Ed. 86 – Painel da Longevidade: Da Celebração do Tempo

23/01/2024

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Foto: Helen Salomão

A todo momento nós, povos indígenas, somos bombardeados, quando não literalmente, com notícias de leis, projetos, marcos que buscam dar seguimento à violência contra nós. Certamente, como parte da terra que somos, todas as violências contra ela também nos atingem. Mas não é disso que quero falar hoje. Teimosamente, quando me convidam para falar sobre envelhecimento, irei falar da alegria.

Pode causar um estranhamento falar disso justamente quando reconhecemos o cenário de colonização em que vivemos, mas, como nos ensina cacique Babau (2019), o que mata nossos adversários é nosso sorriso. E seguimos com ele, junto a nossas lágrimas. Quando nossos povos cantam, dançam, quando festejamos a chegada de mais um bebezinho, quando celebramos mais uma taquara de vida dos mais velhos, avôs e avós (xamoi e xaryi). Essa marcação de tempo através do ciclo da taquara é explicada pela anciã Doralice (2018):

A taquara é muito importante na vida do guarani. O takuapu, bastão musical que as mulheres batem no chão durante o canto-reza, mborai, é do tronco da taquara. E as mulheres usavam a geleia da taquara para amaciar a pele e o cabelo. As taquaras também oferecem takuaraxó, uma larva que dá no centro do tronco e serve como alimento. Essas larvas só dão a cada 30 anos, e um modo de contar a idade da pessoa é dizer quantas taquaras ela tem. Se tem 30 anos, diz que tem uma taquara, se tem 60, duas. Tem gente que chega a viver três taquaras. Então a taquara tem um ciclo de vida, que a vida do guarani acompanha. Com 30 anos a taquara morre, seca, depois floresce e dá essa larva, takuaraxó. Pelo que eu entendo, a taquara tem um sumo quando amadurece, e as lar- vas vão comendo esse sumo. Então a taquara seca e as sementes caem, voam por aí. Os ratinhos, os passarinhos comem as sementes, mas algumas brotam (Poty, 2023, s/p).

Algumas brotam, seguem brotando. Por isso nossos parentes continuam fazendo o reflorestamento, da terra, do espírito. É preciso semear também a alegria e, ao contrário do que o capitalismo nos ensina, ela não está no consumo. Como dizia Alberto Caeiro (1993):

(…) às vezes ouço passar o vento e só de ouvir passar o vento já vale a pena ter nascido (…)
A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.

Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta.

É difícil pensar a alegria nas monoculturas, porque o que elas ensinam é que a vida que realmente importa, a verdadeira alegria, não está aqui e sim no futuro, na ida ao céu. E com esta economia tentam fechar a conta das injustiças, dos desencontros, dos conflitos, das desigualdades. Consolam-se dizendo que no juízo final, aí sim, tudo será colocado na ponta do lápis, que então haverá condenação para muitos e salvação para poucos. Que lá, nesse longe do tempo e do es- paço, estará lhes aguardando a redenção e a recompensa pelas tantas renúncias que fizeram ao longo da vida.

Talvez por isso fiquem tão ressentidos quando percebem que nem todo mundo abandona os prazeres e a alegria da vida em nome dos valores pelos quais renunciam às suas. Há séculos nossos povos são chamados de preguiçosos, afinal, como nos ensina Mestre Bispo (2023), nossos povos não entendem que a terra é o lugar da maldição, que o trabalho é o castigo e o sofrimento. É irônico que quem nos escravizou tenha a audácia de nos chamar de preguiçosos quando recusamos a servi-los, quando nos insurgimos. Esta urgência que o capitalismo, filho da colonização, coloca como mandatário do tempo, em que tudo precisa servir ao acúmulo, demonstra também, a meu ver, uma certa dificuldade em lidar com a condição de não controle, não previsibilidade que temos sobre o amanhã.

Em minha área, a psicologia, fala-se, em algumas discussões, sobre as chamadas fases de desenvolvimento, que é uma palavra que me causa calafrios. Isso porque a lógica da ordem, progresso, desenvolvimento, primitivo e evoluído fazem parte de todo um vocabulário utilizado contra nós, povos indígenas, nos marcos temporais da colonização.

