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Retrato vergonhoso

A exploração sexual de crianças e adolescentes, em matéria publicada na edição nº 306 de "Problemas Brasileiros", de novembro/dezembro de 1994

PAULO SCARDUELLI

Retrato afrontoso de um país que fecha os olhos a todo tipo de exploração infantil, a prostituição tem se alastrado de modo espantoso no Brasil, atraindo meninas cada vez mais novas para as ruas. Crianças de até 9 anos podem ser encontradas fazendo programas, tanto em avenidas e praças de cidades grandes, como em bordéis e garimpos do interior. Sua mercadoria é o sexo, que na maioria das vezes é trocado por um prato de comida ou um quarto para dormir. O CBIA (Centro Brasileiro para Infância e Adolescência) estima em 500 mil o número de meninas prostitutas no país. Isso isola o Brasil na dianteira dos países americanos que enfrentam esse tipo de problema social, ficando atrás apenas da Tailândia, que tem 800 mil menores na prostituição.

A estatística ressalta que oito em cada dez garotas brasileiras se prostituem contra a vontade. Elas trabalham de três a quatro dias por semana e têm em média cinco parceiros por dia. Com saúde debilitada e sem educação básica, essas meninas tornam-se mães precoces que não têm condições de educar os filhos. A violência sexual contra menores já estampou o Brasil na capa da revista americana "Time".

Pelo menos 50% das prostitutas de Belém têm menos de 16 anos. Só no centro da capital paraense há cerca de 2 mil. Calcula-se que no Rio de Janeiro existam 30 mil menores nessa vida.

Quase 60% das 10 mil prostitutas da região central e do porto de Santos são crianças ou adolescentes com idade entre 10 e 19 anos. Uma delas é R., que faz ponto na região portuária. Tem 16 anos, é loura, magra, desnutrida e sorridente. Ainda brinca de chupeta. Começou a vida sexual aos 12 anos quando foi estuprada por um primo. Fugiu de casa e hoje mora com duas meretrizes num barraco. Cheira cola, fuma crack e nunca foi à escola.

Ela conta que o seu primeiro programa foi com um homem bem mais velho do que ela: "Ele me levou para um motel e me ofereceu um monte de coisa. A gente transou e depois ele me pagou".

R. faz hoje entre cinco e seis programas por semana e cobra por cada um R$ 10. Segundo ela, no carro é mais barato, porque não precisa pagar o quarto do hotel, que custa R$ 3. "Tem uns que dão o cano e não pagam." Como são os fregueses? Ela conta que "a maioria é velho. Os coroas querem as meninas mais novas. Já ganhei até um vestido".

O mapa da exploração sexual infanto-juvenil mostra que em Fortaleza e no Recife o forte é o "pornoturismo", que oferece como principal atração meninas virgens de 9 a 11 anos para estrangeiros. Em João Pessoa, o incesto é uma prática comum. No Rio Grande do Sul, a desinformação e a ingenuidade do homem do campo tornam os pais presas fáceis de falsas promessas de emprego para as filhas menores.

No oeste de Santa Catarina, em Videira, há exploração sexual de meninas de 8 a 14 anos, por pessoas idosas que as alugam e sobrevivem à sua custa. Em São José do Rio Preto, no interior paulista, adolescentes de 12 a 17 anos vendem o corpo nas ruas. A Secretaria do Trabalho da Paraíba contabilizou 75 meninas entre 13 e 17 anos, sem nenhum vínculo familiar, prostituindo-se nas ruas de João Pessoa, principalmente perto das praias.

Cristina Crovara, coordenadora do programa contra a exploração sexual de menores da organização Bureau Internacional Católico para a Infância, acredita que o que torna a prostituição infantil no Brasil diferente da que se encontra no resto do mundo é a degradação da sociedade. "Em São Paulo, caminhei duas quadras e, das 30 prostitutas que encontrei, 14 eram crianças. Eram onze e meia da manhã, as crianças se prostituíam abertamente nas ruas, com indiferença total das pessoas que passavam. Em uma hora, obtive informações sobre as meninas que levaria dias para conseguir em outro país latino-americano."

