MAIS REAL QUE A FICÇÃO | Entrevista com o cineasta Kleber Mendonça Filho

28/11/2023

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Com filme em disputa por indicação ao Oscar 2024, Kleber Mendonça Filho fala sobre a importância do cinema de rua em coexistência com as plataformas de streaming

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

Leia a edição de DEZEMBRO/23 da Revista E na íntegra

Dedicado à paixão pela sétima arte e movido, principalmente, pela experiência nostálgica dos cinemas de rua, o documentário Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho, é o representante oficial do Brasil na disputa por uma indicação ao Oscar 2024, na categoria Melhor Filme Internacional. No entanto, o peso inegável dessa premiação, que anunciará a lista com os pré-selecionados em 21 de dezembro, e os cinco finalistas, em 23 de janeiro do próximo ano, não tira o sono do cineasta e roteirista recifense.

Em viagens pelo mundo afora para exibição em festivais e conversas sobre seu quinto longa-metragem, Kleber Mendonça Filho se interessa mais pela recepção do público. Fator que, definitivamente, confere a essa obra cinematográfica um lugar de prestígio. Afinal, o cinema de rua, seja ele no Centro do Recife (PE) ou em qualquer outra cidade do mundo, abriga memórias que ficaram impressas na história. São como cápsulas do tempo que atravessaram transformações sociais, econômicas e culturais ao longo do século 20. Hoje, alguns desses espaços de exibição, convivência e formação resistem mesmo diante da falta de políticas públicas e da concorrência com centros comerciais e plataformas de streaming. Por acreditar no importante papel desses espaços, o diretor de Recife frio (2009), O som ao redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019) desenhou em Retratos Fantasmas seu mapa sentimental do Centro do Recife, e cruzou recordações pessoais com a história de importantes cinemas de rua na capital pernambucana.

Narrado em primeira pessoa, o documentário parte do apartamento, no bairro do Setúbal, onde morou com a mãe e o irmão, e que também foi locação para seus filmes, para flanar pelas ruas de um centro com ares de abandono. Nesta Entrevista, realizada no CineSesc, o diretor fala sobre o novo filme, selecionado para a mostra de melhores filmes de 2023, organizada anualmente pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), sua expectativa em relação ao Oscar, a presença das plataformas de streaming e a diversidade na produção cinematográfica brasileira contemporânea.

Ao longo da sua trajetória, o cinema de rua se manifesta como objeto de estudo em trabalhos como O som ao redor e Aquarius. Por que somente agora, em Retratos Fantasmas, você se dedica integralmente a essa temática?

Eu acredito que as coisas que você faz amadurecem no tempo certo e chegam na hora certa. Retratos Fantasmas é hoje conhecido como Retratos Fantasmas, mas eu vinha pensando, há muito tempo, num filme sobre a ideia da sala de cinema a partir da experiência histórica no Centro do Recife. Tanto é que em O som ao redor, há uma sequência no engenho, onde existe a ruína de uma sala de cinema. Em Aquarius, tem o [Cine] Moderno, que hoje é uma loja de eletrodomésticos. Ou seja, era uma ideia que já vinha sendo testada, de alguma maneira, e pensada ao longo de muitos anos. Porque eu realmente acho que o cinema, a sala de cinema, não deixa de ser uma máquina de viagem no tempo. Se você tem uma sala com 70, 80 ou 100 anos, e pensa em milhões de pessoas que já passaram por aquele lugar ao longo do século 20, isso para mim significa algo. Então, acho que esse filme vinha sendo pensado como uma ideia de cinema, e uma ideia de imagem de cinema, porque eu realmente acredito que uma câmera consegue fotografar o tempo, e acho que a força do filme — e uma das coisas que mais me deu vontade de fazê-lo — foi exatamente essa manipulação do tempo. Às vezes, era uma manipulação tátil. Porque eu mesmo digitalizei minhas fitas e fotos. Manusear o tempo é uma das coisas que mais me deu energia para ir atrás desse filme.


