Ed. 85 – Resenha/Livros: O amor ao amor de avós

16/01/2024

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Por Danilo Cymrot, Doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo e autor de O Funk na Batida: Baile, Rua e Parlamento (Edições Sesc, 2021).

O escritor português Valter Hugo Mãe dedica seu livro Serei Sempre o Teu Abrigo (ed. Biblioteca Azul, 2021) a seus pais e, na nota do autor, conta que o livro foi inspirado pela operação “de peito aberto” de sua mãe, que ficou saudável, seguiu amando e abrigando todos no seu coração. No imaginário social, a figura da mãe está associada a amor incondicional, cuidado, ternura e abrigo. Ainda que involuntariamente, Valter Hugo Mãe parece reforçar esse estereótipo em seu livro, que conta também com belas ilustrações de sua autoria. O útero materno é nosso primeiro abrigo e há quem diga que passamos a vida toda em busca da mesma sensação de segurança e conforto que experimentamos antes de nascer. Amadurecer implica justamente em cortar os laços que nos unem ao abrigo materno, aprender a caminhar com as próprias pernas e enfrentar as dificuldades da vida.

Em Serei Sempre o Teu Abrigo a figura real da mãe operada do coração, de peito aberto, é substituída pela figura da avó. Todas as características comumente atribuídas às mães, citadas no parágrafo anterior, são ainda mais acentuadas quando se trata de avós, consideradas “mães com açúcar”. Se o coração é o órgão humano associado ao amor, talvez não haja nada mais associado ao amor do que o coração de uma avó. Na canção “Coração Materno”, de Vicente Celestino, um filho mata a sua própria mãe e lhe arranca o coração como prova de amor a outra mulher. O coração cai no chão e neste momento uma voz ecoa, declarando o amor incondicional: “Vem buscar-me filho, aqui estou. Vem buscar-me, que ainda sou teu!”.

Curiosamente, no filme O Mágico de Oz (direção de Victor Fleming, 1939), o Homem de Lata, uma personagem que demonstra ser bastante emotiva, sonha justamente em ter um coração. O coração, símbolo dos sentimentos, mais do que o cérebro, é o que nos torna humanos e não máquinas. No livro de Valter Hugo Mãe, o receio do narrador é que a avó deixe de amar depois de ter o seu coração substituído por um “electrodoméstico”. Em contraposição ao amor demonstrado efusivamente pela avó, o amor do avô, “um homem de oficina”, “que habitava uma espécie de escuridão”, era bem mais discreto, silencioso, mas estava lá. De fato, em nosso mundo machista, homens não são educados para demonstrar afeto. No entanto, esse avô demonstrava amor não apenas pelos cachorros, animais conhecidos por amarem incondicionalmente, mas também ao demonstrar preocupação, cuidar da mulher convalescente e ao cozinhar, um ato visto pela avó como sendo de poesia, delicadeza e carinho (e visto socialmente ainda como um ato “feminino”, se não exercido profissionalmente).

No universo de realismo fantástico do livro, até os pássaros e as árvores demonstram se preocupar com a avó e amá-la. Quando a avó se vê em um momento de vulnerabilidade, todos que foram cuidados por ela demonstram querer ocupar agora a posição de cuidadores. Não é incomum que os filhos acabem se tornando “pais” de seus pais quando estes ficam idosos. Da mesma forma, não é incomum que esposas, ainda mais depois de muitos anos de casamento, se tornem “mães”/cuidadoras de seus maridos, ainda que a recíproca também possa ser verdadeira. Em Serei Sempre o Teu Abrigo a avó declara para seu marido que será sempre o seu abrigo e o narrador diz que “as pessoas abrigam-se umas nas outras”. Não se trata necessariamente de uma relação instrumental em que um cuida do outro, mas de um abrigo sentimental, recíproco.

Mais do que ser uma exaltação ao amor, no entanto, o livro corre o risco de reforçar uma série de estereótipos, romantizar papéis sociais e idealizar relações. Afinal, não é toda mulher que ambiciona ser mãe e nem toda mãe tem vontade de ser abrigo permanente para seus filhos. Muito menos para seus maridos. Nem todas as avós voltam o seu tempo às flores, às plantações e aos bordados, como no livro. Nem todos idosos são avós carinhosos, muito menos cuidados por seus filhos e netos. O narrador de Serei Sempre o Teu Abrigo considera os velhos heróis, pois “ainda sabem amar depois de tantas dificuldades”, pois “persistem sobretudo para cuidar de nós, os mais novos, e nos assistirem”. Ainda que isso fosse verdade, não parece ser algo positivo que os velhos tenham esse papel, ao contrário do que o narrador faz parecer. Da mesma forma, a constatação do narrador de que a avó era “puro amor” e que o avô “sem a avó não podia ser feliz” romantiza uma relação de dependência e falsa completude em que muitos casais incorrem. Até a tristeza da avó é vista como “mágica” quando ela chora em segredo e floresce em seu olhar uma flor azul.

Naturalmente o livro não tem a pretensão de ser um tratado sobre relações de gênero, etárias ou familiares. Serei Sempre o Teu Abrigo pode refletir uma experiência muito particular do autor, a visão que ele tinha dos avós/pais, independentemente da visão dos próprios personagens retratados, uma declaração de amor a avós idealizados, “heróis perfeitos”, ou mais do que isso: uma declaração de amor ao amor de avós. As últimas palavras do livro, “serão sempre o meu abrigo”, indicam como o narrador admira a relação entre os avós e aprendeu com a forma como seus corações “entendiam-se como uma verdade absoluta”. Ao mesmo tempo, indicam como o amor de avós permanece mesmo em suas ausências, após suas mortes. Abrigamo-nos no amor de avós, mas também na memória desse amor. Em sua versão em português de “Time Will Tell”, de Bob Marley, Gilberto Gil canta que “Jah jamais permitirá que as mãos do terror venham sufocar o amor” e que somente o tempo dirá se ainda há de abraçar sua avó, uma imagem carregada de ternura.

O receio do autor de que uma operação pudesse fazer com que a mãe deixasse de amá-lo, seja por não estar mais saudável, seja por metaforicamente ganhar um coração “mecânico”, reflete algo profundamente humano: o medo da perda de quem amamos, mas também o medo de que deixem de nos amar. Mães e avós não vivem para sempre. Não há garantia de amor nem de abrigo e essa é a tragédia que todos devemos enfrentar.

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