Especialistas são unânimes em afirmar que por trás de toda prostituta mirim há uma história de desagregação familiar. Foi o que constatou também o jornalista Gilberto Dimenstein. No livro Meninas da noite ele denunciou o tráfico e exploração sexual de crianças brasileiras. Segundo Dimenstein, um dos estímulos à prostituição é a própria família. "A garota trabalha, em geral, de vendedora de chiclete ou bala. Mas é obrigada a levar uma determinada quantia para casa, sob pena de apanhar. Sem dinheiro, às vezes ela se entrega aos homens para voltar para casa com a quantia exigida. O furto é outra alternativa, porém mais arriscada."

A Fundação Municipal Papa João XXIII apurou um índice dramático de meninas de rua em Belém. Das 114 crianças e adolescentes que vivem pela cidade, 23,7% são meninas de 7 a 17 anos. O dado causa sobressalto porque a média nacional é de 11%. Pesquisa do Centro de Defesa do Menor apontou que as meninas de rua ingressam na prostituição por intermédio de adultos que conhecem nos bares da cidade.

No Recife, há 1.015 meninas de rua, segundo o CBIA. São crianças e adolescentes que garantem a própria subsistência com a mendicância, roubo e prostituição, dormindo na maior parte das vezes em abrigos improvisados ou em pensões do meretrício. De acordo com os dados, 365 delas têm entre 12 e 16 anos. Encontram-se, na história de quase todas, miséria, violência e desagregação familiar.

CPIs pelo país

Há cerca de três anos, quatro denúncias chamaram a atenção dos brasileiros: a expansão do turismo sexual, o aumento da pornografia, o tráfico de órgãos e a progressão da Aids. Entidades internacionais de defesa dos direitos humanos condenaram o país. Isso serviu de estopim para o início de uma grande investigação sobre os casos de menores prostituídas no Brasil. A decisão mais importante foi a constituição de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Câmara dos Deputados. A CPI apurou também denúncias de tráfico de meninas para a prostituição nos garimpos do Acre, Pará, Maranhão e Amapá, de meninas escravas na região amazônica do Brasil, na rota do "pornoturismo", e da participação da polícia nas redes de aliciamento de crianças.

A providência foi repetida em diversos estados. A Assembléia Legislativa do Rio criou uma CPI para investigar denúncias sobre o assunto. A Câmara de Vereadores de João Pessoa também instalou a sua.

Mesmo com a CPI em andamento, o Congresso Nacional passou por séria crise em 1993, quando foi descoberto um serviço secreto de prostituição funcionando ali mesmo, em suas próprias instalações. Agenciadores contratavam garotas de programa para os políticos. Preço do serviço: US$ 100, ficando 60% para a prostituta e 40% para a agência.

A situação se agravou com a acusação de que policiais militares exploravam e praticavam abusos sexuais contra meninas de rua que vendem chicletes nas praças e semáforos do centro de São Paulo e Belém. No entanto, amedrontadas, as meninas se calaram temendo agressões ou a prisão.

Elas também são vítimas do abuso sexual de adultos que freqüentam os bares. Prostitutas mais velhas afirmam que os homens colaboram com o aumento da prostituição infantil porque querem cada vez mais pegar as menores, que não exigem camisinha e cobram mais barato.

A prostituição infantil começa em casa. Dados indicam que 80% das meninas-mães e vítimas de exploração sexual foram iniciadas no sexo na própria família, muitas vezes pelo pai biológico, ou por padrastos, cunhados, irmãos, avós e vizinhos. Os responsáveis são os "conhecidos", justamente os que deveriam protegê-las.

