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Ficção Inédita

Revista maio - 2006

 

 

Os olhos de Maria Tereza

por Ricardo Soares

De longe, mas bem de longe mesmo, vem um vento agudo, frio, assobiador. São 4 horas da tarde e ela está deitada de bruços, mordendo a velha colcha vermelha. Tudo é silêncio no casarão colonial e um aviãozinho mirrado cruza aquele céu azul ardido que deve ter lá fora. Ela só ouve o barulho do aviãozinho e reflete mais ainda sobre o silêncio que invade seu quarto, a estância, a sua vida.

Na porta - retrato ao lado da velha cama de ferro -, o casal elegante se abraça momentos antes de entrar em uma recepção. Ele, apesar da barriga proeminente, não perde a elegância e o charme, vestindo com correção o seu smoking. Ela, de branco, mangas bufantes, colar magnífico no pescoço. Ela toda sorrisos. Ela com os olhos quase saltando do retrato antigo. Os olhos de Maria Tereza.

De nada adiantaria ficar lembrando agora daquela noite e daquela recepção. Foi beijada, abraçada, cortejada, desejada. Foi a estrela da festa. Seu colar magnífico era quase uma ofensa aos olhos alheios. Seus olhos úmidos e atentos eram o foco da atenção dos homens. Ah, os olhos de Maria Tereza. Mais que os ombros, as mãos, mais do que seus gestos delicados ou seu nariz arrebitado, eram seus olhos que atraíam a atenção.

Olhos de gazela no cio, leopardo acuado, leoa mansa que espera o sono. Olhos que evocam lugares-comuns, preces, cantilenas e promessas. Olhos tão vastos que por certo conseguiriam enxergar cada pedaço de terra perdido nos pampas, cada cabeça de gado gorda e sadia que fosse marcada a ferro quente com seu MT: Maria Tereza. Olhos de águia. Depois do vinho noturno, da fumaça dos cigarros e do aroma dos chás caros, olhos de vampira.

Depois de tantos fatos e versões sobre a vida e os olhos de Maria Tereza, para ela não havia mais a certeza do que era verdade e do que era mentira. Tanto especularam sobre sua trajetória individual e ao lado do falecido marido célebre que agora ela se misturava com sua própria história. Por conta dela também dava certeza de fatos que não existiram e juntava a eles mais aventura, mais glamour, mais mistério e tesão.

Quantas são as linhas da mão de Maria Tereza? Sabe lá Deus. Parecem ser muitas e compridas, extensas e ramificadas. Cruzamentos múltiplos que a levarão a uma vida longa, cheia de lembranças e delírios, e misteriosamente sempre emoldurada por uma beleza física que o tempo não ofusca. Maria Tereza olha as próprias mãos e não sabe o que vê. Imagina apenas.

Hoje ela sorri, constrangida, quando tenta na verdade dar uma risada solta, folgada, desapertada de parafusos e protocolos. Parece que desaprendeu a gargalhada e ainda fica no sorriso com arreios, freio de boca, sela bem amarrada ao torso de égua mansa e ainda fogosa. Fo-go-sa, fo-go-sa. Ela adora pronunciar essa palavra separando bem as sílabas. Essa palavra a excita. É uma palavra sexual, palavra boa de segurar com as mãos, morder. Uma palavra que lembra dosséis e camas imperiais, amores propícios e amores atemporais.

Recorda-se de suas próprias coxas colossais, que sempre marcavam as suas calças de montaria, quando pensa na palavra fogosa. Uma mulher quiçá fogosa ela tenha sido, embora quase casta na fidelidade absoluta ao marido. Linda e nova, nunca soube o que era ter olhos para outro homem além do marido. Fogosa.

O peito arfava quando a palavra a excitava, e ela pensava nos romances franceses que a proibiam de ler em sua juventude, nos calores que diziam possuir as mulheres mais ao norte do país, e recordava sinfonias perdidas porque remotamente ouvidas e amores ultrajados, fatos passados, mistérios que tem no coração toda virgem reprimida.
Agora, esse cheiro de olhai os lírios do campo, olhai as queimadas que se multiplicam para renovar pastos antigos e olhai esses adubos e hortas e geadas profundas. Agora vem o cheiro daquelas noites de outono, quando o barulho da chave na porta era delicado, a luz amarelada do abajur sendo acesa, o beijo de mate e uísque, o pouco carinho e o muito vigor e o silêncio que ficava depois. Sempre. O silêncio que chegava como um remédio, porque na maioria das vezes eles não tinham mesmo muito a dizer um para o outro.

Agora tinha ganas de tomar café. Muito café. Um café que há muito não bebia, porque na verdade foi condicionada ao mate. Mesmo ela gostando, o café por ali era meio proscrito enquanto ele vivia. Pois agora, com ele morto, ela se vingava. Queria tomar café até não poder mais. Queria fumar e tomar café e ficar perscrutando o silêncio com seus olhos de iguana no meio de toda aquela fumaça azulada. Queria tossir, pigarrear, se preciso fosse queria morrer de café e cigarro.