Em interpretações mais conservadoras, as fases seriam progressivas e, uma vez superadas, qualquer reaproximação a elas seria algum tipo de regressão ou retrocesso. Nesta escada a linha temporal seria mais ou menos assim: bebê, criança, jovem, adulto/a, velho/a ou idoso/a (outros termos que em alguns contextos são vistos como quase um tabu). Falando em tabu, em seu livro Totem e Tabu (1974) Sigmund Freud propõe que nós, povos indígenas, seríamos a infância do humano, enquanto que os civilizados, estes sim seriam a evolução, a fase adulta da humanidade. Imagino que compreendam melhor agora os calafrios que mencionei, afinal é deste repertório sobre o tempo que a colonização também se faz. Nessas perspectivas, ser comparado a crianças é algo visto como ofensivo, como referente a seres atrasados, sem pensamento, desprovidos de autonomia. Vemos também variações deste discurso no etarismo, quando muito do que é associado a pessoas idosas é percebido como sinal de fraqueza, falência, inutilidade. Tanto o início dessa linha temporal, na imagem das crianças, quanto seu suposto fim, na velhice, são exemplos de como a ideologia capitalista colonial valora pessoas a partir de sua eficácia para a produção e para o lucro. Ainda que, a despeito destes discursos, o capitalismo, o racismo, a misoginia continuem a explorar de forma extremamente violenta o trabalho de crianças, jovens e idosos.

A liderança Jera Guarani (2020, p. 15) comenta sobre esta preocupação quando diz sobre a importância de nós não esquecermos que:

Não precisamos aderir a essa ideia insana de que temos que estudar como malucos para arrumar um emprego e trabalhar a vida inteira para, só depois, à beira da morte, percebermos que não aproveitamos nada. Temos que saber que podemos aprender outra cultura, mas que depois podemos usar o conhecimento de outras formas, para fortalecer nossa cultura e para mostrar aos nossos jovens que é possível sobreviver e viver bem sem ter salário na aldeia. Saber que podemos ir para a mata, que podemos aprender de novo as coisas da natureza com os mais velhos, e que está tudo bem.

Para nossos povos, estas duas gerações, a infância e a velhice, são especialmente importantes, o respeito e o carinho a elas são presentes de forma muito intensa em nossas narrativas de mundo. Talvez, dentre outros motivos, porque o critério que utilizamos não seja o do utilitarismo capitalista. Desta forma, ser comparado à infância do mundo, ainda que saibamos da intenção racista do gesto, não nos ofende. Pelo contrário, não há motivo algum para nos envergonhamos em sermos associados a seres tão criativos. Assim, quando a sociedade

(…) é contraposto à ideia de eternidade. (…) no mundo inteligível, as verdades eternas, necessárias, imutáveis e, no mundo sensível, justamente o mundo dominado pelo tempo. A eternidade não é uma forma de tempo; a eternidade aparece, em Platão, como a negação do tempo. O tempo existe no mundo sensível como o lugar da passagem, o lugar daquilo que não permanece, como o lugar da geração e da corrupção, como o lugar do aparecer e do desaparecer; enfim, como o lugar em que nada é permanente (…). Contra esta ideia de tempo, ligada ao mundo sensível e, portanto, ao mundo das aparências, Platão vai contrapor a imagem de eternidade como a negação do tempo.

Talvez por isso que seja tão difícil, na lógica da monocultura, falarmos de alegria, mais ainda, vivenciá-la, afinal, se as pessoas são ensinadas a ter consigo mesmas, com a terra, uma relação de inimizade, de antagonismo, de menos-valia, de onde virá o contentamento? Como festejar, celebrar e honrar o envelhecimento, por exemplo, se ele seria justamente o sinal de que o tempo, em sua passagem, seria sempre inferior à eternidade?

Se “amizade com o mundo é inimizade com deus”, então todo prazer, toda sensação de conforto em estar aqui se mostra como um perigo para a relação de fidelidade com a vida futura, já que só ela deveria ser almejada e por ela se fazem os sacrifícios. Para que o céu, este céu cristão, seja apresentado como algo superior à terra, ela é constantemente rebaixada. Seus rios, matas, florestas, seus bichos são vistos como se- res sem alma, portanto sem vaga no seleto grupo que acessaria o céu.

