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Tesouro ameaçado

ANA MARIA FIORI

O dia 24 de junho de 1698 marca a data em que o bandeirante Antônio Dias avistou o pico do Itacolomi e, através dessa referência geográfica, identificou a região de onde viera um tipo diferente de ouro, envolto em cobertura mineral escura, anteriormente encontrado por viajantes e que despertara grande interesse. A partir de então, diversos arraiais surgiram ao redor das minas, no vale do Tripuí, e são considerados hoje a origem da cidade.

Nas comemorações dos 300 anos da cidade, destaca-se o projeto Ouro Preto Mãe Paisagem. Criado por Gélcio Fortes, diretor do Museu Guignard, ele reúne as principais instituições culturais da cidade e deverá se estender até 1999. A curadora de teatro e literatura do projeto, Guiomar de Grammont, professora de filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), acredita que festejar uma data específica é algo muito polêmico. "O que importa para a história são os grandes processos, como o fenômeno das bandeiras, que levou à criação da cidade", diz ela.

Cidade que muitas vezes amanhece envolta em neblina, numa paisagem de sonho, a Ouro Preto real costuma escapar ao olhar dos milhares de turistas que a visitam vindo de todos os lugares do mundo. Poucos sabem que o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, concedido pela Unesco, refere-se ao conjunto arquitetônico do centro histórico, e não apenas aos monumentos. O rico acervo de arte barroca está presente num local onde as pessoas vivem, trabalham, estudam, mantêm vivas as tradições religiosas e as festas populares, além de algumas lendas, como a do bandido Vira-Saia, do século 18, hoje nome de rua em Ouro Preto. Conta-se que as pessoas do bairro rezavam na frente de um oratório que até hoje existe numa das esquinas da Rua Santa Efigênia. A posição da santa era o código para que o bandido assaltasse ou não os tropeiros que seguiam para o Rio de Janeiro com os burros carregados de ouro. Quando a santa estava virada de lado isso significava que havia barreiras, portanto, nada de assalto: vira e sai - daí a corruptela Vira-Saia.

Ocupação desordenada

Imaginar-se no século 18 vendo a ação do bando de Vira-Saia é muito fácil para quem se encontra em Ouro Preto, onde a arquitetura evoca o passado o tempo todo. Hoje, uma intensa conexão entre passado e presente caracteriza a cidade. Até as agências bancárias, com seus modernos computadores, estão instaladas em prédios antigos, com varandas e portas de madeira, num conjunto que em nada lembra os edifícios de vidro e concreto das grandes cidades.

Esse vínculo entre épocas distantes, se por um lado é a própria alma da cidade, por outro também realça seus problemas. Um deles é a ocupação desordenada das encostas de morros, na periferia, que reflete problemas sociais, coloca em risco a vida de parte da população, compromete o aspecto visual de Ouro Preto e traz conseqüências ao próprio centro histórico.

O geólogo Frederico Garcia Sobreira, professor da Ufop, diz que a ocupação de linhas de passagem de água e de áreas com fortes declives, além de aterros lançados de qualquer modo, propiciam as condições para que, numa época de chuva, ocorram movimentos do solo. "As rochas da região são muito dobradas, porque sofreram diversas deformações ao longo de sua história geológica. A essa característica somam-se o relevo acidentado de serra e o clima chuvoso, formando um ambiente propício a escorregamentos." Sobreira acrescenta que a grande fronteira de ocupação atual, a serra de Ouro Preto, já foi área de mineração. "Portanto, esta é a segunda intervenção humana. Seriam necessários tanto um plano de ocupação quanto outros de reordenamento. Ouro Preto urge reabilitação na periferia."

Outro problema, de acordo com Romero César Gomes, engenheiro civil e geólogo da Ufop, é que a própria rodovia de acesso à cidade está localizada na metade da encosta e corta todas as drenagens naturais, que são as nascentes do rio Doce. Ele conta que foi uma obstrução de drenagens na área da estrada que gerou a ruptura catastrófica de 4 de janeiro de 1997.

Diversos materiais que desceram das encostas, como colchão, fogão, cercas e lixo, entupiram o bueiro da rodovia, calculado, no início da década de 50, para uma área verde totalmente desocupada. Como conseqüência, dois bairros de classe média de Ouro Preto, localizados no centro histórico, foram inundados e ficaram sem energia elétrica. Faltou água no centro da cidade, porque a canalização que o abastecia passava pela área da ruptura. O comércio foi a zero e instalou-se o caos no trânsito. No mesmo período, um grande escorregamento numa das encostas, no bairro da Piedade, matou 11 pessoas.

