TALENTO QUE RELUZ | A trajetória de Ruth de Souza

01/05/2023

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Os caminhos desbravados com coragem e pioneirismo pela atriz Ruth de Souza

Por Manuela Ferreira

Leia a edição de maio/23 da Revista E na íntegra

O espetáculo O Imperador Jones, do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill (1888-1953), representa um marco na história das artes cênicas, no Brasil, por variadas razões. A encenação simboliza a estreia oficial do Teatro Experimental do Negro (TEN), histórica companhia fundada em 1944 por Abdias Nascimento (1914-2011), com o objetivo de reivindicar a valorização social da população negra e da cultura afro-brasileira por meio da educação e da arte. A peça foi, também, a primeira produção teatral formada exclusivamente por artistas negros a se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, instituição que já contava, à época, com quase quatro décadas. Foi naquele elenco que despontou uma das mais polivalentes atrizes brasileiras: Ruth de Souza (1921-2019), então com 24 anos. No papel de “velha nativa”, única personagem feminina da montagem, a intérprete arrebatou elogios e deu início a uma carreira revolucionária, reconhecida pelo pioneirismo que segue inspirando novas gerações de artistas nos palcos e telas.

Em entrevista ao jornalista Acyr Mera Junior, publicada no jornal O Globo de 15 de maio de 2018, Ruth de Souza disse: “[A atriz] Taís Araujo e [o ator] Lázaro Ramos estão realizando um sonho que sempre tive: ver artistas negros nos papéis principais. Sempre trabalhei, mas raramente protagonizei, com exceção da Cloé da [novela] A cabana do pai Tomás [TV Globo, 1969]”. A artista faz referência ao folhetim pelo qual se tornou a primeira protagonista negra da emissora carioca – antes, Yolanda Braga (1941-2021) esteve à frente do elenco de A Cor da Sua Pele (1965), na TV Tupi. A cabana do pai Tomás, no entanto, se tornou notória pela controvérsia. O personagem-título, vivido pelo ator Sérgio Cardoso (1925-1972), fazia uso de blackface [prática racista na qual artistas brancos são pintados de preto para retratar personagens negros].

Força e resistência

O escritor e dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999) encabeçou as reações de repúdio à novela, chamando a atenção para outras práticas racistas no audiovisual da época, como a predominância de atores brancos em sucessivas produções. “Depois, houve o problema com meu nome, que deveria aparecer na frente das outras atrizes, junto ao de Sérgio Cardoso, pois éramos os protagonistas. Tiveram de colocar meu nome depois dos demais atores, o que foi uma comprovação do preconceito que a gente sofre, que o ator negro enfrenta em relação à colocação de seu nome. A minha luta eterna é para ter meu nome creditado em meus trabalhos”, revelou a atriz na biografia Ruth de Souza: A Estrela Negra – Coleção Aplauso Perfil (Imprensa Oficial, 2007, org. de Maria Angela de Jesus).

Na TV Globo, Ruth atuou em mais de 30 novelas ao longo de meio século, sem jamais abandonar a voz crítica de sua presença, rara em meio à ausência de negros nas telenovelas, informes publicitários e noticiários. “Até o escritor e político Abdias do Nascimento, o grande líder da nossa causa, fundar o Teatro Experimental do Negro, quando éramos representados em cena, um ator branco era pintado de preto. Nós avançamos. Outro dia, vi um bebê negro em um comercial de fraldas. A [jornalista] Maju Coutinho é exemplo de elegância no Jornal Nacional. Nossa raça é uma das mais bonitas (…)”, analisou a atriz na entrevista ao jornal O Globo.

Primeiros impulsos

A intérprete, nascida no bairro de Engenho de Dentro, zona norte do Rio de Janeiro, interessou-se pelas artes ainda criança. Sua mãe, a lavadeira Adelaide Pinto, acompanhava a garota nas sessões de filmes hollywoodianos que lotavam os antigos cinemas de rua do Centro da capital fluminense, nos anos 1930. Depois de assistir ao filme Tarzan, o Filho das Selvas (1932), a menina tomou gosto de vez pela sétima arte. Confidenciou os planos de atuar profissionalmente apenas para a mãe – tímida, temia as críticas e gozações que receberia ao dizer que desejava ser atriz. Com ingressos que dona Adelaide ganhava das patroas, passou a assistir aos espetáculos do Theatro Municipal, até se aproximar do TEN, no começo da década de 1940.