Alguns dizem “mas alegria da terra é passageira”. E pergunto aqui: qual não é? Aliás, também a tristeza é feita de passagens, idas e vindas. “Então você vai trocar algo duradouro por algo breve?” Esse é um falso dilema, a vida é feita de concomitâncias, de diferentes ritmos, cores, tempos. Com isso não digo que “podemos ter tudo”, há sempre algo que sobra, que resta, que falta. Justamente por isso que as alegrias, as tristezas e os encontros que temos são sempre parciais e passageiros, são tudo que temos, o que nos faz no mundo.

O cuidado de si e o cuidado coletivo é um modo de a gente poder continuar vivendo nossas experiências parciais, pequenas e imensas ao mesmo tempo.

Sem comparar negativamente essa vida com uma outra infinita, não falta nada nessa
Sem comparar a mutabilidade da terra com a imutabilidade do céu, não falta nada aqui

Sem comparar a carne com a alma, todo dia pode ser uma festa.
O voo do pássaro não é menor nem maior que o nado da baleia
A baleia e o tubarão não deveriam ser menores do que são, é na sua grandeza que está seu brilho
A formiguinha e o grão de areia não deveriam ser maiores do que são, porque é em sua pequenez que está seu brilho

Cada existência é como deveria ser: parar de brigar e de lutar contra nossa “natureza” é um ato revolucionário. Digo natureza entre aspas porque a ideia de natureza também é uma invenção, tomo mais uma vez as palavras de Caeiro (1946):

Vi que não há Natureza,
Que Natureza não existe,
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença, Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas ideias.
A Natureza é partes sem um todo.
Isto e talvez o tal mistério de que falam.

A obsessão em transformar as partes em um todo coerente é central na tradição eurocristã hegemônica (embora também possa estar presente, de outras formas, em outras narrativas). Essa vontade por estabilidade e imutabilidade cria a necessidade de um deus com essas características (supostamente perfeitas) que faltariam aos humanos (imperfeitos).

Essa busca tenta dar um sentido transcendental à existência, como se juntas as partes obedecessem a um todo coerente que as organizasse. É uma vontade que é fruto da dificuldade de sustentar a falta desse sentido, a falta de uma ordem, origem, destino, justiça ou predestinação. E nisso se tenta acreditar que “tudo ocorre por um motivo” que estaria por trás e para além da compreensão humana. Isso parece mais fácil que cogitar e afirmar que o sentido das coisas e do mundo, se é que existe, não é centrado no humano e muito menos é único.

Quando falamos sobre as identidades hegemônicas de gênero, acontece algo parecido. Somos ensinados a congregar características físicas, comportamentais etc. como pertencentes ao que seria masculino e outras que seriam referentes ao feminino. Há alguns esforços em movimentar essas partes, dizendo que a cor rosa, por exemplo, não é apenas feminina, mas também masculina – que cabelos longos podem ser masculinos etc. Mas ainda persiste a mesma rotulação. Quando afirmo que não acredito nessa ideia de masculino e feminino, alguns argumentam: então você não acredita que exista esse e aquele comportamento? E não se trata de negar a existência de preferências, atos etc., mas de negar a conclusão de que essas particularidades seriam composições de um grande todo que lhes daria sentido (masculinidade/feminilidade).

Recusar a ideia de todo implode o criacionismo e a necessidade de um todo/deus que lhes dê sentido prévio e pronto. Isso não é negar as diferenças, mas expandi-las e também daí que vem minha alegria, pois pelo menos de vez em quando, eu sei, eu lembro que não preciso de salvação, que não estou perdida, que nossos povos nunca estiveram. Que não pertenço nem à natureza, nem à cultura, nem a nenhum binarismo, que sou parte e ser parte é infinito e que tenho todas as idades do tempo. Que não preciso implorar por um perdão de um pecado que eu não acredito, que não me seduz o marketing e a propaganda que colocam a vida futura como um sonho de consumo, porque eu amo mesmo é essa vida, eu festejo e celebro cada folhinha, cada gota de chuva, cada grão de areia. Não reduzo o mundo ao humano, nem acredito que se, porventura, acabarem-se os humanos, haverá o fim do mundo, pois o fim do humano não é o fim do mundo. Ele não acaba se não existimos, somos nós que não existimos sem ele.

