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Um artista singular

RODRIGO ARCO E FLEXA

A música fez do santista Gilberto Mendes um cidadão do mundo. Reunindo o rigor da formação erudita, a experimentação da arte moderna, o humor e a crítica social, sua obra navega pelos mais diferentes caminhos da música de vanguarda, conquistando circulação planetária. Em centros de grande tradição musical, como Europa, Estados Unidos e Japão, Mendes é uma referência constante em selos de gravadoras e concertos voltados para a chamada música contemporânea. Considerado o maior compositor brasileiro vivo, no entanto, Mendes é mais conhecido no exterior do que no seu próprio país.

Essa ironia, fruto do pequeno espaço que a música erudita ocupa entre o público e a mídia no Brasil, é vista com naturalidade pelo compositor. "Não sou capa de revista, mas tenho o reconhecimento do meio musical", diz Mendes. Mesmo distante do grande público brasileiro, em 1997 o compositor foi premiado pelo conjunto da sua obra pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (Apca), além de ter sido indicado por duas vezes nos últimos dois anos para o Prêmio Multicultural Estadão, oferecido aos artistas que mais têm contribuído para a cultura nacional.

Aos 76 anos, esguio, disposto e satisfeito com a vida, Mendes tem como maior preocupação desfrutar o seu cotidiano em Santos, onde mora num apartamento próximo ao mar. "Meu grande projeto é ir com mais freqüência à praia", conta o compositor. A tranqüilidade conquistada, porém, não impede que ele continue a se dedicar a novos projetos e composições.

Enquanto isso, seu trabalho continua sendo tema de inúmeros estudos. Entre os mais recentes, estão o livro O antropofagismo na obra pianística de Gilberto Mendes (Editora Annablume) e o disco "Amor, humor e outros portos - A música para piano de Gilberto Mendes" (Fapesp), ambos nascidos de uma pesquisa de pós-graduação do pianista Antônio Eduardo, mais a obra O pequeno pomo - A história da música da pós-modernidade (Ateliê Editorial), do belga Boudewijn Buckinx, que faz um ensaio em forma de diálogo socrático sobre a música contemporânea internacional, na qual destaca o nome do compositor brasileiro.

Orquestras imaginárias

A ligação de Mendes com a vanguarda musical remonta ao seu nascimento. Afinal, ele veio ao mundo sob o signo do moderno, tendo nascido em 1922, ano de realização da Semana de Arte Moderna. "Aprendi a gostar de música ainda criança, com os meus pais. Achava uma delícia quando ia a um concerto", lembra. Sensível às diferentes formas de expressão musical, Mendes também desenvolveu uma grande paixão pelo jazz. "Gostava muito da música popular norte-americana dos anos 20 e 30, época do seu apogeu. Compositores como Cole Porter tinham o mesmo dom melódico de um Schubert", compara. A falta de condições financeiras para estudar música quando adolescente, no entanto, não impediu o desenvolvimento do talento que já se anunciava.

"Por volta dos 12 anos, a minha principal brincadeira era me imaginar como um regente de orquestra", conta. "Como não tinha vitrola, ouvia música pelo rádio e em filmes. Muitas vezes, somente a primeira parte de uma canção ficava na minha memória. E na minha brincadeira de orquestrador, compunha a segunda parte para poder brincar com a canção inteira, imitando com a voz todos os instrumentos." Apenas com 18 anos é que Mendes ingressou num conservatório musical em Santos. Mesmo assim, o aprendizado formal foi lento, nos primeiros anos. "Nessa época, só queria saber de praia, namoradas e bailes", recorda.

"Só comecei a estudar mais seriamente com meu primeiro emprego, quando passei no concurso para a Caixa Econômica Federal. Depois que diminuí o tempo que tinha para estudar, entrei em pânico e fui obrigado a me organizar", conta. Como aconteceu com outros artistas brasileiros naquela época, o emprego público teve um papel estratégico para Mendes. "Ele era um refúgio para quem queria praticar uma arte. O trabalho era tranqüilo, o que permitia que também me dedicasse à música."