Sua primeira grande atuação foi em 1947, na montagem teatral de O Filho Pródigo, de Lúcio Cardoso (1912-1968). Um ano depois, a pedido do amigo e escritor Jorge Amado (1912-2001), estreou no cinema com Terra violenta (1948), adaptação do romance Terras do sem-fim (1943). Na mesma época, Ruth também passou a trabalhar em produções cinematográficas do estúdio Atlântida, como o drama Também somos irmãos (1949), dirigido por José Carlos Burle (1910-1983). A atriz ainda compôs o elenco fixo dos estúdios Maristela Filmes e Vera Cruz. Nesse período, recebeu uma bolsa de estudos da Rockefeller Foundation, em Nova York, e realizou o sonho de estudar nos Estados Unidos. Frequentou a Howard University, em Washington, a escola de teatro da Karamu House, em Cleveland, e a American Musical and Dramatic Academy de Nova York. De volta ao Brasil, atuou em  Deusa Vencida (TV Tupi, 1965), sua primeira novela, e integrou o elenco de produções da Record e Excelsior.

Muitas potências

No período de estudos, Ruth de Souza mergulhou
nas obras de autores expoentes do realismo teatral norte-americano, como Tennessee Williams (1911-1983) e Arthur Miller (1915-2005). Atuou com grupos de teatro amadores e ampliou a formação em áreas técnicas, como sonoplastia, figurino, maquiagem e iluminação. Na biografia Ruth de Souza: A Estrela Negra, a artista refletiu sobre a experiência no exterior. “Quando menina, li uma matéria sobre a Howard University, em Washington, na revista Life. Tinha uma foto belíssima que mostrava estudantes negros muito elegantes na frente da universidade. Durante anos alimentei o sonho de um dia poder frequentar um lugar como aquele. Anos mais tarde, quando fui estudar nos Estados Unidos, me senti entrando naquela foto da Life, naquele recorte de revista que vinha guardando.”

Após retornar ao Brasil, a atriz se firmou em atuações magnéticas, como no filme Sinhá Moça (1953), dirigido por Tom Payne (1914-1996), com o qual conquistou uma indicação ao prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza, na Itália, em 1954. Foi a primeira nomeação de uma atriz brasileira a uma premiação internacional de cinema. Sinhá Moça competiu, também, pelo Leão de Ouro de melhor filme no mesmo festival. Apesar do reconhecimento internacional, as personagens reservadas para a intérprete aqui em seu país voltavam-se, quase sempre, para a vivência de pessoas negras da sociedade brasileira até então. Ruth de Souza trazia visibilidade aos relatos com maestria, como ao dar vida à escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) na adaptação para o teatro do livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada (1960).

“A representação dos atores negros tem sofrido uma lenta mudança desde a década de 1960, quando somente atuavam interpretando afro-brasileiros em situações de total subalternidade. Naquela década, a mulher negra era representada regularmente como escrava e empregada doméstica, encaixando-se na reedição de estereótipos comuns ao cinema e à televisão norte-americanos, como as mammies. O melhor exemplo foi o grande sucesso da atriz Isaura Bruno (1916-1977), quando interpretou a mamãe Dolores, na mais popular telenovela do período, O Direito de Nascer (1964)”, escreveu o cineasta, professor e pesquisador Joel Zito Araújo no artigo O negro na telenovela: um caso exemplar da decadência do mito da democracia racial brasileira, publicado na revista francesa de cinema Cinémas d’Amérique Latine – Revue Annuelle de l’Association Rencontres Cinémas d’Amérique Latine de Tolouse, em 2007.

Sobre tal representação, Joel Zito esmiuçou: “Nos anos 1970, o sucesso temático típico das telenovelas foi a representação dos conflitos e dos dramas dos brasileiros na luta pela ascensão social em uma década considerada como a última de crescimento econômico do país no século 20. No entanto, somente alguns autores, em especial Janete Clair (1925-1983), criaram papéis de personagens negros buscando ascenção profissional. A exemplo do psiquiatra Dr. Percival, interpretado por Milton Gonçalves (1933-2022) em Pecado Capital (1975). No entanto, nenhum desses personagens foi protagonista ou antagonista. Eram sempre escadas. A única personagem negra que foi protagonista, e que se tornou um sucesso internacional de vendas desde os anos 1970, foi interpretada por uma atriz branca no papel-título da novela Escrava Isaura (1976). Somente nos anos 1990, uma atriz negra, Taís Araujo, viria quebrar o tabu e desempenhar o papel-título da telenovela Xica da Silva (1997) [inspirada no filme de Cacá Diegues]”, relatou o pesquisador em sua publicação.

Ancestralidade presente

“A potência Ruth de Souza não se encaixa em uma síntese, pois cada papel que essa grandiosa atriz fez foi uma aula de talento. Uma mulher preta além de seu tempo, que quebrou barreiras e padrões sociais. Destemida, não se limitou às falas que diziam: ‘Não, você não pode!’. Ela simplesmente foi, acreditou e seguiu. Por isso, é um marco para nós, atrizes pretas e retintas”, avalia a atriz, professora de teatro e jornalista Clara Paixão.