Como lembra Alberto Caeiro (1993):

Creio mais no meu corpo do que na minha alma,
Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade.
Podendo ser visto por outros,
Podendo tocar em outros,
Podendo sentar-se e estar de pé,
Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora.
Existe para mim – nos momentos em que julgo que efetivamente existe – Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo
Se a alma é mais real
Que o mundo exterior como tu, filósofos, dizes,
Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade Se é mais certo eu sentir
Do que existir a cousa que sinto –
Para que sinto
E para que surge essa cousa independentemente de mim
Sem precisar de mim para existir,
E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmissível? Para que me movo com os outros
Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos
Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo? Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente. E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas.
Cousa por cousa, o Mundo é mais certo

Se a vida futura vale mais que essa por ser eterna, imutável e fixa, então percebo que são estes os critérios que desqualificam e desmerecem a vida que temos aqui, por isso questiono:

Um perfume é menos cheiroso porque seu aroma não dura eternamente? Uma música é menos bonita porque dura apenas alguns minutos?
O sabor de um alimento é menos gostoso porque acaba?
O pôr do sol é menos deslumbrante porque dá lugar à noite?

Um amor não valeu a pena porque terminou ou se transformou?
O critério da eternidade desqualifica a vida
Ao mesmo tempo que a finitude nos desafia, é ela também que nos presenteia com o retorno e com ele podemos
Sentir novamente o perfume das flores
Ouvir mais uma vez a mesma música
Outras versões do mesmo som, entoar outros tantos
Alimentar-se outra vez e assistir ao pôr do sol de novo
Talvez todo amor seja à segunda, terceira, quarta… vista
Tem sempre um outro amor que o antecedeu
Há sempre um cheiro, um gosto, um sabor um encanto antes e depois

Parar de brigar com o tempo é deixar de tentar vingar-se de si, de ressentir-se com o que foi
Que a raiva, o medo, a frustração não se tornem bombas (auto) destrutivas, mas que sejam transmutadas em palavra, escuta, pintura, dança, lágrima, abraço
Há sempre mais saídas e entradas possíveis do que a dor imagina: coletivizar os anseios redistribui os pesos
Não é só a pele que se renova, as lágrimas e os sorrisos também

Portanto, se pecar vem do latim peccatum, i, derivado do verbo pecco, as, vi, ātum, are, “tropeçar, dar um passo em falso; enganar-se”, seguirei em minhas errâncias. E cometeremos o pecado da preguiça, do prazer da comida, teremos o direito à ira, ao sexo não reprodutivo que chamam de luxúria, ao orgulho que chamam de soberba e à admiração não invejosa.

Deste desejo de vida futura, limpa, pura e sem pecado, deste projeto de evolução e desenvolvimento que também está vinculado à ideia de ordem e progresso, a qual, por sua vez, é basilar da noção de tempo progressivo e linear. Para a sociedade dominante, nossos povos seriam o atraso, o empecilho ao desenvolvimento, enquanto que os ditos civilizados seriam o progresso do humano, seu depuramento. Humano, nesse contexto, não se refere a uma simples descrição biológica, mas a uma ficção política. “Mate o índio nele e salve o homem”, famosa frase do capitão genocida Richard Henry Pratt, na qual se percebe a oposição entre ser indígena/selvagem e cristão/civilizado/humano.

Apesar disso, a colonização segue atribuindo a seus valores o que haveria de mais positivo. E a despeito de tanta violência praticada pelo humano, a sociedade dominante segue dizendo que precisamos humanizar as relações, que precisamos de ainda mais humanidade. Isso porque seguem atribuindo uma essência positiva ao que chamam de amor, de salvação, de humano, de deus, de caridade e assim por diante. Assim, quanto mais violências são praticadas em nome deste projeto, maior sua defesa. E dizem que quem pratica as monoculturas da terra, do pensamento, da sexualidade, dos afetos, é desumano, que quem pratica racismo religioso é o “falso cristão” e assim por diante. Não observam que aquele que age de acordo com uma ideologia que postula que há apenas um deus verdadeiro, que todos os demais são falsos e devem ser destruídos, não está incoerente com ela, mas harmônico ao que ela prega.