Assim sendo, e apesar da intensidade, esse cheiro forte só não chegava ao quarto deles. Deles, sim... porque, apesar de ele estar morto há mais de dez anos, ela deixou tudo como estava. Tanto é que a velha colcha vermelha de que ele tanto gostava e ela agora mordia estava lá, desde sempre. Desbotada como os anos e anos que passam sobre os retratos baços da família. Neles, até as crianças envelhecem, fantasminhas puídos de si mesmos.

Se o cheiro de café com cigarro não invadia o quarto deles, era justo e lógico. Ali sempre fora o santuário deles. O local onde os dois se desconheciam intensamente. Onde conversavam pouco, mas se olhavam muito e onde ficava aquela espreguiçadeira de couro marrom-escuro onde ele suspirava e lia horas a fio. Joaquim Nabuco, Antero de Quental, Capistrano de Abreu, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Santa Rita Durão, Frei Vicente de Salvador, Gonçalves Dias, Basílio da Gama, Euclides da Cunha. Ele amava e se educava com o português castiço, o pronome bem colocado, sobretudo quando se tratava de saber mais sobre a história de nosso país. E, como ele não gostava de café nem de cigarro, o quarto mantinha-se incólume a esses aromas, mesmo após a sua morte.

No quarto, agora, ela mordia a colcha e ouvia aquele silêncio sereno. Um silêncio cheio de energia, bem fornido, silêncio que come bem, alimentado de carne e gordura, imune ao frio e à amargura de silêncios dolorosos, famintos, pobres. Aquele era um silêncio solene e aprumado, que se permitia apenas ser violado pelo vento agudo, frio, assobiador, e pelo motor do aviãozinho que agora ia longe.

Depois de vida tão ruidosa, agora o silêncio a agradava. E, de todos os ruídos perigosos desta vida, não havia para ela nenhum mais ameaçador que o ruído da multidão. É como se ela ouvisse um tambor remoto, antigo, cheio de ódios e cobranças que viessem chegando. Quanto mais claro e mais próximo esse tambor chegava, mais se transformava no ruído da multidão ensandecida. Aquela que ganha uma cara medonha quando está junto da gente e uma cara ainda pior quando não está. Ela não pede mais, não bufa mais. Essa multidão grita, ameaça, se contorce e baba. É uma coisa impressionante.

Do alto do palanque foi essa multidão que seus olhos - sempre eles - viram naquela noite assustadora. Seus olhos de quase menina miravam - na relativa segurança do palanque onde ele discursava - cada pedaço daquela praça gigantesca onde o ódio, a fúria e a indignação se misturavam a toda sorte de bandeiras, faixas e cartazes. Aquilo era o fim do mundo, aquilo era o prenúncio de uma chuva longa e catastrófica, uma chuva que poderia vir a ser tempestade.
Ele discursava com vigor e de vez em quando ela tocava os ombros dele com a ponta dos lindos dedos de suas mãos. Era sua maneira de lhe dar carinho, apoio. Era sua meiga dedicação que ele percebia, apesar de tão concentrado na multidão e no discurso que visava a mudar o trágico rumo dos acontecimentos. No meio de seu vigor e de sua fúria, ele sentia a cumplicidade, o carinho e aquele estranho magnetismo dos olhos de Maria Tereza.

Foi-se o comício. Foram-se os trens. Foi-se a vida dele e de parte daquela multidão anônima, furiosa, abjeta e obtusa. Foi-se o roupão azul-marinho que ele usava, o sabonete Phebo, os goles de uísque sem gelo misturados ao chimarrão. Foi-se a conspiração, a promessa de dias melhores que virão, foram-se os dedos, os anéis, foram-se as mãos.
Resta ainda aquele clima seco da capital da República. Mas que calor, que falta de esquinas, que gente mais preocupada em se vestir solenemente e em comer mal em restaurantes caros para viabilizar projetos, emendas, leis e toda sorte de artimanhas. Resta a capital da República e sua única vantagem. Um pôr de sol lindo, palpável e concreto, feito de um vermelho único e cheio de poeira. Coisa de Planalto Central, quando os olhos de Maria Tereza preferiam planícies e, sobretudo, os pampas.

Chegou sem avisar o momento misterioso e revelador de Maria Tereza entender tudo o que havia acontecido entre a realidade, a fantasia, o palpável e a alegoria inventada nos livros de história. Maria Tereza entendeu que aquilo do que se vive é na verdade o que nos vai alimentar quando achamos que não vivemos. É residual. O que sobrou alimenta o que falta na entressafra. Tudo muito matemático, exato, completo, sem a menor possibilidade de exalar dúvidas.
Hora certa de sair do quarto. Maria Tereza atravessa todo o casarão, o cheiro de cigarro e café e vai para a varanda. São 17 horas e 17 minutos e o sol ainda é muito forte, fazendo um facho de luz alcançar até as samambaias mais escondidas na varanda. Maria Tereza, mirando uma planta estranha, diz baixinho: "Comigo ninguém pode". Aí empina o corpo, encara o horizonte como uma águia que busca a presa e deposita seus olhos em um ponto distante. O que estarão enxergando os olhos de Maria Tereza?

Ricardo Soares é autor, entre outros livros, de Cinevertigem (Record, 2005)



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