No Brasil, repete-se a cada dia o enredo da vida de J., de 15 anos, seis deles na prostituição. Após ser molestada por um tio, ela saiu de Jundiaí para tentar a vida na capital paulista e instalou-se na Estação da Luz. Procura clientes sempre que precisa de dinheiro. Sem conhecer os métodos anticoncepcionais, engravidou e fez um aborto. Sonha em casar e ter filhos.

Tem uma irmã de 16 anos que se prostitui desde os 13. "Ela também fugiu de casa. É louca, pois está grávida e vai ter o filho. Rezo para que seja homem, para não virar o mesmo que nós. Tenho uma amiga que deve entrar logo. Ela é obrigada a levar dinheiro para casa todo dia, senão os pais batem nela. No início a gente vende chiclete na rua, mas com o tempo aceita roubar, passar droga, fazer sexo."

A maioria das crianças que se prostituem fugiu da violência de sua própria casa. Há casos chocantes de abusos exercidos por padrastos que se sentem no direito de desvirginar a filha de sua companheira e tê-la como amante. Foram descobertas situações em que a prostituição envolve toda a família. À noite, essas casas viram prostíbulos. Mãe e filha se vendem enquanto pais e irmãos recebem os clientes.

Meninas de Fortaleza e Natal praticam prostituição mercantilista. Moram em favelas e se vendem para assegurar a sobrevivência da própria família. No Rio Grande do Norte, 72% delas, com idade entre 13 e 18 anos, vivem com os pais. No Ceará, 50% moram com a família e têm de 11 a 15 anos.

A família é o grupo social mais perigoso para as crianças. Elas acabam sendo o elo mais frágil de um processo de desagregação familiar agravado pela situação econômica e social. Por trás de uma criança vitimada há um ambiente familiar deteriorado e, em 30% dos casos, os pais utilizam drogas ou álcool em excesso, ou sofrem de distúrbios de comportamento. Essas foram algumas das conclusões da CPI do Menor da Assembléia Legislativa de São Paulo.

Pelo menos 500 mil crianças e adolescentes paulistas são vítimas de violência dentro de sua própria casa todos os anos, sem que os responsáveis - em geral pais e parentes - sejam punidos. Quarenta mil menores sofrem algum tipo de abuso sexual todos os anos: 80% são meninas, das quais 65% são violentadas pelos próprios pais, padrastos ou responsáveis. Portanto, conhecem seu agressor. Para 68% dos meninos o agressor é desconhecido.

Trata-se de um ciclo de violência que se perpetua por gerações. As estatísticas mostram que 75% dos pais agressores confessaram ter sido também vítimas de violência na infância.

Das crianças que optaram pelas ruas para fugir dos abusos em casa, 9% se viciam em drogas e 3% acabam cometendo delitos graves. Só na cidade de São Paulo, menores são responsáveis por 1,2 mil assaltos por mês, e mais de 26 mil já teriam se envolvido em crimes na capital. A polícia calcula que metade das infrações da cidade sejam cometidas por menores.

A violência sexual contra crianças e adolescentes não é privilégio de países pobres. Nos EUA, pesquisa do "Los Angeles Times" revelou que 22% dos norte-americanos foram vítimas de relações incestuosas na infância. Os custos sociais desse fenômeno são gravidez precoce, fuga da família, suicídios de jovens, prostituição, consumo de álcool e drogas, disfunções sexuais, problemas psiquiátricos e, muitas vezes, a transformação da vítima em agressor de outros menores.

Tanto lá quanto aqui, fica uma pergunta: o que esperar e exigir de seres humanos que, desde o berço, só conheceram a violência e o desamor?

Desesperança e doença

P., 13 anos, já nasceu no mundo da prostituição. Sua mãe foi abandonada pelo namorado numa favela de São Paulo, quando estava grávida, e começou a se prostituir. A menina decidiu ajudar a mãe, mendigando na rua. Logo descobriu que ganhava mais dinheiro vendendo seu corpo. A mãe morreu em decorrência da Aids há dois anos, e há seis P. descobriu que também tem o vírus.