Gomes alerta para a possibilidade de rompimento no aterro rodoviário da região do Passa Dez, na entrada de Ouro Preto, que já mostra sinais de instabilização. "Como ali está a maior das nascentes, o problema pode ser entre cinco e dez vezes maior que no ano passado. Essas observações não têm um caráter alarmista, mas os acontecimentos anteriores justificam a preocupação. As soluções seriam a conscientização da população, investimento em educação, trabalhos preventivos e a criação de um órgão de defesa civil na cidade."

Como prova de que o entorno afeta o centro histórico, o engenheiro observa que o trânsito desviado por um ano, em virtude da ruptura na rodovia, elevou o tráfego pesado no núcleo urbano. Em prédios como o Museu da Inconfidência e a Escola de Minas, onde já existiam problemas estruturais, a conseqüência foi o aparecimento de trincas, também detectadas em vários outros pontos da cidade. "O problema de tráfego em Ouro Preto chegou a um grau de acumulação tão alto que, agora, a própria manutenção do trânsito nos níveis anteriores ao desvio já é crítica."

Até o final do ano, ônibus convencionais não circularão mais no centro histórico, informa o engenheiro Robinson Ferreira Aquino, secretário de Turismo, Indústria e Comércio, que também responde pela Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Ouro Preto. Aquino explica que estudos sobre o trânsito serão feitos dentro do Plano de Reabilitação do Sítio Histórico de Ouro Preto, que o Ministério da Cultura desenvolve com a participação da prefeitura e financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

O projeto, entre outros itens, contempla a conservação e o restauro de monumentos, obras emergenciais em pontes históricas, recuperação de espaços públicos e áreas verdes, além de reformas de imóveis privados - em parceria com seus proprietários. A assinatura do convênio está prevista para o mês de novembro, e o recebimento de recursos deverá acontecer ainda em 1998, acredita o secretário.

O engenheiro Romério Rômulo, pró-reitor de Planejamento da Ufop, receia que o financiamento de cerca de R$ 12 milhões - metade arcada pelo BID, a fundo perdido - seja cancelado, caso o plano não apresente muita clareza. "Isso já aconteceu em outro momento, com um projeto do governo do estado de Minas Gerais", diz ele.

O cancelamento da verba traria graves prejuízos a Ouro Preto. De acordo com o engenheiro Marco Antonio Tourinho Furtado, vice-reitor da Ufop, desde o fim dos anos 70 o município vem perdendo importância econômica e industrial, mesmo com o surgimento de algumas minerações. "A partir dos anos 80 a decadência se acelerou. Enquanto o PIB de Minas Gerais crescia 35% entre 1985 e 1995, Ouro Preto teve redução de 41% no período. Reflexo dessa grave crise econômica é o decréscimo da população entre 1991 e 1996 de 1,4%."

O restaurador Julio Cesar Barros, diretor de Patrimônio Histórico e Artístico da prefeitura, afirma que hoje a cidade não tem uma dotação de verba por parte do governo federal nem do estadual, e o município está paupérrimo. E nem mesmo o turismo, segundo ele, ameniza essa situação. "Em 1938 o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tombou Ouro Preto totalmente, mas a cidade tem 60 anos de problemas. O Ministério da Cultura tem uma série de benefícios por possuir em sua lista uma cidade do porte de Ouro Preto, e é preciso que o governo federal seja realmente responsabilizado pelas questões do município", diz Barros.

O arquiteto Glauco de Oliveira Campello, presidente do Iphan, lembra que o instituto é o supervisor técnico do Plano de Reabilitação do Sítio Histórico de Ouro Preto, resultado de uma proposta do próprio instituto ao Ministério da Cultura. Ele explica que o Iphan tem o papel de criar os critérios para a preservação, fiscalizar e educar. "A prefeitura deve incorporar as exigências de preservação do Iphan às suas leis." Campello diz que no Brasil todo há mais de mil monumentos tombados e que as verbas do instituto são utilizadas prioritariamente nas obras de emergência.

O presidente do Iphan reconhece as críticas - ouvidas por todas as ladeiras da cidade - sobre o número reduzido de funcionários no escritório de Ouro Preto e explica que o instituto aguarda permissão para realizar concurso. "Na realidade, a falta de pessoal não é uma peculiaridade de Ouro Preto", diz Campello.

