CANTO SAGRADO | Encontro com a cantora e atriz Virgínia Rodrigues

30/11/2022

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Leia a edição de dezembro/22 da Revista E na íntegra

EM CARTAZ COM O ESPETÁCULO UMA LEITURA DOS BÚZIOS, NO SESC VILA MARIANA, VIRGÍNIA RODRIGUES FALA SOBRE INÍCIO DA CARREIRA, ANCESTRALIDADE E PROTAGONISMO NEGRO

Por Maria Júlia Lledó

Quando criança, o movimento físico, e voluntário, de abrir a boca vinha acompanhado da articulação de poesias e melodias. É que foi pela música que a cantora e atriz baiana Virgínia Rodrigues primeiro se comunicou com o mundo. Nascida em Salvador, em 1964, cantou em casa, na escola, depois em coros católicos e protestantes, e em procissões da Semana Santa, até ser convidada pelo encenador Márcio Meirelles para participar do Bando de Teatro Olodum, em 1994. Com o grupo, se apresentou em Zumbi e Bye Bye Pelô. Nesse último, conheceu Caetano Veloso que, surpreendido pela voz e atuação da artista, produziu o primeiro disco solo de Virgínia, Sol Negro (1997), que fez sua voz reverberar.

De lá para cá, Virgínia lançou mais cinco álbuns, sendo o mais recente Cada voz é uma mulher (2019), com composições de artistas brasileiras, moçambicanas, cabo verdianas, angolanas e portuguesas. Atualmente, lapida seu novo projeto, Poesia e nobreza, disco e show com músicas de Paulinho da Viola e do parceiro musical de longa data Tiganá Santana, e ainda integra o espetáculo Uma Leitura dos Búzios, em cartaz no Sesc Vila Mariana. Dirigido por Márcio Meirelles, no espetáculo sobre a Revolta dos Búzios – mais conhecido como Conjuração Baiana (1798) –, ela contracena com jovens atores.

Neste Encontros, registrado no intervalo de um dos ensaios da peça, Virgínia Rodrigues fala sobre o início da carreira, o reencontro com o diretor e com o tablado, além de ancestralidade e do reconhecimento do protagonismo do povo negro.

Ouça, na íntegra, ao bate-papo de Virgínia Rodrigues com a Revista E
Do altar ao tablado

A música sempre foi muito forte na minha vida. A minha formação musical é em coral de igreja. Eu cantava no Coro de Câmara da Bahia e no Mosteiro de São Bento, mas, bem antes disso, fui protestante numa época e cantei no coral das igrejas. Isso tudo já adulta. Mas, a primeira vez que cantei em público, eu era criança. Foi numa festa na escola que a professora, ao descobrir esse meu lado, me botou pra cantar para as mães – Mamãe, estou tão feliz, interpretada e imortalizada na voz de Agnaldo Timóteo. Essa foi a primeira música que eu cantei, quando eu tinha seis anos. O que me levou à igreja sempre foi a música. Agora, foi Márcio Meirelles quem me levou ao palco. Ele me descobriu, inclusive, na igreja, quando eu estava cantando Oratório de Santo Antônio. O que eu sou mesmo é cantora. Mas, no palco [quando eu canto], a interpretação está presente. Ou seja, a cantora tem que interpretar porque existe uma poesia [na música]. Eu sou muito ligada à poesia quando escolho a música, mais até do que na melodia. Acho que acabo sendo uma atriz cantante.

Cantar o cotidiano

Eu sempre abri a boca cantando. Nunca entendi isso de “ela tem uma voz potente”. Vou ser sincera. Eu abria a boca e cantava porque cantar sempre me fez muito bem. Eu cantava até na cozinha das brancas, quando era empregada doméstica. Então, eu cantava porque, primeiro, cantar pra mim sempre foi um desabafo. Segundo, porque eu gostava de cantar mesmo, e cantar distraía minha cabeça. Então, eu cantava lavando pratos, areando panela, fazendo comida. Até hoje eu tenho esse hábito na minha casa, quando estou só. Para mim, isso sempre foi normal. Eu via as pessoas falando [da minha voz], a minha avó falava, quando era viva, as amigas de minha avó, as pessoas falavam para minha mãe. Eu também fazia muita serenata para amigos e colegas do bairro onde eu morava.