Ela acha que se contaminou com algum cliente, uma vez que não usa drogas injetáveis. E, a seu modo, vinga-se de todos. "Não roubo meus clientes mas faço maldade pior. Para a maioria eu passo Aids. É que eles pagam mais para não usar camisinha. E a maioria é casado." Ela acrescenta que não conta que é portadora do vírus, porque se o fizer não arruma mais dinheiro algum.

A Aids e outras doenças venéreas acompanham o dia-a-dia dessas meninas. Segundo estudos do Núcleo de Extensão Comunitária da Universidade Católica de Santos, 40% das adolescentes prostitutas da cidade são portadoras do vírus da Aids. A transmissão predominante é por drogas injetáveis.

Em Fortaleza, 29% das garotas não usam preservativos e têm pouco conhecimento sobre o corpo e as doenças sexualmente transmissíveis. O índice de doenças chega a 36,9%. Estudo epidemiológico do Hospital da Criança e do Adolescente da Funabem carioca revelou que há contaminação por Aids em 2% deles. Na pequena cidade de Feijó, a 450 quilômetros de Rio Branco (AC), constatou-se a disseminação de doenças venéreas entre meninas de 12 a 16 anos. Cerca de 50 delas já foram contaminadas por gonorréia e sífilis.

Além das doenças venéreas, o aborto é praticado de forma violenta entre essas meninas, aumentando ainda mais o risco de prejuízos a sua saúde. Recorre-se a chutes na barriga, penetração de agulhas de crochê, remédios fortíssimos e chás receitados por curandeiros. As conseqüências são devastadoras.

No Brasil, há quatro mortes diárias em decorrência de abortos, mal que gera cerca de 400 mil internações anuais devido a seqüelas. Entre 1981 e 1989, o índice de mortes de adolescentes em conseqüência de abortos subiu de 8% para 20%. No Brasil, 10% das mulheres se tornam mães antes dos 20 anos, enquanto no Japão esse índice não ultrapassa 3%.

Na maternidade Bárbara Heliodora, de Rio Branco, 31% dos partos são de meninas entre 10 e 16 anos. Como diz um documento do Ministério da Saúde, é preciso evitar que mulheres pobres de até 20 anos repitam a mesma história de vida de suas mães. Só 8% das adolescentes brasileiras usam anticoncepcionais, sendo que 20% - ou 760 mil - dos filhos são indesejados.

Estação da Luz

Terceira maior metrópole do mundo, São Paulo reúne prostitutas de toda parte do país. Com seu imponente estilo britânico, a Estação da Luz é o mais antigo e também mais pobre mercado de sexo da cidade. Fica no centro velho, em bairro do mesmo nome, e atende os moradores dos subúrbios de São Paulo. A estação recebe diariamente cerca de 150 mil pessoas. Foi inaugurada em 1901, com plantas, madeiramento, estruturas metálicas e até parafusos importados da Escócia.

Cerca de 300 prostitutas vivem em torno da estação, sendo 50 menores. A oferta é maior que a procura, e os consumidores têm pouco dinheiro para gastar. O preço do programa de uma hora varia de R$ 5 a R$ 10. Pechincha funciona. Essa é uma das atrações do mercado da Luz: o preço é o mais baixo da cidade.

O aquecimento da economia brasileira que o governo tenta brecar não melhorou a situação das prostitutas da estação. Elas dizem que a crise piorou. Com a barriga proeminente e marcas de ferida em pernas e braços, a mineira A., de 17 anos, tem uma explicação: "Os clientes deixaram de gastar com a gente para comprar no crediário".

O maior benefício da prostituta é ter, mesmo que por pouco tempo, local para dormir. A maioria vive na rua, não tem nem barraco para morar. O Queluz é um hotel barato muito usado para os programas das garotas da Luz. As camas são de alvenaria em seus 35 quartos, para evitar o rangido das sessões de sexo. Quando não é possível ficar no hotel, elas passam a noite encolhidas debaixo das marquises da estação de metrô Tiradentes.