Programas educativos

Apesar desses problemas, uma atividade de extrema importância para a preservação do patrimônio resiste no Museu da Inconfidência, órgão do Iphan. No final da década de 70, teve início um trabalho sistematizado de educação não formal, que dá prioridade à população local. Desde o princípio formada por uma equipe pluridisciplinar, hoje a área pedagógica conta com a historiadora Elizabeth Salgado de Souza, funcionária do instituto, e mais cinco técnicos em assuntos educacionais contratados temporariamente.

A equipe se reúne na Casa do Pilar - um anexo do museu -, e recebe a população de 7 a 80 anos para os projetos Ludomuseu, Visitas Orientadas e Museu na Rua. O Projeto Museu Escola, pioneiro, destina-se a crianças de 7 a 14 anos, e funciona desde 1979. "A partir de jogos, brincadeiras e passeios, sem caráter escolar, a proposta pedagógica vai da identificação do espaço urbano, do lugar onde se vive e por onde se anda, para depois chegar ao objeto museológico - até porque de alguma forma consideramos a cidade o próprio objeto, já que é uma cidade patrimônio", diz Elizabeth.

Ela explica que é necessário compreender a estrutura da cidade, em termos de suas instituições, lugares e espaços de fé, devoção, lazer, trabalho e afetividade. "Principalmente, é preciso entender o ser humano dentro desse espaço, seu modo de agir, de pensar, de fazer, porque aí chegamos ao objeto museológico como veículo de informação dessa história. O patrimônio só é patrimônio porque guarda identidade e memória." Hoje, ela vê com satisfação as escolas municipais e estaduais empenhadas em trabalhar essa proposta pedagógica, num efeito multiplicador.

A preservação e a educação, em Ouro Preto, interligam as questões históricas e ambientais. Um cinturão verde contorna a cidade e é composto pela Estação Ecológica do Tripuí, com cerca de 337 hectares, o Parque Estadual do Itacolomi, com 7.543 hectares, e uma área de proteção ambiental com 18,7 mil hectares. Na estação ecológica, criada há 20 anos, encontra-se a antiga casa da Rede Ferroviária e parte da Estrada Real. O biólogo Aristides Salgado Guimarães Neto, gerente da estação, explica que ela é a única no Brasil a proteger um invertebrado, o Peripatus acacioi. "O grupo dos Peripatus tem grande importância, por ser considerado um 'elo perdido', ancestral mais provável dos anelídeos e dos artrópodes."

No Parque Estadual do Itacolomi, como o próprio nome diz, ficam o pico avistado há 300 anos e, entre outros monumentos, a casa sede da Fazenda São José do Manso, uma casa bandeirista, supostamente mais antiga que a maioria das construções de Ouro Preto. Seu estilo arquitetônico é uma referência, que marca a presença dos bandeirantes paulistas em Minas Gerais. O engenheiro florestal Alberto Vieira de Melo Matos, gerente do parque, está envolvido em um grande trabalho de educação ambiental, que procura conscientizar a população da importância da prevenção de incêndios.

Tudo em nome da preservação, palavra-chave em Ouro Preto, que cultiva a memória de seus personagens-símbolos, sejam eles reconhecidos ou não pelos historiadores. Uma dessas figuras polêmicas é Chico Rei, um herói negro sobre o qual já foram escritos livros, mas que, na opinião de algumas pessoas, não existiu. Uma das alegações para isso é que suas certidões de nascimento e óbito nunca foram encontradas.

Chico Rei encontra em Maria Bárbara de Lima, conhecida como Mariazinha, uma ferrenha defensora. "Resolvi reabilitar Chico Rei, o rei Kalanga, da dinastia dos Aluquenes, no ex-Congo Belga, que foi escravizado e cumpriu sua promessa de voltar a ser rei e libertar sua tribo. Procuro conscientizar, também, porque os conjuntos arquitetônicos, as igrejas trabalhadas em ouro, saíram de onde? Do subsolo e das mãos desses escravos africanos."

A professora Guiomar de Grammont acredita que é mais importante entender o que significa Chico Rei, a relação que as pessoas têm com esse herói, do que saber se de fato ele existiu. "A figura de Chico Rei representa a identidade de uma minoria, que teve sua tradição cultural negra esmagada pelo catolicismo. Nesse sentido, os elementos da cultura africana na Igreja Santa Efigênia vão além do sincretismo religioso, e representam a resistência do escravo em Ouro Preto."

