada quanto em tragédias familiares
e grandes massacres. Wolfgang Sofsky, sociólogo alemão que
estudou o terror e escreveu um tratado sobre a violência, narra
com crueza o que vem a ser essa paixão. Escolhe, para ilustrá-la,
o personagem Gilles de Rais, nobre francês contemporâneo de
Joana d'Arc que adquiriu o gosto de matar durante a Guerra dos Cem Anos
e continua a fazê-lo quando não há mais guerra. Caçou,
torturou e matou meninos com a ajuda de seus servos, conforme suas confissões.
Certos crimes recentemente noticiados, ocorridos principalmente em São
Paulo, enterram, juntamente com suas vítimas, a possibilidade de
empregar a mesma tese reducionista para entendê-los. Por que jovens
de famílias abastadas, com alta escolaridade, matam seus pais,
com ou sem a ajuda de terceiros? Por que, segundo as notícias truncadas
do que ocorreu, os jovens assassinos eram usuários de drogas?
Mesmo que o Brasil não seja um país com um dos maiores números
de usuários de cocaína no mundo, é preciso antes
de tudo dizer que nem todos que usam habitualmente a cocaína terminam
por matar os próprios pais. Longe disso. Há diferentes relações
da pessoa que usa com a droga usada. Só a pessoa que se anula no
desejo de repetir compulsivamente o consumo tem suas relações
afetivas e seu cotidiano alterados para que essa imposição
da busca imediata do prazer seja satisfeita imediatamente. Os "fissurados"
ou viciados ou os que se submeteram à droga e perderam o controle
sobre si mesmos são os capazes de furtar, roubar e até matar
para satisfazer a vontade imperiosa de continuar elevando várias
vezes o nível de dopamina no cérebro - aquela substância
responsável pela sensação de bem-estar e prazer.
Segundo os últimos estudos feitos sobre as interações
entre os sistemas de neurotransmissores, a cocaína aumenta em 500%
os níveis de dopamina em áreas críticas do cérebro.
Não temos estatísticas nacionais anuais para certificar,
como faz a National Survey on Drug Use and Health nos Estados Unidos,
onde se estima que 2 milhões de pessoas usavam correntemente a
cocaína em 2002. Segundo o UNODC (Escritório das Nações
Unidas contra Drogas e Crime), no Brasil, 1% da população
total fuma maconha, e 0,4% faz uso da cocaína. O mesmo órgão
estima percentuais muito mais altos para os Estados Unidos e alguns países
europeus: nos Estados Unidos, 2,5% usam cocaína e 11% a maconha;
no Reino Unido, 2,1% e 10,6%; na Espanha, 2,6% e 9,7%, respectivamente.
Como não há notícias de assassinatos cometidos por
filhos contra os pais em proporções compatíveis com
o maior uso de drogas ilegais nesses países, é preciso investigar
melhor a interação entre o uso de drogas, a vida familiar
e as políticas de tratamento do uso abusivo, para a redução
de riscos, que marcam esses três países e deixam muito a
desejar no Brasil.
Também não há dúvida de que as relações
familiares mudaram na esteira de outras modificações havidas
no consumo que hoje divide a família por ser muito mais individual
e de estilo, com tantas marcas e modelos disponíveis nas lojas,
quando antes era parte da produção familiar. As teorias
são muitas. Uma delas, de fundo psicanalítico, diz que a
adoção de um comportamento em que a sociabilidade e a moralidade
se tornaram adversárias fez abandonar séculos de ideais
democráticos e humanitários em prol dos prazeres individuais
que se tornam o centro do mundo. Acompanha esse deslizamento para o indivíduo
e seu prazer o descarte dos valores tradicionais, substituídos
pela obsessão com o corpo e o consumo de drogas sem limites. A
crise moral que se segue esvazia a autoridade das figuras que representavam
e resguardavam aqueles valores: pais, professores, líderes políticos
não têm mais a força moral que os fazia portadores
de tais valores. O respeito, especialmente o respeito ao outro, é
substituído pela busca desenfreada do sucesso, da imagem, dos ganhos
monetários.
De fato, na sociologia contemporânea, a caracterização
da sociedade no pós-guerra tem suscitado a reflexão em torno
da fragmentação social, da atomização e da
importância cada vez maior das atividades de lazer e consumo na
definição das novas identidades. Se, de um lado, a individualização
crescente garante possibilidade de escolhas que tornariam o indivíduo
mais responsável pela própria biografia e por suas identidades
- não mais prescritas nem determinadas pelos familiares e demais
figuras de autoridade -, de outro, ressalta o isolamento do indivíduo,
encapsulado nas gratificações narcísicas das imagens
especulares. A primeira abordagem faz da crítica um passo necessário
para a participação societária do homem enquanto
sujeito de suas ações, fragilizando os controles morais
convencionais que seriam substituídos por uma nova ética
pós-convencional fundamentada na liberdade pessoal e no entendimento
com os outros por meio do diálogo, da mutualidade e do respeito
ao direito alheio.
Mas a idéia acerca dos compromissos de cada um com os demais no
espaço público não se disseminou nas práticas
sociais do final de milênio dominado pela idéia do mercado.
Por isso mesmo, espalham-se em parte da juventude os hábitos mais
imediatos de busca do prazer, seja no jogo, seja nas drogas, seja na diversão,
que ganham maior importância na vida de vários setores da
população, especialmente os mais jovens, o que torna lucrativo
o investimento nos negócios que exploram o consumo, organizando
atividades criminosas em torno daquilo que é proibido pela lei.
As mudanças no consumo observadas como um dos efeitos do processo
de globalização - do consumo familiar para um consumo "de
estilo", muito mais caro, que inclui o uso de drogas - favoreceram
igualmente o aumento impressionante verificado em certos crimes contra
a propriedade (furtos e roubos) e contra a vida (agressões e homicídios).
Nos jovens mais tomados por essas práticas sociais, nem mesmo a
vida de seus pais pode ser um obstáculo à satisfação
imediatista dessa busca desenfreada do prazer, do dinheiro, do poder e
da gratificação adquirida pela imagem diante de seus pares.
É preciso retomar o processo que retira o caráter absoluto
da autoridade, que estimula o diálogo e que permite aos jovens
descobrir novas formas de estar no mundo, respeitando o próximo.
Alba Zaluar
é antropóloga especializada em violência urbana
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