Em busca do moderno

Na década de 1950, Mendes decidiu que era o momento de ampliar seus horizontes. "Por mais gostosa que fosse Santos, sentia que estava um pouco afastado do que vinha acontecendo. Procurei então me ligar mais a São Paulo e à sua vida musical e artística." Dessa maneira, o compositor se aproximou da orquestra de câmara do maestro Olivier Toni, travando depois uma grande amizade intelectual com o grupo de poetas concretistas formado pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, mais Décio Pignatari. Em 1963, Mendes participou da assinatura do "Manifesto Música Nova" ao lado de nomes como Rogério Duprat e Júlio Medaglia.

Publicado pela revista de arte "Invenção", o manifesto tinha como proposta a criação de uma música brasileira cosmopolita, em consonância com as vanguardas artísticas que explodiam pelo mundo. "Achávamos que a música brasileira estava atrasada em relação ao que se fazia no mundo, sendo muito presa a nacionalismos folcloristas e acadêmicos", afirma Mendes.

Dessa maneira, o grupo marcou a música e a cultura brasileiras com inúmeras experiências de linguagem, fundindo sons e poesia concreta, assim como happenings e teatro em apresentações musicais.

Mendes acabou se transformando num incansável divulgador da modernidade musical. Em 1962, criou o Festival Música Nova, que desde então integra o circuito internacional de mostras de música contemporânea, sendo o responsável pelo fato de o Brasil ter escutado pelo primeira vez peças de alguns dos mais importantes autores musicais deste século, como o norte-americano Philip Glass e o alemão Karlheinz Stockhausen.

Muitas vezes contando com parcos recursos para a sua realização, o festival foi consolidado graças ao prestígio de Mendes entre os músicos internacionais, o que permitiu que em diferentes ocasiões o evento fosse co-patrocinado por instituições estrangeiras. Somente no ano passado é que o festival ganhou um apoio nacional de porte, ao ter sua realização assumida pelo Instituto Cultural Itaú. Feliz com tudo o que conseguiu - "a minha geração foi reconhecida, não tenho do que reclamar" -, Mendes apenas lamenta a falta de espaço que os novos músicos brasileiros encontram atualmente na mídia.

"Jovens talentosos como Lívio Tragtenberg, Silvio Ferraz, Paulo Chagas, Paulo Costa Lima e Flo Menezes, entre outros, quase nunca são notícia nos jornais", critica o compositor.

Experimentando linguagens

Mesmo não fazendo um trabalho voltado para o gosto comercial, Mendes lembra com satisfação a repercussão que algumas de suas músicas atingiram.

Entre elas, ele destaca a peça Beba Coca-Cola, uma música experimental que foi tocada nos cinco continentes, e Santos Football Music, composição que mescla a linguagem da música moderna com locuções esportivas, fazendo com que músicos simulem um jogo de futebol em pleno palco. Além de ser caracterizadas pela procura de novas formas sonoras, essas duas composições também são um exemplo da criatividade que Mendes empresta aos títulos de suas composições. "Gosto de inventar nomes sugestivos. É muito mais interessante do que chamar uma música apenas de sonata", diz.

Outra marca da sua produção, embora não obrigatória, é a atenção por temas sociais, o que está diretamente ligado à postura política do compositor. Seu mais novo trabalho nessa linha foi estreado em setembro, durante o 34º Festival Música Nova. Trata-se da composição O anjo esquerdo da história, música de Mendes para um texto-protesto de Haroldo de Campos em favor dos sem-terra.

A liberdade criativa de Mendes torna o seu trabalho universal, do mesmo modo que dificulta qualquer tentativa de rotulação da sua música. "Ele é um artista singular e inclassificável", afirma José Miguel Wisnik, músico e professor de literatura da USP. "O que define sua produção é justamente a capacidade de trabalhar com múltiplas linguagens, incorporando todas as vertentes da música contemporânea", diz.

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