Leia “Cidade-satélite”, conto inédito de Rafael Gallo

31/01/2023

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Leia a edição de fevereiro/23 da Revista E na íntegra

POR RAFAEL GALLO   ILUSTRAÇÕES PEDRO FRANZ 

Eu tô juntando dinheiro, Nena. Que eu vou escrever um outdoor pra você. Sim, feito uma carta, uma declaração de amor. Só que enorme. Do tamanho do meu sentimento. É pra botar aqui e você ver. Aliás, não só você; todo mundo vai ver. E vai saber o quanto eu te quero bem.

Já bolei direitinho a mensagem pra mandar pôr. Fico repetindo as frases na minha cabeça, sabe? Chego a declamar sozinho às vezes, igual fosse poeta. Ou tivesse falando direto pra você, bem de pertinho. Anoto nos guardanapos, se vou num bar. Já escrevi mil guardanapos pra você, Nena. Imagino naquele grandão do outdoor, com as letras tudo bonita. Eu sei que a minha letra, ela não é bonita. Mas eu vou mandar fazer, Nena, daí eles ajeitam tudo bem como deve ser. Do jeito que você merece. A mensagem e o desenho de dois corações, assim do lado, imagina? E pra dar o toque final, um verso da nossa música. Eita, vai ficar lindo. Tenho certeza que você vai gostar. Se eu pudesse, chamava até o Roberto Carlos pra cantar em pessoa. Feito serenata, sabe? Detalhes tão pequenos de nós dois… Ele com aquele violão bonito dele. Já pensou?

Mas como é caro, Nena. Tô nem falando do Roberto Carlos – que isso é mais das doidices da minha cabeça – tô me referindo ao outdoor mesmo. Quase caí duro quando falaram o preço. Descobri o lugar onde faz, você sabe que eu sou fuçado, né? É uma loja de publicidade, que chama. Fui lá, contei pra moça minha vontade, você tinha que ver: ela ficou até mexida. Emociona mesmo, né, um amor como o nosso. Ela falou assim: “A Nena é uma mulher de sorte”. E é. Mas, olha, esse outdoor vai me deixar liso. Não reclamo, não; vale a pena. Todo esforço pra te ter, meu amor, vale demais.

Tô fazendo tudo que posso, sabe? Quando sobra um dinheirinho, guardo. Mas tá dureza, com o preço das coisas. Tudo aumentando que não para, valha-me Deus. Só com os gastos pra comer e pra morar, já fico quase sem nada. Tô dormindo no serviço agora, o patrão liberou um cantinho. Mas tenho que pagar a luz, a água e tudo, justamente. Arrumo uns bicos por fora, mas é complicado, né, numa cidade onde ninguém conhece a gente. Bato em muita porta, mas também batem muita porta em mim. A gente tava melhor antes, eu acho. A gente podia voltar, Nena. Nossa casinha tá lá ainda, não desfiz dela, não.

Se quiser ficar, tudo bem, eu aceito. Vim até aqui, não vou desistir. Quero mais é que a gente fique junto. Vou te mostrar. Essa ideia do outdoor, já tava com ela no ônibus pra cá. Vim só pensando: “A Nena vai gostar é muito”. E também podia ser um jeito de te encontrar. Uma hora você ia acabar vendo ele na rua e sabendo que eu vim. Primeiro eu planejei colocar no Centro, que todo mundo passa lá. Só que é mais caro. Vi que tinha que dar jeito. Nossa, de tanto imaginar sua cara quando você ver, até sonhei naquele ônibus. Dureza de viagem, né? A gente dorme a noite toda, acorda, dorme de novo e ainda tá ali. Aff, como demora. E eu achando, ainda, que ia ficar na capital. Só depois é que fui entender essa história de cidade-satélite. Eu tinha pra mim que satélite era só aquelas coisas que fica no espaço, dando volta no planeta, que a gente vê na TV. Vai ver que dão esse nome pra tudo que fica assim, rodeando, de perto, né? E, olha, não foi ignorância só da minha parte, não. A sua tia Sônia, quando me contou que você tinha vindo pra cá, só falou assim: “Ela foi pra Brasília”. Embarquei no ônibus era com esse pensamento. Dei muita volta naquela cidade, à toa. Até o dia que liguei pra sua tia de novo. Só daí é que ela falou de Sobradinho, que tinha descoberto isso. Mas falou foi na maneira de um bairro. A rua, não sabia, ia tentar descobrir. Me fez jurar de pé junto que não ia te contar que foi ela quem disse. Não vou, sou homem de palavra. Ela falou que só fez porque acredita no nosso casamento. Eu também, Nena, é a coisa em que mais acredito nesse mundo.