É em nome dessa fé, dessa verdade supostamente universal e única, que as monoculturas buscam corrigir, curar e converter o que é dissidente. Como não são mitologias situadas e contingentes, as monoculturas não se contentam em fazer sentido apenas para um grupo, é preciso que todos sejam convertidos à sua verdade. Estas violações são especialmente desafiadoras, justamente porque operam em nome do bem e do amor, da salvação, do respeito, da família, dos bons costumes. De maneira que talvez nossa maior tarefa na luta contracolonial seja lidar com o pudor que nos ensinaram a ter com tudo que diz respeito a esse domínio, cujo questionamento soa, para alguns, como sacrílego. Talvez tenha chegado o momento de não mais nos envergonhamos em dizer: não, você não tem direito a ter qualquer fé, se sua fé pratica o racismo religioso eu não irei respeitá-la. Como ensina Mestre Bispo (2021), na luta contracolonial, quando tentam nos colonizar, a gente não deixa. Não aceita. Mesmo que essa colonização, mesmo que esse adestramento ocorra em nome do amor.

Nenhuma promessa de vida futura jamais será mais viva, real e mágica do que essa que se vive agora. E quando falo de afirmar a alegria, não estou desconsiderando a importância da tristeza, mas estou celebrando justamente a possibilidade de sentirmos do frio ao calor, do encontro ao desencontro. A colonização, quando nos coloca o peso das opressões, tenta nos roubar inclusive o direito a uma tristeza que também seja orgânica, viva. Por isso reafirmo meu carinho pelo mundo, tomando o cuidado de não o resumir nem à violência praticada pelos humanos, nem à promessa de uma vida infinita, eterna e superior a esta. Se vejo a beleza do pôr do sol não preciso acreditar que há um outro mais bonito que esse que ainda não vi, sua beleza já me basta. A existência das árvores só comprova a existência das árvores e a existência do vento só testifica que o vento existe. Não somos criaturas apenas, somos também criadores, inventores, porque é isso que a arte faz com a vida.

Quem aqui não está que não assine seu nome no que existe, não precisamos do milagre da exceção, em que poucos recebem as bênçãos da multiplicação dos pães, da água, do vinho. Se nossa fé não move as montanhas, elas já nos dão os frutos. Se somos nutridos pela água da chuva, que também alimenta os rios, os mares e as florestas, se essa mesma água que cai do céu e para ele volta, ela também compõe nossos corpos, então nós também somos o céu.

Comecei o texto lembrando do quanto os povos indígenas são associados à infância do mundo enquanto os ditos civilizados seriam a fase adulta do humano e fico refletindo sobre o quanto esta negação da velhice é também a negação do tempo e sua passagem e transformação inexoráveis, como se fossem algo a ser combatido, escondido, do qual deveríamos nos envergonhar. Se na sociedade dominante há esta dificuldade em respeitar e admirar as gerações da infância e velhice, talvez seja porque elas nos lembrem que a condição da vida é a interdependência. Que nunca deixamos, completamente, de precisar uns dos outros, precisamos do sol, da chuva, do abraço, do amparo. E essa interdependência não deveria ser considerada um rebaixamento da “evolução” e do “desenvolvimento” do humano. Pelo contrário, se, como ensinam nossos povos, conseguirmos olhar com mais generosidade para as interrelações entre nosso corpo e o vento, e os rios, e as montanhas, talvez nossa relação com esses seres também se torne mais harmônica.

Se assim como as plantas também temos nossas sazonalidades, lembro aqui de um tipo de vegetação, conhecido como caducifólias, plantas que, no inverno, ficam sem folha nenhuma para poupar energia e depois florescem novamente. O nome delas vem de caduco, que significa “cair”, deixar descer, ir. Nesse processo de deixar ir, cair, nesse processo de envelhecer, que possamos honrar não a eternidade, mas o tempo que circula de modo espiralar (POPYGUA, 2017). Nesse tempo, o instante e o primeiro respiro de vida valem tanto quanto o último – que também é o primeiro de outras tantas transformações, em minhocas, em ar, vento e terra, que, como lembra o parente Casé Angatu Tupinambá, não é o que temos, mas o que somos.

Autora:

Geni Nuñes

Doutora no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestra em psicologia social e psicóloga pela mesma universidade. Faz parte da Articulação Indígena de Indígenas Psicólogos/as (Abipsi).

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