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Na rua da amargura

IMMACULADA LOPEZ

Enquanto líderes políticos do mundo todo, incluindo o presidente Fernando Henrique Cardoso, reafirmavam, em junho, na Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, que as drogas são o grande mal do planeta e que devem ser severamente combatidas, especialistas e estudiosos de várias nacionalidades publicavam um manifesto no jornal "New York Times", fazendo um alerta inquietante: "A atitude assumida até agora pelos governos tem sido mais prejudicial à saúde das pessoas do que a própria droga".

A preocupação expressa no manifesto tem sua razão de ser. Tudo o que os governos têm feito até hoje, pelo menos a maioria deles, é criminalizar o uso da droga, sem atentar para a integridade física - e a cura - de usuários e dependentes. Durante esse mesmo encontro, porém, o presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou uma boa nova: a criação da Secretaria Nacional Antidrogas.

Até o final do ano, a nova secretaria pretende discutir com a sociedade civil e os órgãos governamentais a primeira política nacional antidrogas do país. Até o momento, não são conhecidas as metas na área de saúde, mas na proposta inicial já divulgada o tratamento dos dependentes de drogas aparece como prioridade, ao lado da prevenção e da repressão. Entretanto, alguns sinais levam os profissionais atuantes na área a perguntar se o enfoque repressivo não vai continuar prevalecendo de forma desproporcional. Afinal, a secretaria surgiu vinculada à Casa Militar, subitamente, para surpresa dos especialistas e até mesmo dos ministérios da Saúde e da Educação. Por fatores como esses, agravados pela complexidade do problema a ser enfrentado, é grande a expectativa para saber como a nova secretaria responderá aos enormes desafios que cercam a saúde dos usuários e dependentes de drogas.

"Até hoje, a postura proibicionista seguida pelo país tem limitado e prejudicado muito a atenção à saúde dessas pessoas", avalia o médico sanitarista Fábio Mesquita, um dos brasileiros que assinou o manifesto internacional. Segundo Mesquita, que coordena o Programa de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids da cidade de São Vicente (SP) e a Rede Latino-Americana de Redução de Danos, a excessiva criminalização das drogas impede um debate mais amplo e realista do tema, pois empurra todo usuário em direção à marginalidade e afasta-o dos serviços de saúde.

"Chegam às clínicas e hospitais apenas os que já são dependentes. Na média, demoram cinco anos para fazê-lo, e apenas 30% vão levar o tratamento até o final", relata Mesquita. Ele explica que, devido à visão proibicionista, a única intervenção de saúde admitida é o tratamento baseado na abstinência obrigatória, total e imediata. E os que não conseguem ou não querem parar de usar drogas? E os que ainda não são dependentes ou nunca vão ser? Todos esses parecem ter sua saúde ignorada.

O preço desastroso dessa omissão dos governantes e da sociedade veio à tona com a epidemia da Aids. "Toda uma geração de usuários de drogas injetáveis morreu pela total falta de intervenção - um lamentável exemplo histórico da ausência de política pública na área de drogas", diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad), da Universidade Federal de São Paulo.

Seringas proibidas

O próprio Fábio Mesquita foi um dos responsáveis pela primeira tentativa de implantar um programa de troca de seringas no país. O ano era 1989. A cidade, Santos, no litoral paulista. Quase metade dos casos de Aids do município eram decorrentes do uso de seringas contaminadas. Segundo o médico, a troca de seringas usadas por novas já havia sido aprovada em vários países "como uma medida de impacto, eficiente para conter a transmissão do HIV". Entretanto, lembra ele, o Ministério Público de São Paulo propôs ações cíveis e criminais contra os coordenadores e a prefeitura, "alegando que estávamos auxiliando ou até incentivando o uso de drogas". Na opinião de Mesquita, essas ações não só igualavam os profissionais de saúde pública aos traficantes, como deixavam transparecer a concepção de que um usuário de drogas não tem direito à saúde e não merece nenhum cuidado até deixá-las.

Antes mesmo de ser implantado, o programa de troca de seringas foi suspenso. Alguns anos depois, em 1995, o número de casos de Aids entre usuários de drogas injetáveis já era quase dez vezes maior na cidade. Também cresceu assustadoramente a contaminação entre mulheres - muitas usuárias de drogas ou parceiras de usuários. Nesse meio tempo, algumas iniciativas partiram de organizações não-governamentais. Elas persistiram e finalmente, a partir de março deste ano, conseguiram respaldo legal para agir. Oito anos depois da primeira tentativa, foi regulamentada uma lei estadual em que se autorizava a troca de seringas para prevenção de Aids.

