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Entrevista
Teixeira Coelho

"Cultura é questão de sobrevivência." Com essa sentença incisiva, Teixeira Coelho aponta o lugar onde deveria estar esse conceito elástico, que serve tanto para caracterizar uma sociedade como para identificar o produto da criatividade humana. Será?

"Se tudo é cultura, nada é cultura", refuta o diretor do MAC. "Portanto não posso considerar a dança da garrafa como sendo um elemento cultural."

Para Teixeira Coelho, na atualidade, a cultura tornou-se o único fator agregador entre os seres humanos, mais que a religião ou ideais políticos. Ela serve de ponto de partida para qualquer tentativa de planificação nacional.

Se o homem um dia foi declarado um ser político, hoje ele nada mais é "que um ser sentante" e iniciativas culturais (efetivas) têm a nobre função de desbancar o homem da cadeira para reacender sua verve criativa.

"A cultura é uma longa conversa que permite as pessoas encontrarem os fins." Mas que Faustão ou Silvio Santos algum nos imponha o assunto.

Como a cultura pode ser benéfica na ocupação do tempo livre das pessoas?

Essa relação entre cultura e tempo livre é mais antiga do que se pode pensar. A cultura, inclusive num sentido mais restrito, que envolve a produção de obras diferenciadas, é inerente ao homem. O que talvez seja diferente em relação ao passado é o fato de que a cultura hoje, especialmente na sociedade ocidental, ao menos por enquanto, se apresenta-se como o grande substituto de outras coisas que no passado ocupavam esse lugar, como o caso da religião. Como se coloca isso num momento em que a sociedade se desvencilha da religião? Surge um substituto para essa religião, e substituto não em um sentido comum, mas no sentido etmológico, que indica aquele que religa as pessoas de volta a alguma coisa. No momento em que as religiões tradicionais, com pós-morte, se ligam com metafísica, a cultura se compõe como a única religião. O que pode ligar as pessoas se não for a cultura? Muito pouca coisa. O esporte, por exemplo tem uma função socialmente positiva, mas para quem está fazendo parte do jogo, e não do ponto de vista de quem assiste. Esporte deveria ser aquilo que as pessoas fazem e não aquilo que as pessoas vêem. Seria interessante levar em consideração uma observação de Jorge Luis Borges sobre o futebol, quando ele lembrou que, por trás e por cima do futebol, o que está em jogo é um sentimento bárbaro de nacionalidade, de profissão e de conflito. Não há dúvida de que o substituto da religião, ou seja, o substituto daquilo que pode religar as pessoas, seja a cultura. Alguns pesquisadores e pensadores acreditam mesmo que a cultura será o grande elemento diferenciador do século 21. Sem cultura sólida, não será possível sequer governar um país. Então dependem da cultura, não apenas o desfruto do tempo livre digno, mas a sobrevivência da humanidade.

Mas os laços que unem as pessoas não estão sendo subjugados por outros mais fortes?Não existem mais laços da religião e os laços de família estão cada vez mais soltos. A responsabilidade de uma política cultural é a criação de condições para que laços de convivência social voltem a ser criados com a da partilha de objetos culturais comuns. Quando uma pessoa descobre que a outra gostou do filme que ela foi ver, encontra um campo em que pode conversar com outra pessoa. As pessoas percebem que pertencem a alguma comunidade ao partilhar uma determinada experiência. Esse é na realidade o grande produto da caça cultural. Muito mais importante que passar determinado conteúdo é o fato de ter sido possível entrar em contato com outra pessoa. Por exemplo, o Teatro Municipal: a conformação com que o teatro é construído se explica pela necessidade de se contornar o palco da melhor maneira possível. O teatro é um lugar onde as pessoas se vêem mutuamente. Você vai ao teatro para ver as outras pessoas. Ir ao teatro é um ato de sociedade, não no sentido mais bobo da palavra, mas do ponto de vista de que se participa de um ato social. As pessoas, sobretudo, partilham suas emoções e seus pensamentos. O que nós necessitamos é de um lugar onde possamos falar. E a cultura propicia isso. A religião metafísica está em decadência, mas a religião comunista também está. As formas das pessoas se ligarem com o outro através de discursos políticos estão cada vez menores, tanto no Brasil como no exterior. Isso é claríssimo em pesquisas, entre os jovens universitários. Eles não acreditam mais em política, consideram ultrapassado seu arcabouço. Ocorre que os órgãos culturais estão desgastados e só a prática cultural pode restaurá-los.

Não há um paradoxo no seu discurso, quando o senhor diz que o conteúdo daquilo que une as pessoas, ou seja, a cultura, não é importante?

Na verdade eu disse que há coisas acima dele. É claro que o conteúdo é importante. Existem práticas culturais, assim chamadas equivocadamente que promovem a desagregação de esferas sociais. Sem a menor dúvida pode-se dizer que isso não é cultura. Por exemplo, a dança da garrafa não é cultura. Não há nenhum esquema de raciocínio sociológico ou filosófico no mundo que consiga demonstrar que a dança da garrafa é cultura. Pode ser cultura no sentido antropológico segundo o qual tudo o que é produzido é cultura, mas, contemporaneamente, essa definição é inaceitável: quando tudo é cultura, nada é cultura. Dessa forma, é preciso estabelecer valores. A dança da garrafa não contribui para a congregação, pois não se propõe fazer uma religação (no sentido etmológico) do homem com o mundo.