Com 12 anos, L. é uma das mais novas do grupo de 50 meninas menores de 18 anos que se prostituem na Luz. Mesmo assim, já é visível o estrago que pelotas de crack fizeram a sua saúde. Só com o dinheiro ela não consegue manter o vício. Por isso trabalha também como "mula" na entrega de drogas. Cada pelota de crack custa R$ 5, e L. fuma uma média de cinco por dia. O efeito dura cerca de 30 minutos.

Nas ruas próximas à Estação da Luz, como a Mauá, a Vitória e a do Triunfo, uma das cenas mais comuns é encontrar meninos e meninas com menos de 10 anos fumando crack. Policiais assistem a tudo e não fazem nada.

As garotas da estação irritam freqüentemente as prostitutas mais velhas, principalmente porque reagem com palavrões às perseguições das agentes femininas da Polícia Militar. Elas dizem que são maltratadas pelos guardas da ferrovia e por policiais militares. No ano passado, entidades ligadas à defesa dos direitos humanos denunciaram que as prostitutas eram levadas por esses guardas a um quarto, obrigadas a tirar a roupa e submetidas a humilhações.

No jogo pela sobrevivência num ambiente hostil, as meninas mais novas aceitam a proteção de um homem ou uma mulher, que as explora, tomando dinheiro ou obrigando-as a roubar clientes.

Os hotéis não exigem documentos das garotas. São barradas apenas as mais miúdas, sem chances de disfarçar a pouca idade. A exceção é o hotel Karin, considerado o ponto de partida das novatas.

A psicóloga Cláudia Benatti, que trabalha com prostitutas na Casa de Convivência da Mulher, perto da estação do metrô Tiradentes, observa que as prostitutas mirins fazem parte da geração recente de meninas de rua que não nasceu em São Paulo. O êxodo rural tem contribuído para o aumento do número de prostitutas na cidade. A estatística se repete em outros estados. No Ceará, 54% das meninas exploradas na cidade vêm do interior. O exemplo também se aplica ao sul do país.

Serviços tentam ajudar

Há experiências estimulantes com entidades que buscam assistir as adolescentes, dando-lhes oportunidade de freqüentar a escola, fazer tarefas domésticas, assistir palestras e vídeos educativos e participar de oficinas culinárias, provendo o próprio sustento. O Serviço à Mulher Marginalizada é uma das entidades que se empenha na prevenção e eliminação da exploração sexual. Sua presença é solidária junto às mulheres exploradas sexualmente. Para a presidente do serviço, irmã Olímpia Gaio, a superação da prostituição não será possível enquanto não forem eliminadas as relações de exploração. "A acumulação de riqueza nas mãos de poucos à custa da exploração da maioria, sobretudo das mulheres e crianças, lança-as à mendicância e à prostituição."

A Casa de Convivência da Mulher, onde atua Cláudia Benatti, é um refúgio para as prostitutas da Estação da Luz. Lá elas vão almoçar diariamente e aproveitam para tomar banho e lavar a própria roupa. O local serve também para essas mulheres descansarem e conversarem um pouco. A psicóloga sabe que o espaço executa uma função paliativa. "Não temos o que oferecer para que elas saiam das ruas. Damos remédios, quando precisam. Enxoval para bebê, quando grávidas. Ensinamos artesanato, quando se interessam. Mas não temos o emprego que lhes daria uma chance de obter o próprio sustento."

Nova escravidão

O tráfico de escravos não é uma página virada na história brasileira. Existe muito forte ainda. Só que, desta vez, eles não são negros, como no passado. Na versão atual, o tráfico é feito com meninas ainda crianças, que são escravizadas na região amazônica - principalmente nos garimpos. O assunto ganhou manchete de jornais no ano passado e chamou a atenção do mundo todo. O Acre virou exportador de meninas para a prostituição em garimpos de Rondônia. Cerca de 500 quilômetros separam a capital Rio Branco (AC) da capital Porto Velho (RO). Muitas vezes, as virgens com menos de 14 anos são vendidas em leilões. Em geral, os aliciadores são grupos envolvidos também com o tráfico de drogas.