"Se historicamente quem usa drogas só chega ao serviço de saúde em situações extremas, como overdose, prisão ou troca de tiros com traficantes", diz a psicóloga Celi Cavallari, do Conselho Estadual de Entorpecentes, de São Paulo, "com a Aids, ficou evidente que a pessoa deve merecer atenção antes e que lhe devem ser oferecidas alternativas." A própria Organização Mundial da Saúde passou a recomendar: o ideal é não usar nenhum tipo de droga, mas, se for usar, não use as injetáveis, e, se as usar, não compartilhe a seringa e, se a compartilhar, desinfete-a antes.

Segundo Mesquita, é fundamental reconhecer que o abuso de drogas traz outros agravamentos para a saúde além dos causados pela droga em si. Daí a necessidade de diversificar a intervenção além do tratamento convencional, "para resguardar a vida das pessoas". Essa nova visão, provocada pela disseminação da Aids, originou os chamados programas de redução de danos em diferentes cidades do país, por iniciativa da sociedade civil ou de prefeituras. Como explica o próprio nome, essas ações buscam amenizar os problemas associados ao consumo de drogas.

"O grande avanço dessa proposta", diz o psiquiatra Tarcisio Matos de Andrade, coordenador do programa do Centro de Estudos e Terapia ao Abuso de Drogas (Cetad), da Universidade Federal da Bahia, "é reduzir os riscos à saúde da pessoa a partir de uma postura de respeito ao seu comportamento, sem discriminá-la."

Nesse trabalho, é importante o papel dos "redutores" (que podem ser educadores sociais, ex-usuários ou usuários, devidamente treinados), que vão às ruas procurar entrar em contato com quem usa drogas. "Com a postura de respeito, os redutores têm maior chance de chegar à intimidade dessas pessoas, percebendo melhor suas práticas e necessidades", diz Andrade. Dessa forma é possível dimensionar melhor os cuidados que devem ser prestados. O projeto do Cetad, pioneiro entre entidades oficiais do país na troca de seringas, foi implantado em Salvador em 1995.

Só em 1996 o Ministério da Saúde reconheceu a urgência desse tipo de intervenção e apoiou um primeiro projeto do gênero - hoje, são 14, em vários estados. "Sabemos que o usuário de drogas pode atravessar sua vida adulta usando substâncias legais e ilegais sem, contudo, fazer uso abusivo", pondera Fernando Marques, responsável pelo Programa de Redução de Danos da Coordenação Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis/Aids, do Ministério da Saúde. "Nossa preocupação é garantir as condições mínimas para que essa pessoa não se infecte ou não dissemine agentes de doenças."

Mas, para alguns especialistas, como a psiquiatra Diva Reali, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, os usuários de drogas deveriam ser alvo de políticas oficiais de saúde mais amplas, e não apenas voltadas à sua condição de potenciais transmissores ou receptores do vírus da Aids.

Segundo Diva, essas pessoas podem fazer um uso menos prejudicial da droga ao deixar de usar seringas contaminadas, ao saber evitar uma overdose, ao reduzir a freqüência de uso, ao substituir uma droga mais pesada por outra mais leve, ao não misturar substâncias, para dar alguns exemplos.

Na opinião da psiquiatra, fornecer orientações como essas não é uma atitude permissiva ou encorajadora ao abuso de drogas. "Apenas admitimos a importância de ter estratégias de saúde variadas", diz. Para ela, cada grupo ou situação merece atenção distinta. "Claro que não vamos distribuir folhetos sobre prevenção de overdose ou transmissão de hepatite pela seringa para alunos de uma quinta série. Mas, para certos grupos em particular, essas informações são essenciais."

De acordo com Diva, a realidade deve ser enfrentada na sua complexidade e não continuar dividida em dois pólos, separados por um abismo. Aos olhos da sociedade, parece que de um lado estão os que nunca usaram drogas - e devem ser prevenidos de que "droga mata". Do outro, estariam os "drogados", qualquer um que já tenha usado alguma droga, não importa qual, quanto ou como. Para estes, só haveria um caminho: "Eliminar as drogas de sua vida".

"A reação alarmista e exagerada de uma mãe que encontra seu filho fumando um cigarro de maconha evita uma conversa franca e esclarecedora, e até pode incentivar o uso", exemplifica a psiquiatra. "Não podemos simplesmente repetir o discurso de que uma droga leva a outra, numa escalada perigosa e irreversível." Segundo Diva, essa trajetória não vale para todos os usuários.

