O legado de Dona Ivone Lara, rainha do samba e pioneira na musicoterapia

31/03/2023

Compartilhe:

O legado de Dona Ivone Lara, majestade do samba e nome fundamental para o campo da saúde mental no país

Leia a edição de abril/23 da Revista E na íntegra

POR MANUELA FERREIRA

O tiê-sangue (Ramphocelus bresilia), ave de plumagem vermelha e vocalização trissilábica, é uma das espécies emblemáticas da Mata Atlântica. Quando adulta, atinge até 19 centímetros e chega a pesar 35 gramas. Na falta de brinquedos, era um tiê-sangue a principal companhia da menina Ivone em seu começo de adolescência, nos anos 1930. O animal foi um presente dos primos Antônio e Hélio, que compartilhavam com a garota a paixão pela música e um interesse crescente pelo universo das escolas de samba da zona norte do Rio de Janeiro (RJ), que se agigantavam a cada Carnaval. Foi para o inseparável pássaro que Ivone escreveu, aos 12 anos, sua primeira composição – depois de sonhar com a melodia, os versos pousaram. Tiê, um clássico do cancioneiro popular brasileiro, é uma das faixas de maior sucesso do lendário Sorriso de criança (1979), segundo álbum de estúdio de Dona Ivone Lara (1922-2018), cantora e compositora que, desde pequena, soube encarar o mundo com poesia, delicadeza e talentos ímpares.

“Não é exagero nenhum dizer que dentre os grandes nomes da história do samba, Dona Ivone Lara é a que tem a formação musical mais completa. De seu pai e sua mãe, ela herdou o lirismo das melodias dos ranchos carnavalescos (agremiações anteriores às escolas de samba). Do tio Dionísio, com quem aprendeu a tocar cavaquinho, ela herdou a fluência melódica e harmônica do choro. De seus antepassados mais antigos – como sua tia, conhecida como Vovó Teresa –, herdou a ancestralidade espiritual do jongo”, revela o jornalista, escritor e pesquisador musical Lucas Nobile, autor da biografia Dona Ivone Lara: A Primeira-Dama do Samba (Sonora Edições, 2015).

Ala da compositora

Com os mesmos primos que deixaram o tiê-sangue aos seus cuidados, a artista aprendeu a compor sambas de terreiro, partidos-altos e sambas-enredos. Hélio dos Santos, o Tio Hélio (1903-2007), e Antônio dos Santos, o Mestre Fuleiro (1902-1997), seriam alguns dos muitos parceiros de composição da sambista ao longo da carreira – os três integraram, ainda, o grupo de baluartes da Império Serrano, desde antes de sua fundação, em 1947. Já em 1965, seria a vez de Dona Ivone Lara fazer história na agremiação do bairro de Madureira ao se tornar, oficialmente, a primeira mulher a figurar na ala dos compositores de uma escola de samba. No mesmo ano, compôs e venceu o concurso de sambas do Grupo Especial com a canção Os cinco bailes da história do Rio.

Tal pioneirismo resultava, porém, do machismo estrutural que atrapalhou a carreira artística de Dona Ivone, de diferentes maneiras e em diversos momentos, segundo o escritor Lucas Nobile. “Primeiro, [atrapalhou] no universo do Carnaval e das escolas de samba, quando ela chegou ao Prazer da Serrinha [escola que originou a Império Serrano]. Mesmo namorando com [seu futuro marido] Oscar Costa (1947-1975), que era filho do presidente e fundador da escola, Dona Ivone não podia se mostrar compositora pelo simples fato de ser mulher. Para driblar essa adversidade, os primos Hélio e Fuleiro apresentavam os sambas de Ivone como se fossem de autoria deles. Era o único jeito de conseguir apresentar aquelas composições”, detalha.

Ainda de acordo com Nobile, no dia da final do concurso, quando distribuíram o prospecto com a letra do samba, na quadra da escola, para o povo cantar junto, não tinham dado o crédito à compositora Yvonne Lara [nome de batismo da artista]. “Ela bateu o pé e disse: ‘Se meu nome não for creditado, o samba não sai’. Depois de muita resistência, o nome dela foi devidamente apresentado. [Os cinco bailes da história do Rio] é um dos sambas enredos mais cantados no país até hoje, um clássico de Ivone Lara, Silas de Oliveira (1916-1972) e Antônio Bacalhau”, pontua o biógrafo. Após o episódio, Dona Ivone desfilaria por mais de quatro décadas na Império Serrano, compondo a Ala das Baianas da Cidade Alta.