Entre memórias pessoais e públicas da cidade do Recife, o cineasta Kleber Mendonça narra em primeira pessoa
o documentário Retratos Fantasmas (2023), uma homenagem à sétima arte e aos cinemas de rua. Foto: Wilson Carneiro da Cunha

Há um saudosismo dos cinemas de rua pela experiência do público de sair da realidade das ruas para adentrar um cenário de fantasia na sala escura. Quando saímos de uma sessão num cinema de rua, temos uma experiência muito diferente de quando saímos da sala de cinema de um shopping, ou quando terminamos de assistir a um filme em uma plataforma de streaming. Qual sua reflexão sobre essas distintas experiências?

Eu gosto de somar experiências na vida e no trabalho. Por exemplo, fiz filmes de ficção e adoro que agora esse filme [Retratos Fantasmas] seja visto como um documentário. Gosto de somar as experiências e o streaming deveria ser uma nova maneira, uma nova “torneira” para a gente ter acesso a imagens do audiovisual. O problema é que o mercado tem uma maneira muito destrutiva de apresentar um novo produto. Toda vez que o mercado apresenta um novo produto, ele quer que você jogue fora o velho. Tenho a tendência de gostar de acumular. Eu quero que os cinemas de rua continuem existindo e que eles sejam, inclusive, objeto de investimento de governos e de prefeituras, como acontece no Recife – o [Cine Teatro do] Parque é da prefeitura e o [Cinema] São Luiz é do governo de Pernambuco –, porque são salas de formação, de cultura e de educação. Múltiplas cidades mundo afora utilizam cinemas de rua como espaços de formação. O CineSesc [na capital paulista] é um espaço de formação. Isso me parece inteligente: cinemas de rua e uma rede cada vez mais fortalecida. Acho que esse deveria ser um plano de governo no Brasil como é na França: o de investir em espaços de formação de rua, espaços de convívio. Os cinemas comerciais, de shopping, particularmente, não fazem a minha cabeça, mas eu vou às vezes. É muito ruim quando a maior parte dos cinemas estão em salas de shopping, e as salas de rua, cada vez mais desprestigiadas. E quando o streaming propõe ser o maior de todos, o mais importante, aí eu não gosto. Eu gosto, sim, da ideia de meu filme entrar no streaming depois de passar pelas salas de cinema, porque essas plataformas ocupam um papel muito importante na vida das pessoas, no mundo, no Brasil. Então, é muito bom saber que Aquarius, O Som ao Redor – e Retratos Fantasmas – estão no streaming. Mas depois de percorrerem todas as salas que puderem percorrer.

Gosto da ideia de fotografar uma fantasia, e desafiar qualquer pessoa a dizer: “isso é mentira?”

Foto: Adriana Vichi

Em algumas entrevistas, você já disse que filmes podem ser entretenimento, expressões artísticas, mas são, também, documentos históricos. Retratos Fantasmas talvez seja o filme que mais assume essa característica documental, inclusive, com o argumento da importância da história oral, com a entrevista de sua mãe na primeira parte do filme. Quando essa preocupação começou a fazer parte da sua carreira como cineasta?

Eu fui me dando conta disso aos poucos, em relação aos meus filmes. Talvez eu já estivesse ciente disso, mas em relação ao cinema como um todo. É um equilíbrio um tanto difícil de explicar ou de ensinar – eu acho que não dá para ensinar –, mas é um equilíbrio entre o filme ser interessante do ponto de vista de ser algo que diverte e, ao mesmo tempo, que tem um ponto de vista muito pessoal, verdadeiro e honesto sobre o que está falando. Acho que Retratos Fantasmas tem um ponto de vista muito honesto sobre o espaço urbano, sobre a cidade do Recife – ainda que seja adaptável para qualquer outra cidade. E, dos filmes que eu já fiz, acho que ele tem uma relação muito forte com Aquarius, porque Aquarius é um filme sobre arquivo. Lá tem um móvel especial, a cômoda, que também é um arquivo, é parte da história da personagem, tem as fotos que abrem o filme. Então, há uma relação muito forte entre Aquarius e Retratos Fantasmas. E eu acho que as pessoas têm captado isso de alguma maneira. Acho que tem tocado as pessoas porque todos nós temos uma história. Depende de cada família, cidade, lugar, mas todos nós temos histórias e tem muita gente que não tem imagens da sua vida, e isso é muito forte. E tem, também, muita gente com imagens da vida e que são acumuladas.

