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Meu mito, minhas regras!

Débora Lamm como Medeia. <br>Foto: Aline Macedo
Débora Lamm como Medeia.
Foto: Aline Macedo

Preciso que me escutem!

A frase inaugural da peça Mata teu pai, em cartaz no Sesc Ipiranga, é uma súplica que poderia ter saído da boca de qualquer mulher do nosso tempo, vítima da estrutura social em que vivemos, mas que dessa vez surge cavalgando na voz de Medeia, personagem mítica que encontra seu avatar contemporâneo no espetáculo.

Medeia, a feiticeira grega que traiu o pai e matou o irmão por um grande amor, foge do espectro sereno das mocinhas, e no paralelo traçado na personagem de Gracie Passô, autora da peça, encontra-se no mais humano dos patamares, fincando pé entre qualidades e defeitos diversos.

A personagem vagueia numa trajetória que tateia a ressignificação, seja da palavra “mãe” e todos seus adjetivos imbuídos; seja da figura do homem, pai, opressor, amante; ou mesmo do capitalismo e suas guerras. A senda feminina da maternidade, corre dúbia nas ideias de Medeia, que toma para si a capacidade de dar e de também extinguir a luz.

O texto de Grace Passô pulsa como sangue transbordando em feridas sociais, como o aborto, o patriarcado e a xenofobia. Como uma represa a se romper, invade com água e lama os ouvidos da platéia, incomoda, elucida, questiona; ferve em diferentes temperaturas a fim de dissolver antigos tabus. Propõe a quebra de fronteiras ideológicas, geográfica e sentimentais. Busca a cumplicidade nas relações femininas, a igualdade nas relações sociais e proximidade nas relações humanas.

O questionamento nos cega como um clarão e revela uma cegueira mais antiga, e incrustada sobre nossos olhos.

Quanto de Medeia há nas mulheres a nossa volta? Quanto dessas mulheres é formada a figura de Medeia?

Na direção de Inez Viana emerge o que há de mais retumbante na atriz Débora Lamm, capaz de dosar a fala, ora como veneno, ora como remédio, fazendo com que as palavras proferidas pela aquela mulher de mil, 20 ou 40 anos, deixem uma inquietude no espectador como um zumbido após uma bomba.

Em um cenário que se apresenta como uma fenda temporal, com tecnologias ultrapassadas e sucatas esculturalmente alicerçadas, um grupo de senhoras (alunas do curso de Teatro para a Terceira Idade do Sesc), preenche a cena dando outros matizes a esse mito moderno, e como numa dança trocam passos com Medeia na sua tragédia interpessoal.

Um sonho que se repete em noites diferentes, a Medeia que acorda todos os dias em corpos distintos, o mito que se aloja fora da ampulheta. É este o algoritmo da trajetória humana que aguarda a cada geração por sua quebra.