Com 180 mil habitantes, 30% dos quais morando em favelas e palafitas, Rio Branco tornou-se fornecedora de meninas que acabam sendo atraídas pelas promessas de homens que as convencem a ir para os garimpos, onde o sexo seria pago em ouro. Além de exploradas sexualmente - elas são obrigadas a fazer programas com mais de dez homens por dia - as meninas também atuam como repassadoras de drogas. Estima-se a existência de 3 mil garotas prostituídas, entre 10 e 17 anos, só na capital do Acre.

A Delegacia da Infância e Adolescência do Acre apontou o desaparecimento de 150 meninas por semana - a maioria com idades que variam entre 11 e 15 anos. Batidas policiais na rodovia que liga Rio Branco a Porto Velho descobriram que o carregamento é feito através de caminhões.

As pequenas prostitutas são induzidas ao consumo de drogas e acabam mortas quando contraem algum tipo de doença venérea. Depois são jogadas no fundo dos rios. No garimpo não há polícia nem justiça, e os familiares não reclamam os cadáveres.

Algumas sobreviventes é que contam a história. Uma delas disse que viu uma menina de 12 anos ter o pescoço cortado por um garimpeiro, que exibiu a cabeça como troféu e anunciou que a partir daquele ato ninguém teria coragem de rejeitá-lo sexualmente.

No garimpo, essas menores são obrigadas a viver em cativeiro. Mesmo com malária, elas não podem se recusar a manter relações sexuais para saldar a despesa com os aliciadores. A dívida nunca termina, porque todos os gastos com alimentos, roupas, remédios e alojamentos são controlados por seus proprietários.

Pesquisa feita pela CPI da Câmara de Vereadores de Rio Branco definiu o perfil de 120 meninas prostitutas que vivem na cidade: 50% nasceram em famílias com problemas relacionados a drogas, alcoolismo e contravenções penais; 40% delas gostam e acham que nasceram para a prostituição; 20% não têm nenhum vínculo familiar; as famílias de 60% recebem dois salários mínimos; 35% das garotas vivem exclusivamente da prostituição e sua renda não atinge um salário mínimo; 10% são analfabetas; e 10% usam preservativos.

A violência começa no berço

A origem da prostituição de menores está dentro da própria família, motivada pela completa falta de educação dos pais. É o que garante o juiz Walter da Silva, que há dez meses está na Vara de Infância e Adolescência do Foro Regional I de Santana, em São Paulo. Ele cita números do Instituto Médico-Legal da capital para mostrar que a violência sexual é praticada por parentes da vítima. Professor de direito penal, ele já passou também pelas varas Criminal, da Família, Cível e do Júri.

O juiz utiliza a lei para provar que a violência sexual não é tema novo, muito menos restrito ao território brasileiro. "Em 1924, a Declaração de Genebra já tratava do problema." O Código Penal brasileiro condena o responsável pela prostituição de menores a um período de prisão que varia entre quatro e dez anos. Se o responsável for o próprio pai, além da cadeia ele perde o pátrio poder. Para Walter da Silva, só as leis não bastam. "É preciso que a sociedade se preocupe mais com a educação das famílias carentes."

Problemas Brasileiros - O que faz com que crianças e adolescentes sejam levados à prostituição no Brasil?

Walter da Silva - Geralmente, a origem é a desagregação familiar, ocasionada inicialmente pela carência educacional dos pais. Resultado: deficiência nos ensinamentos a seus filhos. Que condições têm os pais de ensinar o correto a seus filhos se eles não sabem o que é correto? O germe está dentro do ambiente familiar. Outro fator de degradação do menor é a paternidade ou maternidade irresponsáveis. São mães que geram seus filhos e não os assumem. São pais que abandonam mães e filhos aos favores da sociedade.