Ancestralidade presente

Eu procuro nunca esquecer de onde eu vim, quem eu sou, e falar do meu povo, da minha ancestralidade e dos meus ancestrais. Agora, aos 58 anos, eu sei que faço isso com clareza, mas eu já fazia isso antes, sem perceber. Até um dia em que o Caetano, o próprio Márcio Meirelles e algumas pessoas começaram a me falar isso: que eu trazia essa ancestralidade na minha voz, mas eu não percebia. Quando canto, por exemplo, uma música que não é ponto de candomblé, mas que fala de nkisi [termo que provém da língua africana quimbundo e que, em muitas línguas bantas, pode se referir a um espírito, um amuleto], eu canto com nkisi. Quando canto Mama Kalunga e Massemba, que falam de ancestrais que vieram ao Brasil, eu canto pensando naquele povo que estava no navio negreiro: no meu povo e na situação deles ali, naquele navio negreiro. Então, eu canto esse sentimento.

Parcerias no caminho

Fui apresentada a Caetano pelo Márcio Meirelles, quando Caetano foi ver o Bando de Teatro Olodum. Estávamos ensaiando a peça Bye Bye Pelô, que foi meu primeiro espetáculo no Bando. Era um ensaio aberto para o público – Márcio gosta muito de fazer assim –, e Caetano estava lá com uma filmadora. Minha personagem ficava o tempo inteiro calada. Ele não devia estar entendendo nada: aquela mulher preta, gorda, sentada no palco, enquanto todo mundo tinha texto e se pronunciava. Menos eu. Aí, no final [do espetáculo], eu saio desse lugar e canto uma música chamada Verônica, que é uma canção da igreja católica que fala: “Ó vós todos que passam por esta estrada, vejam se há dor semelhante à minha dor”. E Caetano me conheceu nessa hora. Ele ficou muito emocionado porque essa música, na Bahia, é tocada na Semana Santa e Caetano a ouvia na infância, em Santo Amaro da Purificação. Depois disso, foi Caetano quem fez a produção artística dos meus três primeiros discos – Sol Negro (1997), Nós (2000) e Mares Profundos (2004). Foi ele quem formou minha primeira banda, quem me levou para gravar em estúdio.

Leitura dos búzios

Eu fiquei muito feliz [com o convite para o espetáculo Uma Leitura dos Búzios]. Entrevistei o Márcio [em maio deste ano] no programa Terças com Virgínia, no meu Instagram. Ele, brincando comigo, falou: “Vou te trazer de volta para o teatro”. Eu disse: “Tá bom, Márcio Meireles, tá bom”. Levei na brincadeira. Aí, três meses depois, ele me liga dizendo que estava falando sério. Estou muito feliz, porque, primeiro, sempre gostei de trabalhar com o Márcio. No palco, tudo o que aprendi devo a ele. Foi ele quem me ensinou e me tornou uma profissional. Foi a partir daí que eu tive consciência do que é o palco, porque, antes, eu só tinha a experiência do que era cantar em um altar de igreja. E vou te falar, teatro é trabalho. Acho que porque demanda mais horas. Ainda mais com Márcio, que só gosta de trabalhar com elenco grande. Minha personagem é uma mulher negra africana cantando uma música para Exu, enquanto, atrás dela, passa uma procissão católica. Essa mistura está boa. As trocas com o elenco também têm sido de uma energia boa. Tem gente experiente e muitos jovens talentosos: baianos que vivem em São Paulo, outros na Bahia, e que precisam ser vistos. Precisa-se dar trabalho para essas pessoas que têm muito a dizer e contribuir. Precisamos deles como incentivo e luz para outros jovens que estão aí, querendo se encontrar.