Na verdade, nem os próprios profissionais de saúde sabem lidar com a situação de forma clara e equilibrada. Geralmente, quando alguém chega ao posto de saúde ou consultório particular com uma queixa qualquer que pode estar relacionada com o uso ou abuso de drogas, o profissional costuma não tocar no assunto. "Há um despreparo geral para qualquer tipo de orientação ou abordagem", confirma a psicóloga Celi Cavallari. O problema só vai aparecer bem mais tarde, ao se transformar em um caso de dependência. E, na verdade, mesmo nessa situação extrema, muitas pessoas não sabem a quem recorrer.

Tratamento

São poucas as unidades de saúde pública especializadas na dependência de álcool e drogas. Em uma cidade como São Paulo, há apenas três serviços da prefeitura. Algumas universidades públicas, como também organizações não-governamentais, têm desenvolvido projetos ambulatoriais. Considerados referência em todo o país, também atendem a uma parcela restrita da população. Quem pode pagar procura uma das caras clínicas de desintoxicação. A grande maioria dos pacientes, entretanto, acaba internada nos hospitais psiquiátricos. Segundo o Ministério da Saúde, o número anual de internações por consumo de drogas dobrou entre 1993 e 1997, passando de 5.429 para 11.084.

Outra alternativa de internação que vem se multiplicando em todo o país são as comunidades terapêuticas. Há pelo menos 170 delas, muitas baseadas em filosofias religiosas. O despertar espiritual também é a base do tratamento oferecido pelas centenas de grupos de auto-ajuda organizados no país, como os Narcóticos Anônimos.

"Diante da omissão do governo, a sociedade se mobilizou para criar alternativas, o que é muito positivo", avalia o psiquiatra Ronaldo Laranjeira. "O problema é que a maioria delas se baseia na internação." O próprio Ministério da Saúde reconhece que o atual modelo adotado pelo Sistema Único de Saúde, baseado em internações longas em hospitais psiquiátricos, está totalmente ultrapassado. "Os serviços ambulatoriais se mostraram tão ou mais eficientes que as internações", diz Adriano Mosimann, coordenador do Serviço de Atenção ao Alcoolismo e Dependência Química, do Ministério da Saúde. Segundo ele, não há apenas ganho de eficiência, mas também redução de custos, melhoria de qualidade do atendimento (mais integral e personalizado) e aumento de reintegração na comunidade.

Segundo os especialistas do ministério, a ausência de normatização, controle e avaliação tem permitido a proliferação de propostas terapêuticas nem sempre norteadas pela ética profissional ou pelo rigor científico. Desde fevereiro, uma equipe interna está se dedicando à discussão de normas e diretrizes para os serviços de atenção ao uso e abuso de drogas.

"Hoje, muitos gestores municipais e estaduais não sabem o que fazer, nem como. Com a regulamentação, vão se sentir mais capacitados", diz Mosimann. Em sua opinião, o grande desafio é integrar as ações básicas e intermediárias de saúde mental no dia-a-dia dos serviços existentes. "O médico de família e os agentes comunitários, por exemplo, terão um papel essencial para detectar, orientar e encaminhar os problemas relacionados com drogas e álcool." O objetivo é criar núcleos de atendimento psicossocial onde essas pessoas sejam atendidas e acompanhadas, sem necessidade de internação.

Segundo Ronaldo Laranjeira, que tem acompanhado os movimentos dos diferentes governos, poucas vezes o discurso tem se transformado em uma agenda política de metas e ações. Há dois anos, ele foi convidado pelo governo estadual paulista a formular as bases para uma política de tratamento dos problemas relacionados ao álcool e outras drogas. "Fizemos um diagnóstico do problema e traçamos um novo modelo, baseado em unidades ambulatoriais comunitárias", conta Laranjeira. O objetivo era criar uma política ampla e diversificada, que não se limitasse à internação dos casos extremos de dependência. Ao mesmo tempo, a política deveria ser flexível e regionalizada, para lidar de forma rápida e eficaz com situações novas, como o advento do crack em São Paulo. "Mas esbarramos no despreparo dos profissionais e na falta de agilidade da gestão pública", conta Laranjeira. A proposta foi esquecida, e até hoje, segundo o especialista, o estado paulista - como o restante do país - continua sem uma política pública ampla na área de drogas.