E sou muito agradecido à sua tia, viu. Deus que a abençoe, foi a única que me ajudou. Que tá ajudando nós dois. Todo mundo via meu desespero e, não sei, parece que não se importa. Queria ver se fosse com eles. Porque pode acontecer, viu? Todo casal tem problemas. Eu não sou perfeito, você também não. O que não pode é uma história como a nossa acabar desse jeito. Nena, o tanto que eu chorei. O tanto que eu chorei sem você. Sozinho naquela casa, feito cachorro abandonado. Só botava a nossa música pra tocar e me acabava. Quando chegava naquela parte: Um grande amor não vai morrer assim, eu só pensava no que eu podia fazer. Você me machucou muito com sua partida. Mas, olha, eu não vou te machucar, não. 

Tô é feliz de ter chegado aqui. Tava desesperado, lá na capital ninguém sabia de você. Perguntava em todo canto e nada. Foi só mesmo quando sua tia falou de Sobradinho, que a coisa melhorou. Mas eu tive que insistir com ela também, viu? É de família, essa teimosia de vocês, né? Só que eu sou teimoso também. Não me dou por vencido. E dessa vez você dificultou, viu. Por isso tô demorando mais. E também pra juntar o dinheiro do outdoor. Quero fazer uma coisa especial, pra gente sair por cima. Eu comecei a pensar nisso ouvindo a nossa música, um dia. Porque, olha só, parece que ela vai acabar na tristeza, né? Tem todo aquele pedaço que fala de outro homem, eu nem gosto de pensar, e daí vem o Roberto falando que o tempo transforma todo amor em quase nada. Você pensa: é o fim. Mas aí é que vem o pulo do gato. Porque depois ele canta: Mas quase também é mais um detalhe. Ou seja, aquele “quase nada” não é o fim, é um detalhe a mais. E os detalhes, isso ele já tinha falado antes: são coisas muito grandes pra esquecer. Entende? Fica grande de novo, recomeça. Olha a brilhanteza desse homem! E é isso mesmo, Nena. Vai ser bem assim com a gente. Nada dessa confusão toda de se afastar, pra depois juntar, chega disso. Eu já tinha te falado: os nossos problemas a gente tem que resolver é na nossa casa. E entre nós dois, só. Sem nem aquela coisa de parente se meter no meio, polícia, sei lá mais o quê. Só nós dois.

Tem esse lado bom de ninguém conhecer a gente aqui. Lá, todo mundo se intromete, fica querendo saber tudo. Aqui, nossa, eu tive que rodar muito antes de ouvir falar de você. A sorte é que hoje tem muita informação, né? E muita gente boa também, prestativa. É só procurar nos lugares certos, conversar com educação, que acaba dando jeito de se entender. Eu trouxe tudo os documentos, tava tudo ali pra provar que sou seu marido. E com a ajuda de Deus consegui achar, Nena.

Agora falta pouco. Vou botar o outdoor bem aqui e, quando tiver, vai ser você abrir essa sua janela e topar com ele. Quero muito ver sua cara. Tô pensando ainda se boto pra você ver na hora que volta do trabalho ou que acorda. Já vi que você abre e fecha as janelas, todo dia, mais ou menos a mesma hora. Ah, me aguarde. Vou te mostrar meu amor. Um baita outdoor, com a mensagem toda bonita, o desenho dos corações. A nossa música lá na última linha, pra que você saiba: Não adianta nem tentar me esquecer.

Rafael Gallo é autor de Rebentar (Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e de Réveillon e outros dias (Record, 2012), livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Tem ainda diversos textos em antologias e coletâneas, incluindo publicações em países como França, Estados Unidos, Cuba, Equador e Moçambique. 

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