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A caminho da paz

LOURENÇO MOTA

O novo Código de Trânsito é um fenômeno que merece atenção. Ao mesmo tempo que provoca a diminuição do número de acidentes e de vítimas nas ruas e estradas, ele vai também destruindo muitas das idéias mais negativas que os brasileiros fazem de si próprios e de seu país.

Irremediavelmente indisciplinados, os brasileiros? Sempre procurando um "jeitinho" de driblar a lei? Contrários a penas e multas duras e pesadas? Ou então querendo, malandramente, que elas sejam mesmo muito duras e pesadas, mas só porque assim se distanciam da realidade e não "pegam", ficando tudo por isso mesmo? País do faz-de-conta, o Brasil, onde o bom mesmo é fazer as coisas para inglês ver e não para valer de fato, preto no branco? Tudo preconceito.

A melhor maneira de entender o que se passa talvez seja lembrar a gravidade da doença, o gosto amargo do remédio e a reação do paciente.

Muito mais talvez do que campeões do mundo de futebol, sobretudo depois da chocha vitória na Copa dos Estados Unidos e da decepcionante campanha na Copa da França, temos sido nos últimos tempos campeões mundiais de acidentes de trânsito. Quando estamos ao volante, ninguém nos bate - ou pelo menos não nos batia, antes do código - em irresponsabilidade, indisciplina e arrogância. Qualquer motorista perna-de-pau dirige nas ruas e nas estradas como se fosse o rei do mundo e os outros, pernas-de-pau ou não, fossem apenas um estorvo, chatos ou coisa muito pior. Como, na sua visão, eles parecem estar ali só para incomodá-lo e irritá-lo, ele os trata como insetos que pode esmagar sem qualquer remorso.

Os números são tão impressionantes que é difícil entender como foi possível chegarmos a essa situação, sem ter adotado muito antes medidas duras. De acordo com dados oficiais do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), 600 mil pessoas morreram em acidentes de trânsito entre 1960 e 1996. Isso mesmo. Só em 1997, os mortos foram 28 mil. E esses ainda são cálculos otimistas. Como lembra o ex-diretor do Denatran, José Roberto Souza Dias, nessas estatísticas estão contabilizados apenas os que morrem no local do acidente. O acidentado que vai para um hospital e depois morre em conseqüência de ferimentos entra em outro tipo de estatística. Para completar o quadro, acrescente-se o número ainda maior de feridos.

Nos fins de semana, 82% dos leitos de hospital da capital paulista são ocupados por vítimas de acidentes. Em cada grupo de 100 mil habitantes de São Paulo, 17 morrem atropelados por ano. Em Nova York, a relação é de apenas 3,9 para 100 mil. Estudo feito pelo professor David Duarte Lima, da Universidade de Brasília, mostra que os acidentes de trânsito custam ao país, anualmente, pelo menos US$ 10 bilhões. Muitos outros números poderiam ainda ser citados, igualmente assustadores, mas esses bastam para mostrar que não há nenhum exagero retórico quando se usa a palavra "guerra" para caracterizar a violência do trânsito no Brasil e a sua enorme capacidade de matar. Trava-se mesmo, todos os dias, uma batalha inglória nas ruas e estradas do país.

Remédio amargo

A potência e o gosto desagradável do remédio foram proporcionais à gravidade da doença expressa naqueles números. Desta vez, o Congresso, depois de seis anos de debate e estudo da questão, assumiu suas responsabilidades e não tentou ser bonzinho. As multas aumentaram sensivelmente e já estão doendo no bolso de quem não respeita as regras. Elas podem chegar a R$ 865 para quem se aventurar a dirigir com carteira cassada ou não prestar socorro a vítimas de acidentes. Dirigir embriagado - e está nessa condição quem for além de dois copos de cerveja - passa a ser crime, sem prejuízo de multa e suspensão da carteira de habilitação. A carteira passou na prática a ser provisória, dependente do bom comportamento do motorista. Essa é a pena que mais o tem assustado, de norte a sul do país. É fácil ter a carteira suspensa - basta somar 20 pontos em infrações de trânsito. E só avançar sinal vermelho ou transitar na contramão, coisas que boa parte dos motoristas faziam com a maior sem-cerimônia, já representam 7 pontos cada uma. Estacionar em fila dupla, então, era quase um "direito". Custa 5 pontos. Três ou quatro deslizes desses - e há muitos outros, punidos com igual rigor -, e adeus, carteira, por alguns meses ou um ano.

Esses exemplos bastam para refrescar a memória do leitor e dar uma idéia da linha dura estabelecida pelo novo código, cujos principais dispositivos já foram exaustivamente explicados pela imprensa, quando ele entrou em vigor, em janeiro.