Problemas Brasileiros - Nota-se que a maioria das prostitutas - velhas ou novas - que atuam em São Paulo vêm do interior.

Silva - A migração indiscriminada de famílias que chegam à cidade grande buscando a realização do sonho de uma vida melhor é outra causa fundamental. Sem condições para enfrentar os tormentos de uma metrópole, acabam ficando embaixo de viadutos, dormindo nos jardins e buscando uma fonte de sobrevivência. É então que enveredam pelo caminho da prostituição.

Problemas Brasileiros - Há estatísticas sobre esse tipo de problema?

Silva - Não existe um número exato dos casos que vieram parar nas varas da infância de São Paulo. A prostituição infanto-juvenil não é tratada como ato infracional, mas como menores em situação de carência.

Problemas Brasileiros - De que forma se apresenta a violência sexual que atinge os menores?

Silva - De várias formas: atos libidinosos, estupros, aliciamento. Em geral, as meninas provêm de famílias pobres. A maioria dos aliciadores são pessoas inescrupulosas, sem grau de educação. Não são raros os casos de aliciamento praticado pelos próprios pais. Pesquisa do Laboratório de Estudos da Criança da USP, feita em 1990 junto ao Instituto Médico-Legal de São Paulo, mostrou a seguinte estatística: dos 1.104 casos de violência sexual contra menores, 238 foram cometidos por familiares da vítima, sendo que mais de 60% eram pais biológicos ou padrastos. A prostituição, nesses casos, começa na família. Depois as meninas são lançadas na vida, onde continuarão a se prostituir até cair nas mãos de aliciadores estranhos, os chamados cafetões.

Problemas Brasileiros - O problema da prostituição infanto-juvenil é exclusivamente brasileiro?

Silva - Não. Em Paris, por exemplo, calcula-se que 5 mil meninos e 3 mil meninas menores de 18 anos estão envolvidos na prostituição. Na Suíça, as violências são menores. Nos países sul-americanos a incidência é maior.

Problemas Brasileiros - Há algum tipo de punição para essas pessoas?

Silva - Os maiores são responsabilizados criminalmente e enquadrados nos artigos que tratam da violência ao pudor, sedução e corrupção de menores. São crimes considerados hediondos, inafiançáveis e que resultam em penas de quatro a dez anos de reclusão. Se ficar comprovado que os pais foram os responsáveis, eles são incriminados e destituídos do pátrio poder, e os menores encaminhados às instituições ou famílias substitutas. Caso os responsáveis sejam pessoas estranhas, eles são processados. No caso de garotas menores encontradas em casas de prostituição, elas são apreendidas e busca-se o contato familiar para tentar reintegrá-las.

Problemas Brasileiros - Que exigência o Estatuto da Criança e do Adolescente faz em relação à prostituição de menores?

Silva - Antes de tudo, deve-se lembrar que a problemática é tratada no plano mundial. A prostituição infantil é apenas um dos problemas que afetam menores. Sua proteção deve ser integral. Já em 1924, a Declaração de Genebra determinava a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial. A Constituição Federal de 1988, por exemplo, aborda a questão da criança como prioridade absoluta, e a sua proteção é dever da família, da sociedade e do Estado. Os artigos 3o e 4o do Estatuto da Criança e do Adolescente tratam do assunto, garantindo-lhes direitos fundamentais e cobrando deveres da família e da sociedade. Criados por lei, os conselhos tutelares têm a finalidade de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças.

Problemas Brasileiros - Eles estão funcionando perfeitamente?

Silva - Ainda não estão estruturados satisfatoriamente para atender a sociedade. Falta-lhes acomodação e pessoal em número adequado.

Problemas Brasileiros - Que papel tem a sociedade nesse processo?

Silva - Ela deve se conscientizar de que, satisfazendo as necessidades básicas das famílias carentes, talvez não resolva o problema por completo, mas amenizará a situação que hoje enfrentamos.

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