Há uma universalidade dos temas em Retratos Fantasmas, como o amor à sétima arte e a experiência do cinema de rua – o que pode ter contribuído para que o filme fosse indicado como representante do Brasil no Oscar 2024. O que essa indicação significa para o seu trabalho?

Eu estou viajando com o filme fora do Brasil também, e é muito interessante porque, no final das contas, é um filme sobre cinema. É um filme sobre fazer cinema, mas também sobre a capacidade que o cinema tem de ser apresentado em lugares públicos, resultado de uma crise recente que veio com a pandemia e com o streaming. Dois golpes que a indústria recebeu, ou se deu, porque o streaming é fruto da própria indústria. Mas aí, como o capitalismo gosta de comer a própria mão quando está com fome, eu acho que o streaming também entrou nessa autofagia, de se alimentar de si próprio, ou seja, autodestrutivo. Então, acho que Retratos Fantasmas tem sido visto como um filme sobre o cinema e ele tem se mostrado muito prestigioso lá fora. Ele tem uma presença internacional bem grande e eu acho que eu estou pronto para seguir o filme, acompanhá-lo e trabalhar para ele, se assim o filme quiser. Eu gosto desse filme e ele tem se comunicado com as pessoas. O Oscar tem um peso muito grande, que é inegável e chama muita atenção. Mas, eu tento ficar bem tranquilo, me lembrar do filme que fiz, que recebeu elogios e demonstrações de prestígio. Acho que ainda tenho uma boa maratona até o fim do ano.

Sua filmografia é atravessada por questões sociais, econômicas e históricas, pelas idiossincrasias do Brasil e, particularmente, de Pernambuco. Mesmo que seja pela ficção, o cinema age como um dispositivo que descortina a cegueira coletiva sobre temas da realidade?

Eu gosto da ideia de fotografar uma fantasia, e desafiar qualquer pessoa a dizer: “isso é mentira?”. Recife frio, por exemplo, é um filme totalmente mentiroso, mas ele é 100% verdadeiro, porque quando eu vejo um Papai Noel no verão brasileiro, em dezembro, no engarrafamento ou num shopping, é muito engraçado. É a importação de uma cultura que não é a nossa. Será que a gente não poderia ter um Papai Noel próprio? Sei lá, a gente tem o Zé Gotinha, mas não tem o próprio Papai Noel, né? Eu sempre achei isso muito engraçado. Aí você coloca isso no filme e de repente faz sentido, mas todo mundo continua vendo Papai Noel em dezembro no Rio de Janeiro de 42 graus; em São Paulo, num daqueles dias de alta poluição, no semáforo; em Recife, claro, na praia. Esses são recortes do que ver num filme, e aí você, como cineasta, vai juntando essas ideias. Mas, é muito difícil chegar a esse conjunto de ideias. É uma das partes mais difíceis de fazer um filme. Você falou que os filmes sempre têm aspectos sociais, né? Eu vim agora andando pela rua Augusta, atravessei a Avenida Paulista e aí estava, simplesmente, lembrando que em dezembro [de 2022] levaram meu celular. Um ninja numa bicicleta levou meu celular. Isso é realidade, né? Agora, vai colocar isso no filme: “ah… você está fazendo um comentário social”. Não. Levaram meu celular, é só isso. Eu perdi meu celular, que era bem caro, foi uma chateação para cancelar tudo, e de repente essa pode ser uma cena de ação interessante num filme. Tudo pode virar material.

Recentemente, o sucesso da série Cangaço novo (2023), dirigida por Fabio Mendonça e Aly Muritiba, foi apontado como fruto do sucesso de Bacurau, confirmando o interesse do público por um tipo de western que se passa no Nordeste brasileiro. Depois de quatros anos do lançamento, a que você atribui o sucesso de público de Bacurau?