Reação do paciente

Aqui começa a reconfortante destruição de mitos sobre a falta de seriedade brasileira. Leis rigorosas, até rigorosas demais, a ponto de serem irrealistas, não são novidade entre nós. Surpreendente é uma lei dura como o novo Código de Trânsito, que afeta diretamente a vida de boa parte da população, impondo-lhe uma rígida disciplina - cuja transgressão custa muito caro -, ser tão amplamente apoiada. Pouco depois de ter entrado em vigor, em janeiro, uma pesquisa do jornal "O Estado de S. Paulo" mostrou que ele era aprovado por 85% dos paulistanos. Uma porcentagem também elevada, 79%, declarou acreditar que o número de acidentes iria diminuir. Até a pena de quatro anos de prisão para os responsáveis por mortes, que se julgava fosse encontrar resistência, teve o apoio de 71% dos entrevistados.

Essa aprovação não é uma coisa da boca para fora. Está sendo efetiva, ou seja, a população não apenas aplaude o código como aceita disciplinadamente suas regras. A prova disso está na diminuição do número de acidentes. Essa tendência, observada logo nas primeiras semanas, manteve-se nos meses seguintes e persiste até hoje. Nas rodovias federais de todo o país, entre os meses de janeiro - quando o código entrou em vigor - e maio, o número de mortos caiu 15% em relação a igual período de 1997. No caso dos feridos, a diminuição foi da ordem de 12%. Nas rodovias federais do estado de São Paulo, os resultados foram ainda melhores: redução de 28,76% no número de mortos; de 21,8% no de feridos; e de 13% no de acidentes.

Na cidade de São Paulo, que de longe concentra o maior número de veículos do país (4 milhões, de um total de 14 milhões), houve uma redução de vítimas fatais de 25%. No pronto-socorro do Hospital das Clínicas, entre 21 de janeiro e 31 de março, o número de lesões provocadas por acidentes de trânsito diminuiu 32% com relação a igual período do ano passado. As paraplegias e os politraumatismos caíram 38%, e as lesões mais leves sofreram redução de 28%. O conjunto desses dados mostra que os efeitos positivos da nova legislação podem ser observados em todo o país, embora em São Paulo eles sejam particularmente animadores.

Quando se examina bem a questão, verifica-se que na verdade não há tanto motivo assim para surpresa diante da adesão da população a uma lei dura como essa. Antes de mais nada porque, como mostram os números, o custo da guerra do trânsito, com seu cortejo de centenas de milhares de mortos e mutilados, se tornou insuportável. É natural, portanto, que na primeira oportunidade em que mostrou vontade de agir com rigor, o poder público tenha contado com o apoio da população. Dar um basta à irresponsabilidade com que os motoristas em geral se comportam nas ruas e estradas tornou-se quase um imperativo de sobrevivência.

Considere-se ainda que os brasileiros, quando viajam para o exterior, principalmente para a Europa e os Estados Unidos, se adaptam sem maiores problemas às duras leis de trânsito que lá vigoram. Eles sabem que lá não se brinca com essas coisas, e por isso o número de brasileiros envolvidos em acidentes não se afasta da média local. O comportamento desses turistas, que constituem uma amostra representativa de parcela considerável da população, já vinha indicando que aqui eles agiriam da mesma forma, se sentissem que a disposição das autoridades seria a mesma que a de lá fora.

Fica a lição: o remédio básico para comportamentos violentos e irresponsáveis continua sendo a ameaça de penas severas. De preferência quando conjugada com um esforço de esclarecimento da população, pois também a repressão pura e simples tem seus limites. Por isso, o novo código prevê, além de campanhas de esclarecimento por rádio e televisão, que a educação para o trânsito passe a fazer parte do currículo das escolas de primeiro e segundo graus. O que se conseguiu com a utilização desses instrumentos, no que se refere à defesa do meio ambiente, cuja necessidade é hoje percebida como indispensável por crianças e adolescentes de todo o país, prova que muito se pode fazer para mudar a mentalidade de nossos motoristas.

Desafio ao governo

O Congresso demorou mas fez a sua parte, e muito bem. A população também, apoiando maciçamente o novo código e desmentindo preconceitos arraigados sobre sua aversão à disciplina e seu gosto pelo jeitinho e pela malandragem. Afinal, somos como o resto do mundo, nem melhores, nem piores. Para um povo acostumado a exercitar um senso exagerado de autocrítica, que beira o masoquismo, que tende a só achar bom o que vem de fora e por isso ainda insiste em cultuar tudo o que seja importado, não é nada mau.