Revisão histórica

Falar da história do nosso povo, da nossa ancestralidade, é não deixar que seja esquecida. Por isso [o espetáculo Uma Leitura dos Búzios] é muito importante. Porque querem que [a Conjuração Baiana] seja esquecida e, principalmente, querem nos calar. E a gente decidiu que não vai ficar calado. A gente decidiu que vai falar, porque as pessoas precisam saber que nós não temos nada para nos envergonhar. Estamos falando de coisas que as pessoas deveriam se envergonhar, e de pessoas que fizeram isso com a nossa ancestralidade e que querem esquecer porque, na verdade, eles queriam nos anular. Decidiram nos matar, mas a gente decidiu que não vai morrer, porque não quer. E isso incomoda muito.

Todos os públicos

Espero que venha todo mundo, não só o povo negro, mas também os brancos. Quero que venha todo mundo para conhecer. [Uma leitura de búzios] tem a questão de nacionalizar [a Conjuração Baiana], como o Márcio fala, mas, até na nossa Bahia, o povo não conhece a verdadeira história brasileira. É incrível e vergonhoso. O que eles ensinavam na minha época na escola: “Quem descobriu o Brasil”. Até eu crescer e descobrir que o Brasil não foi descoberto, mas invadido. “Quem libertou os escravos?” Até descobrir que os negros que foram escravizados não foram libertados. Nunca houve, de fato, uma abolição. Hoje, eu acho que nós queremos saber. Eu nasci em 1964 e cresci vendo que o povo negro ainda ficava meio escondidinho, meio assim… Escondia suas crenças, né? Ninguém podia saber. O povo era muito retraído. Era como se nosso povo estivesse sufocado e não aguentasse mais até ter tomado consciência de que viveu o tempo inteiro uma falsa abolição, de que viveu o tempo inteiro escondido e agora quer essa abolição de verdade.

Ensaio do espetáculo Uma Leitura dos Búzios, em cartaz no Sesc Vila Mariana. Foto: Tiago Lima.

PARA VER NO SESC:

Uma Leitura dos Búzios
Direção: Márcio Meirelles

Até 29/01/2023. Quinta a sábado, 21h. Domingos, 18h.
Rua Pelotas, 141 – Vila Mariana, São Paulo (SP)

Ouça, em formato de podcast, a conversa com a convidada Virgínia Rodrigues. A mediação do papo e da jornalista e editora da Revista E, Adriana Reis Paulics. 
Virgínia Rodrigues esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 26 de outubro de 2022. A mediação do papo e da jornalista e editora da Revista E, Adriana Reis Paulics. Edição de vídeo: Tiago Marinho (Vivarium Filmes).

A EDIÇÃO DE DEZEMBRO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Neste mês, discutimos como os cursos livres de EAD (educação a distância) democratizam o acesso ao conhecimento, aproximam especialistas em diversas áreas de alunos interessados em se capacitar em novos saberes, e com isso ampliam o repertório cultural. A reportagem principal de dezembro aproveita o crescente número de matriculados em espaços de educação a distância, principalmente depois da pandemia, para apresentar a plataforma EAD do Sesc São Paulo, onde estão disponíveis, gratuitamente, 13 cursos livres.

Além disso, a Revista E de dezembro/22 traz outros conteúdos: uma reportagem que mostra como manuscritos borram a fronteira entre documento e obra de arte, propondo um olhar possível por entre frestas do tempo; uma entrevista com o diretor Miguel Rubio Zapata sobre as convergências do teatro peruano com o Brasil e a defesa da criação coletiva como atitude, e não método; um depoimento com a atriz Julia Lemmertz sobre os 40 anos de carreira e a dedicação ao teatro; um passeio visual por imagens que celebram o legado do pensador utópico Darcy Ribeiro no ano em que ele faria um século de vida; um perfil do romancista Lima Barreto, morto há 100 anos e um dos mais brilhantes nomes da nossa literatura; um encontro com o canto sagrado da cantora Virgínia Rodrigues; um roteiro por cinco espaços culturais da capital paulista que mantêm lojas e livrarias abertas ao público; um conto inédito da escritora e poeta Eliane Potiguara; e dois artigos que refletem sobre a coragem.

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