Berço musical

Órfã aos seis anos, a artista estudou no antigo internato da Escola Municipal Orsina da Fonseca, no bairro da Tijuca, onde conheceu as professoras que foram grandes incentivadoras: a pianista Lucília Guimarães Villa-Lobos (1894-1966) e a soprano Zaíra de Oliveira (1900-1951). No colégio, teve aulas de canto orfeônico, aprendeu a abrir vozes e a fazer contracantos, conforme explica Nobile. “Desde a infância, na cabeça da menina Ivone, hinos de Johann Sebastian Bach (1695-1750) conviviam naturalmente com ladainhas e cantos para orixás. É da diversidade do caldeirão musical familiar que brotaram todas as influências que transformaram Dona Ivone Lara numa das melodistas mais inspiradas do país”, analisa o pesquisador.

As férias escolares na casa do Tio Dionísio – que também tocava trombone – representavam dias de celebração. A época dos primeiros contatos musicais na infância e juventude foi rememorada pela cantora em 2004, aos 83 anos, em conversa com a escritora e pesquisadora Katia Costa Santos – o depoimento está no podcast Música Negra do Brasil, disponível nas plataformas de áudio. “Meu pai tocava violão de sete cordas. Minha mãe era crooner de um rancho, o Flor do Abacate, e tinha uma voz de soprano que todo mundo pensava que tivesse sido trabalhada, mas aquilo era dela, era nato. No nosso meio familiar, quando nos reuníamos, era aquela alegria”, recordou-se a intérprete.

Alvorecer

Paralelamente à carreira artística, Dona Ivone Lara estudou enfermagem, serviço social e se especializou em terapia ocupacional. A partir de 1940, teve papel primordial na reforma psiquiátrica no Brasil, atuando ao lado da médica Nise da Silveira (1905-1999), referência na defesa e aplicação de tratamentos humanizados para pessoas em sofrimento mental. “Foi Dona Ivone quem recomendou à doutora Nise que fosse criada uma sala com instrumentos musicais lá no Hospital do Engenho de Dentro [atual Instituto Municipal Nise da Silveira] para ajudar no tratamento dos pacientes com distúrbios mentais numa época em que pouco se falava em musicoterapia. No Serviço de Doenças Mentais, Nise, Ivone e toda a equipe cuidavam do inconsciente daquelas pessoas”, afirma Lucas Nobile. A então enfermeira Ivone acompanhou a implantação do espaço e supervisionou a interação livre dos pacientes com os instrumentos, certa de que a música proporcionaria um acolhimento essencial na rotina hospitalar.

Somente aos 56 anos, ao se aposentar do serviço público e após a morte do marido, a artista pôde se dedicar exclusivamente à música. O trabalho prévio na instituição psiquiátrica, segundo o escritor, refletiu-se de forma expressiva na trajetória musical da sambista. “Ao se dedicar por quase 40 anos a cuidar de pessoas com necessidades especiais, naturalmente todo esse humanismo inerente a Dona Ivone desaguou em suas criações musicais”. O universo onírico aparece com frequência na obra de Dona Ivone. “Lembro de alguns títulos de suas canções, como Sonho e saudade (1996), Força da imaginação (1982) e Nasci pra sonhar e cantar (1992). Não é à toa que o maior sucesso de toda a sua carreira tenha por título Sonho meu (1978)”, comenta Nobile.

Alguém me avisou

“Ela gostava de ficar no meio das pessoas, ouvindo samba, não só cantando, mas nesse ambiente saudável e gostoso, generoso, que é o do samba. Tenho lembranças de observá-la: sua postura, o que ela conversava, como ela conversava e dizia coisas sérias também”, lembra a cantora, escritora e pesquisadora paulistana Fabiana Cozza, uma das grandes intérpretes do cancioneiro de Dona Ivone Lara. Quando se viram pessoalmente pela primeira vez, em 2007, Fabiana há muito reverenciava a obra da saudosa sambista.