Segundo Paixão, devido aos movimentos incessantes de inserção socioeconômica e cultural da população negra – e muitas lutas travadas neste âmbito – há mais pessoas que pesquisam e querem conhecer as potências negras que abriram caminhos para as que vieram depois. “Temos muita estrada e barreiras pela frente, mas sei que temos muitas conquistas também. Devemos isso a mulheres potentes e únicas como a nossa Ruth de Souza”, acrescenta.

Retratar uma trajetória tão extensa – e que fala não somente das artes no Brasil, mas também da própria história do país – representou um desafio para a cineasta e roteirista Juliana Vicente, diretora do documentário Diálogos de Ruth de Souza (2022). O filme foi exibido em março deste ano, no CineSesc, durante a OJU – Roda Sesc de Cinemas Negros. “Acompanhei a Ruth nos últimos 10 anos de sua vida. Esse período foi de muita transformação, de todas as formas. Foi quando ela deixou de andar, mas também, aos poucos, foi se abrindo mais e se permitindo ser filmada de forma mais espontânea. Eu tive muita dificuldade de chegar ao formato do filme, entender os caminhos. Eu duelei com informações do passado, com um sentimento de quem estava vivendo polêmicas dos anos 1950 encontradas em cartas e, sobretudo, refleti muito sobre sua dedicação exclusiva à carreira, a todas às suas lutas e solidão”, recorda Juliana Vicente.

A diretora explica que o processo de curadoria foi intenso, não somente por revisitar quase meio século de trabalho da atriz. “Foi emocionalmente complexo [para] depurar, porque de alguma forma, a Ruth de Souza era uma mistura de entidade que abriu todas as portas. Um espelho ancestral em tempo de fragilidade enorme, mas a câmera era a condutora da força do encontro”, conta a cineasta. A decisão de compartilhar a história da atriz a partir dos diálogos que tiveram, quando Ruth de Souza era nonagenária, deu-se após reflexões em relação à presença da intérprete frente ao relato sobre seu legado.

“A gente viu, ao longo das nossas histórias pretas, que poucos tiveram a chance de enunciar a própria vida. A possibilidade de tê-la como narradora da própria história se impunha, e a maneira que isso aconteceu, com a perda de mobilidade, me parecia ainda mais bonita. O universo que ela consegue criar, mesmo diante dessa limitação, através das imagens que [ela] pode produzir com a memória, me parecia encaixado para a história. No último dia, mostrei para ela o trailer do filme, que ela não chegou a ver pronto. Ela se emocionou muito e agradeceu. Eu também fiquei emocionada porque quem tinha a agradecer era eu, pelos ensinamentos e pela abertura de espaço para aquela construção. A gente não sabia que seria a última vez que nos encontraríamos para falar do filme”, arremata a diretora de Diálogos de Ruth de Souza.

Reconhecer legados e conquistas

Do 13 ao 20 – (Re)Existência do Povo Negro propõe ações para o reconhecimento e fortalecimento das lutas, vitórias, manifestações e realidades do povo negro no Brasil

Do 13 ao 20 – (Re)Existência do Povo Negro chega à sua quinta edição ampliando reflexões sobre a história, legados, cultura e identidades da população negra no país.  A ação faz alusão aos dias 13 de maio de 1888 e 20 de novembro, datas da assinatura da Lei Áurea e Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, respectivamente. A iniciativa acontece de forma presencial e online, de maio a novembro, com oficinas, bate-papos e apresentações artísticas em todas as unidades e plataformas digitais do Sesc São Paulo.

“Neste ano, o projeto inspira-se na ideia de ensinagens negras que, para além do compartilhamento de conteúdos negroreferenciados, dá lugar também às cosmopercepções e modos de fazer da negritude, considerando processos e experiências como potencializadores do ensino-aprendizagem e de transformação social. Nesse contexto, caberá ainda observar o marco de 20 anos da criação da Lei 10.639/2003, que decretou a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira nas instituições educacionais do país”, afirma Fabiano Maranhão, assistente na Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo.

Entre os destaques da programação de maio e junho, estão o curso Sobrevivendo no inferno: a obra de Racionais MC´s, realizado pelo Centro de Pesquisa e Formação do Sesc; o passeio Quilombo Saracura, que parte do Sesc Avenida Paulista em direção ao bairro do Bixiga, na região central da capital paulista; e a apresentação da peça O Avesso da Pele, baseada no romance do escritor Jeferson Tenório, no Sesc Thermas de Presidente Prudente. Na abertura do projeto, dia 13/5, o Sesc Santana realiza a gira de abertura, seguida da apresentação do espetáculo Malungo IXI –  música, tempo e afeto.

Do 13 ao 20 – (Re)Existência do Povo Negro

De maio a novembro

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