Em primeiro lugar, em Bacurau há uma combinação entre o Brasil, inquestionavelmente o Brasil, mas ao mesmo tempo existe alguma coisa ali do cinema universal. A gente filmou com lentes Panavision, que são as lentes do cinema de Hollywood, por exemplo, mas a locação é o sertão do Nordeste, e a lógica é do Brasil. Mas, existe também uma lógica que é do western e do thriller, meio futurista. Aquela combinação, que eu não sei até hoje como deu certo, e de que gosto muito, provocou uma reação muito forte. Eu acho que tem também a lógica da violência no Brasil, e tudo isso as pessoas captaram. Porque uma coisa é ver essa lógica da violência no Jornal Nacional, que é muito deprimente, mas quando você vê isso reprocessado pelo cinema – e o cinema tem a capacidade de fazer uma fantasia em cima disso, e você viu anos de cinema americano, onde o americano é o dono do pedaço – tudo isso é muito interessante, até porque, surpreendentemente, os americanos se dão mal no filme.

Eu fico com a curiosidade de desvendar, de enquadrar essa cidade, que é muito doida. São Paulo é muito louca para você tentar dar conta em uma imagem ou várias imagens

Foto: Cinemascópio

Premiado em festivais nacionais e internacionais de cinema, como o Festival de Cannes, na França, que lhe rendeu o Prêmio do Júri em 2019, o longa-metragem Bacurau (2019) se passa num povoado do sertão pernambucano, onde moradores tentam reagir a uma série de assassinatos inexplicáveis

Quanto ao mercado audiovisual, há um avanço de representatividade de cineastas do Nordeste e de outros estados fora do eixo Rio-São Paulo? Ou, como diretor, crítico de cinema e coordenador de cinema do Instituto Moreira Salles (IMS), você observa que ainda há muito espaço a ser reivindicado?

Eu acho que hoje existe uma diversidade maior que vinte anos atrás. Nos anos 1990, quando eu me formei e queria fazer cinema, ouvia de todo mundo que eu teria que vir para o eixo Rio-São Paulo. De lá para cá, houve um fortalecimento do cinema, por exemplo, em Pernambuco, no Ceará, de políticas públicas e até da própria tecnologia. Porque nos anos 1990, o cinema era filme 35mm, era laboratório, câmera, negativo, e isso não tinha no Nordeste, não tinha em Belo Horizonte (MG), em Brasília (DF). E aí, com a tecnologia e as políticas públicas, fomos empoderados, de uma certa forma, e ganhamos espaço. O som ao redor, por exemplo, e o filme de Halder Gomes, Cine Holliúdy (2012), foram frutos de cotas para diretores do Nordeste. Isso empurrou a produção. E 2019 foi um ano muito interessante, com Bacurau, A vida invisível, A febre. Houve um equilíbrio entre filmes de prestígio e filmes de mercado, como Turma da Mônica: Laços (2019), que é muito interessante. Teve a retomada pós-Collor e agora a gente está na segunda retomada. É muito curioso observar que, em termos de capacidade de se expressar artisticamente, o cinema brasileiro está mais diverso. Mas, eu observo que as séries da Netflix e da Amazon sempre vão parar nas mãos de produtoras do Sudeste. Vejo que existe uma lógica de 50 anos atrás que está sendo replicada pelos streamers. Isso é muito curioso.

Seus filmes se passam no Recife, onde você já disse ter um mapa sentimental da cidade. São Paulo também é uma capital que você costuma visitar frequentemente. Você faria algum longa-metragem que se passasse aqui?

Eu sempre penso em fazer um filme em São Paulo ou no Rio de Janeiro (RJ), cidades onde eu não cresci, não vivi, mas eu já tenho uma relação. E por que não? O meu grande medo é fazer um “filme turístico”. Tipo: “ah… essa pessoa claramente não é daqui”. Quando você vê Vicky Cristina Barcelona (2008), de Woody Allen, tudo ali é quase língua na bochecha [expressão traduzida do inglês, tongue in cheek, usada para designar que uma declaração não deve ser considerada realista nem séria]. Filme de turista americano, mas, tudo bem, funciona. Porém, eu fico com a curiosidade de desvendar, de enquadrar essa cidade, que é muito doida. São Paulo é muito louca para você tentar dar conta em uma imagem ou várias imagens. É uma cidade muito complexa.

Assista a trechos da entrevista com o cineasta Kleber Mendonça Filho, realizada no CineSesc:

Captação do vídeo: Marina Pereira | Edição: Agência Riff

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