A reunião para a gravação da faixa Doces Recordações (1985), composta por Ivone Lara e o parceiro Délcio Carvalho (1939-2013), está presente no álbum Quando o céu clarear, lançado por Fabiana em 2007. Seguiram-se outros encontros  entre elas: em camarins, palcos e  aniversários na casa da artista carioca. “Lembro muito o seu canto espetacular. Os contracantos que Dona Ivone fazia, e que fez nessa faixa, deram bastante trabalho porque era tudo muito criativo, genial!”, descreve Fabiana.

O sorriso memorável e a expressão de alegria são constantes nos registros audiovisuais de Dona Ivone Lara até o fim da vida – como na ocasião em que, homenageada com o tema do desfile da Império Serrano, em 2012, viu todos os setores do Sambódromo da Marquês de Sapucaí a aplaudirem de pé. Cultuada de forma unânime, a intérprete de Sorriso Negro (1981) fez amizades no meio musical que rendiam histórias sempre contadas com humor.

Com a cantora Clementina de Jesus (1901-1987), por exemplo – com quem subiu ao palco em 1977, excursionando com o Projeto Pixinguinha – tinha um cuidado fraternal. A Rainha Quelé preferia descansar entre os shows, mas convencer a sempre festeira Ivone Lara a fazer o mesmo era tarefa difícil.

“Ela me tinha como irmã mais nova e me chamava de ‘mana’. Clementina estava mais idosa, e eu era mais jovem, de maneira que, quando chegava na hora de ela ir se recolher, eu também ia . Mas depois, eu ó, saía fora, e tomava parte nos sambas de roda. Uma vez, sabe o que eu fiz? Me vesti toda, me cobri até aqui, de sapato e tudo.  A Conceição [neta de Clementina de Jesus] chegou, olhou e disse: ‘A tia Ivone tá coberta até aqui, ela tá dormindo’. Quando eu vi que elas não falavam nada, levantei de ponta de pé e ó!”, disse, às gargalhadas, em depoimento ao podcast Música Negra do Brasil.

O Samba não pode parar

Sesc Mogi das Cruzes realiza série de atividades no centenário de Dona Ivone Lara

Para celebrar a trajetória  pioneira da cantora e compositora que deu régua e compasso a gerações de sambistas, o Sesc Mogi das Cruzes, na Região Metropolitana de São Paulo, realiza a programação especial Dona Ivone Lara: Axé! 100 anos de legado e vanguarda da rainha do samba. curadoria compartilhada entre a equipe da Unidade e o jornalista, escritor e pesquisador musical Lucas Nobile, biógrafo de Ivone, o evento revisita, ao longo de 10 dias, diferentes frentes do legado da artista.

Abrindo os festejos em 13/4, dia em que  Dona Ivone faria 101 anos de idade, a cantora Fabiana Cozza interpreta as canções do disco Canto da noite na boca do vento (2019), inteiramente dedicado à sambista. Em 16/4, Ilessi interpreta repertório de composições assinadas exclusivamente pela autora de Sonho Meu. Já no dia 20/4, Adriana Moreira canta, na íntegra, o álbum de estreia da baluarte da Império Serrano: Samba, minha verdade, samba, minha raiz (1978), que completa, em 2023, 45 anos de lançamento. 

“É comum, em outras homenagens, desenharem uma seleção de obras calcada nas parcerias dela com grandes letristas, como Délcio Carvalho, Jorge Aragão, Hermínio Bello de Carvalho, Nei Lopes, Paulo Cesar Pinheiro e Arlindo Cruz. Neste show, a ênfase será em canções com letras e melodias criadas apenas por Dona Ivone Lara”, explica o cocurador. Para marcar o encerramento do projeto, o Dia Nacional do Choro e o aniversário do maestro Pixinguinha (1897-1973), será a vez do espetáculo musical Dona Ivone Lara: uma sambista de choro e alma, em 23/4, no qual um grupo regional de choro apresenta composições da majestade do samba em versão instrumental.

MOGI DAS CRUZES

Dona Ivone Lara: Axé! 100 anos de legado e vanguarda da rainha do samba. De 13 a 23/4.

A EDIÇÃO DE ABRIL/23 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).

Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube

A seguir, leia a edição de ABRIL/23 na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.