Resistência, outra palavra constante no vocabulário da cidade. Revoltas, Inconfidência, o passado se materializa em monumentos que hoje resistem à ação do tempo graças ao talento de seus artistas e muitas vezes ao apoio da iniciativa privada. São ações individuais de empresários mineiros, de grandes empresas do eixo Rio-São Paulo e de fundações internacionais, que investem em Ouro Preto, com ou sem o benefício de leis de incentivo. Atitude bem-vinda e que deve ser ampliada, porque cupins de solo atacam as construções da cidade e hoje ameaçam monumentos de valor incalculável, como a Igreja Santa Efigênia. Ela necessita, com urgência, de reformas e recursos para, mais uma vez, resistir.

Os empresários e seus executivos deverão visitar com mais freqüência a cidade, a partir de 1999, quando deverá ser concluído o Centro de Convenções de Ouro Preto. São 7,4 mil metros quadrados de área construída, que utilizam as antigas instalações do Parque Metalúrgico da Escola de Minas da Ufop e incluem um Museu de Siderurgia. O Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da universidade será responsável por toda a produção e programação artística do centro, que, espera-se, ajude a tirar Ouro Preto de sua crise econômica.

A recuperação do passado

Em Ouro Preto, quando se fala em restauração, todos lembram Jair Afonso Inácio, a quem se referem como "um gênio". O artista, que nasceu em 1932 e morreu um dia depois de completar 50 anos, está enterrado no cemitério da Igreja Santa Efigênia, onde passou sete anos trabalhando no forro da nave.

Autodidata que - diz-se - falava fluentemente sete idiomas, com seu talento na área de restauro ganhou uma bolsa da Fundação Rockefeller e fez um curso no Instituto Real da Bélgica. Integrante de um grupo de intelectuais que incluía Rui Mourão, Vinícius de Morais e Domitila do Amaral, junto com eles foi responsável pela criação da Fundação de Artes de Ouro Preto (Faop).

Como, até então, o Brasil contava com apenas três restauradores de renome, num circuito fechado, Jair Inácio preocupava-se com a possibilidade de que o restauro no Brasil acabasse. Queria formar mão-de-obra técnica, e foi o primeiro professor de restauração da fundação.

Hoje, é seu filho, Turinã Alves Inácio (foto), 32 anos, também restaurador, quem se preocupa em dar continuidade à sua obra. Com 8 anos Turinã já acompanhava o pai e desde os 14 trabalha no restauro. Chefe de serviço do Departamento de Patrimônio da Prefeitura Municipal de Ouro Preto, há 19 anos é parceiro do atual diretor de patrimônio. "Em todas as obras que fizemos, sempre procuramos trabalhar com pessoas da comunidade, através de oficinas-escola, dentro da visão multiplicadora de meu pai."

Outro artista que tem grande responsabilidade na conservação do patrimônio de Ouro Preto é José Raimundo Pereira, conhecido como seu Juca da Cantaria. O apelido é conseqüência da antiga técnica portuguesa de trabalho em pedra, cantaria, que ele recuperou. Ouro-pretano nascido no morro de São Sebastião, aos 75 anos seu Juca ainda escolhe pessoalmente, na natureza, a rocha de quartzito que será a base de sua arte.

Mestre-de-obras que estudou apenas até o curso primário, em 1980 seu Juca da Cantaria recebeu a incumbência de fazer uma cruz de concreto para substituir outra, de pedra, que havia sido cortada por um raio, na Igreja de São Francisco de Paula. Com suas ferramentas, sensibilidade e dedicação, seu Juca foi buscando os detalhes, até conseguir executar uma réplica, em pedra, da cruz original. Desde então, suas obras são encontradas em todos os monumentos de Ouro Preto, de igrejas a chafarizes.

Também preocupado em não ser o único a dominar a arte da cantaria, seu Juca já formou oito alunos na Faop - entre eles dois professores universitários -, e ensinou os fundamentos da técnica nos festivais de inverno realizados na cidade em 97 e 98. Em agosto deste ano preparava as duas laterais e o arco da porta do futuro Museu do Oratório, ao mesmo tempo em que construía duas bolas da escadaria da Igreja Santa Efigênia. "O dia em que achar que seu trabalho está ótimo, você parou sua carreira", diz seu Juca da Cantaria.


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