Relação perigosa

Uma droga por si só não traz o abuso ou a dependência, nem lança a pessoa numa escalada irreversível de uma droga para outra, dizem hoje os especialistas. "A droga não é mais entendida como uma substância todo-poderosa que age por si na vida da pessoa, dominando-a", afirma o psiquiatra Marcelo Fernandes, do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), da Universidade Federal de São Paulo. Segundo ele, percebeu-se que mais importante que a droga é a relação que se cria com ela. E, portanto, mais que se preocupar se a droga é lícita ou ilícita, "leve" ou "pesada", deve-se dar atenção ao significado que ela tem para cada um.

Considerando as conseqüências causadas pela droga no dia-a-dia da pessoa, os especialistas diferenciam três tipos de uso: o controlado, o nocivo e o dependente. "O que determina essa relação", explica o psiquiatra, "é a soma de características do indivíduo, da substância e do contexto." Ou seja, dependendo da história pessoal de cada um ou do momento pelo qual está passando, ou ainda de suas condições de vida, o consumo da mesma droga pode ter significado diferente. E, apesar de ter os mesmos efeitos fisiológicos, pode gerar ou não dependência. Portanto, nem toda pessoa que fuma um cigarro de maconha, por exemplo, vai fumar cada vez mais e necessariamente passar para outras drogas.

Tomar uma cerveja na sexta-feira ou cheirar uma "carreira" de cocaína em dia de festa podem ser exemplos de uso controlado. "Falamos em controle quando o uso da droga não provoca conseqüências negativas na vida da pessoa", aponta Fernandes. O abuso começa quando parte da vida vai sendo comprometida - a pessoa falta à aula ou chega atrasada ao trabalho, briga em casa, bate o carro... Ou ainda começa a não se divertir sem a droga. Nos casos de dependência, esse repertório de atividades fica ainda mais restrito e centralizado na droga. "A pessoa cria tal relação com a substância que perde a possibilidade de escolha", diz Fernandes. A situação não é irreversível, mas deve ser mudada para que a pessoa possa recuperar a liberdade de usar ou não, pois, quando dependente, não tem escolha.

"A dose, a freqüência e o tipo de substância ajudam a definir o quadro", declara ele. Dificilmente alguém que consome diariamente cocaína tem um uso controlado. Mas não é só a freqüência que importa, pois uma bebedeira exagerada, mesmo que uma vez por mês, pode trazer grandes prejuízos para a vida do usuário. Por outro lado, especificidades da substância podem facilitar a dependência, como se verifica com o crack, que em alguns minutos traz um imenso e rápido prazer, fazendo com que a pessoa logo queira mais. "O fato de custar barato e combinar com o estilo de vida frenético das cidades também colabora para que seu uso seja mais repetido", reforça Fernandes. Esse é só um exemplo dos fatores que levam ao abuso ou dependência.

A maioria das drogas causa dependência apenas psíquica. Ao deixar de usá-la, a pessoa até pode sentir sintomas físicos, mas na verdade eles têm origem psicológica e não vão causar a morte do usuário. Por outro lado, drogas como álcool, heroína ou calmantes podem provocar também dependência física. Em outras palavras, o organismo se acostuma com a droga e, quando o uso é suspenso, ele reage. Nesses casos, os sintomas da chamada síndrome de abstinência são bem definidos e, sem a intervenção necessária, a pessoa pode morrer. "Mas dependência física não significa que uma droga seja mais grave que outra ou que o tratamento seja mais difícil. A diferença é que o médico deve estar atento a mais esse quadro", diz o psiquiatra.

A maioria das drogas é eliminada do organismo em poucos dias. De todo modo, quando o efeito de prazer passa, vem um mal-estar. Apesar de desagradável, essa "ressaca" pode ser superada com certa facilidade, mas, para algumas pessoas, pode tornar-se insuportável. "Para esse grupo, a ressaca acaba colaborando para um novo uso", diz Fernandes, "mas não por ação da substância em si, e sim pela maneira como o usuário lida com a situação." Segundo o psiquiatra, apenas drogas que causam dependência física exigem do organismo uma dose maior para sentir o mesmo efeito. E nenhuma delas provoca uma necessidade física de consumir uma substância "mais forte". "O aumento de dose ou a passagem de uma droga para outra ocorre principalmente pela falta de limite de prazer", diz Fernandes. Mais uma vez, é o significado da droga que se revela decisivo: "A pessoa busca algo com a droga, e essa busca pode tornar-se insaciável".

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