Resta saber se os governos - federal, estaduais e municipais, cada um na sua esfera de competência - saberão fazer a parte que lhes toca, fundamental para o êxito da nova lei. Por maiores que sejam as suas virtudes e por maior que seja o apoio que receba da esmagadora maioria da população, ela poderá ter o mesmo destino de muitas outras de igual qualidade e virar letra morta, "não pegar". Basta que o governo não exerça sua ação fiscalizadora. O retrospecto nesse caso não é nada animador.

Uma das maiores deficiências do Estado brasileiro, em todos os seus níveis, é justamente o sistema de fiscalização. Por insuficiência de quadros, incompetência ou corrupção, ou por tudo isso junto, a fiscalização funciona muito mal ou simplesmente não funciona num grande número de casos. Na área da saúde, por exemplo, só agora se está pensando seriamente em reformar de alto a baixo o serviço de vigilância sanitária. Se ele funcionasse como deve, provavelmente se teriam evitado tragédias que chocaram o país, como a das mortes por contaminação da água usada para hemodiálise em Caruaru, Pernambuco, e a das mortes de idosos internados em clínicas do Rio de Janeiro, nas quais as condições de higiene eram mais do que precárias. Nos dois casos, nenhum fiscal apareceu para interditar os locais, como seria normal.

Mesmo no trânsito, apesar das deficiências da antiga lei, muito poderia ter sido feito para evitar que chegássemos à situação dramática que estamos vivendo. As autoridades sempre fizeram vista grossa para os abusos dos motoristas, tanto nas estradas como nas cidades. Nestas, a não ser por ocasião de campanhas esporádicas e espalhafatosas, destinadas a reforçar a arrecadação e não a pôr um mínimo de ordem no trânsito, os motoristas infratores não precisavam temer as multas. Estacionar em local proibido ou em fila dupla - principalmente perto de escolas, lojas, restaurantes e casas noturnas -, fazer conversões proibidas e até mesmo avançar em sinal vermelho se tornaram práticas comuns.

Essa cultura da impunidade está por trás da guerra em que se transformou o trânsito. E está se vendo agora que a população só se acomodava a essa situação por causa da omissão do poder público. Bastou um sinal de que estava disposto a reagir para que ele fosse apoiado.

Ainda falta muito

Seria ilusório imaginar, nessas condições, que os bons resultados obtidos em mais de um semestre de vigência do código garantem o seu êxito permanente. O apoio que lhe dá a maioria da população é da maior importância, sem dúvida, mas não é suficiente. Ao menor sinal de fraqueza das autoridades encarregadas de aplicar as duras punições por ele previstas, a parcela dos motoristas que se acostumaram a fazer o que bem entendem voltará a se comportar como antes, desmoralizando a lei.

Esse risco existe e é grande, porque não é nada fácil mudar da noite para o dia a cultura da impunidade que vigora entre nós há tanto tempo. Basta lembrar a propósito as propostas feitas no final do mês de julho por Gedel Dantas Queiroz, novo presidente do Denatran, isto é, o órgão máximo do trânsito. Nem bem assumiu o cargo, ao qual chegou provavelmente por injunções políticas, já que não chega a ser um grande especialista na questão, anunciou sua intenção de introduzir mudanças em alguns dos pontos essenciais do código. Queria, por exemplo, reduzir o valor das multas cobradas por infrações consideradas leves (R$ 76,88) e graves (R$ 115,33), mantendo inalteradas apenas as gravíssimas. Desejava também diminuir a pontuação por infração gravíssima - 7 pontos -, que pode levar à cassação da habilitação. E ainda alterar a decisão do Conselho Nacional de Trânsito que aumentou de 10 para 20 horas o tempo de aulas para os candidatos a motoristas, sob o pretexto absurdo de que isso "encarece demais o custo do aprendizado".

Felizmente, o ministro da Justiça, Renan Calheiros, se apressou a desautorizar Queiroz e ficou o dito pelo não dito. Mas esse caso serve para mostrar quanto o aparelho estatal, do qual depende a estrita aplicação da lei, está impregnado pela velha mentalidade permissiva. O novo Código de Trânsito tem uma dimensão que ultrapassa a "guerra" que diariamente deixa milhares de mortos e feridos nas ruas e estradas brasileiras, embora, é claro, só ela já seja mais do que suficiente para justificar sua existência. Ele representa também a possibilidade de uma mudança de mentalidade da maior importância, à qual a população aderiu espontaneamente, apesar da rigorosa disciplina que ela lhe impõe.

Seria uma pena que tudo isso se perdesse por incompetência ou falta de vontade das autoridades de fazer a sua parte.

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