Ela só vai levar à exploração de uma pessoa por outra ou de uma faixa etária por outra. A cultura não serve para esse tipo de adulteração, ela é algo capaz de transportar o homem para o interior de uma sociedade sem os interesses imediatistas. Em outras palavras, uma boa definição de cultura é o conjunto dos atos que permite criar seus próprios fins a partir de uma conversa com os outros. Quando se assiste a um programa que mostra crianças dançando sobre uma garrafa, está-se diante de um fato que impede o espectador de criar seus próprios fins. Não se participa da discussão desses fins. Costumo dizer que civilização é uma longa conversa na qual são fixados metas e valores. Em grande parte das atividades ditas culturais, mas que desintegram os liames, não ocorre uma conversa, há, na verdade, uma interpelação externa indiscutível: um pacote pronto que não admite críticas. Uma política cultural tem de favorecer a discussão conjunta.

A tentativa de formar uma política cultural eficiente vem perdendo espaço para a imposição externa e, até massacrante, disso que o senhor identificou como exploração. Como combater esse movimento?É tão fácil combater isso... Por exemplo: identidade comunitária. Em uma situação de globalização, percebemos que se padronizou uma série de condutas, mas, por outro lado, percebemos, aqui e ali, tentativas de reafirmação de princípios de uma determinada identidade nacional e territorial. Um exemplo claro é a França que, apesar de ser um dos principais beneficiários do processo globalizante, insiste na preservação da identidade nacional. Lá acredita-se que, preservando essa identidade, garante-se um elemento básico de cultura e portanto de civilização.

Quais são os instrumentos que a França utiliza para preservar características nacionais?Ela exige que as tevês exibam uma quantidade de filmes franceses, ou seja, em língua francesa, que contem a história do país. É simples. Em outros países, que não citarei o nome, não se adotam práticas semelhantes. Pois é necessária decisão política para fazê-lo. Uma das coisas em que mais se acredita atualmente é na multiplicidade de formas e discursos culturais. É necessário garantir que a polivalência cultural exista de fato. É preciso criar condições para que os grupos minoritários e, por que não, os grupos majoritários, se expressem. Basta uma decisão política.

Se é tão simples, por que, no Brasil, não se toma essa decisão política? Qual o entrave?Um dos maiores veículos de cultura é a televisão. E, no Brasil, a televisão é um instrumento de imagem que os governos repetidamente têm considerado forte demais. Eu diria que alguns governos acreditam até mesmo, ou demonstram acreditar, que a televisão é mais forte que eles mesmos. E governos sucessivos no Brasil não têm se atrevido a determinar à televisão algumas obrigações. Nos países desenvolvidos, as tevês, de uma maneira ou de outra são colocadas à serviço da cultura do país, porque a televisão, por bem ou por mal, é um bem público. Portanto, deveriam servir ao interesse público. No Brasil as televisões não obedecem ao interesse público. Significa, por exemplo, que, no Brasil, a televisão ainda não é um instrumento de cultura para o lazer. Eu não posso considerar lazer você ficar sentado duas horas na sua casa assistindo a qualquer lixo que passa pela frente.

As artes plásticas de um tempo para cá tiveram uma revigoração nos espaços públicos. O que fica de resíduo real, não apenas dessas exposições mais badaladas, mas do movimento de popularização das artes plásticas?

Deve ficar muito pouco. Pouquíssimo. Mas, de qualquer forma, ficando muito pouco já fica bastante. Eu já me dei o trabalho de verificar quanto tempo as pessoas gastam para apreciar um quadro. A média é espantosa: está entre cinco e sete segundos. É raríssimo uma pessoa gastar dez segundos. Esse fenômeno acontece porque as pessoas estão viciadas pela televisão, por um determinado tipo de cinema e publicidade contemporâneos. Frequentemente uma das coisas que me chama a atenção é o fato de as pessoas entrarem em uma fila para ir ao museu. Eu me lembro de que a primeira grande exposição que houve aqui em São Paulo: Picasso no Masp, em 86. As pessoas ficavam em uma fila para entrar na sala da exposição, quando chegavam lá, continuavam em fila e assim viam as obras. É muito melhor a pessoa perder duas horas no museu vendo muito pouco do que ficar em frente da televisão vendo a dança da garrafa, o Faustão ou o Silvio Santos.

Como se pode falar em tempo livre numa sociedade como a nossa, que vive em recessão e na qual a prática cultural é relegada?

São Paulo é uma cidade absolutamente desumana e com uma gestão irresponsável na maior parte do tempo, para não dizer criminosa. Uma coisa é falar de tempo livre numa cidade como São Paulo, outra coisa é falar de tempo livre numa cidade, como Buenos Aires ou Paris, ou Nova Iorque, onde o sujeito não perde duas horas para ir da sua casa a qualquer lugar. Por aqui, uma boa parte desse tempo livre é cosumido de maneira absurda e não precisaria ser assim. O que é preciso discutir é se esse tempo livre vai ser dignamente desfrutado. É necessário que se enfie na cabeça que a sociedade contemporânea tem direito à cidade, assim como se tem direito a respirar. A cidade é um direito, sendo assim o que precisa ser feito é gerir a cidade, tendo em vista transporte adequado, um sistema de equipamento cultural adequado, coisa que São Paulo não tem. Equacionando esses elementos todos, chega-se à conclusão que o modelo existe e pode ser usufruído com o desfrute da prática cultural.

Mas com o agravante de ter que partir do pressuposto de que é necessário suprir carências básicas e essenciais...

Aqui nós temos uma situação um pouco paradoxal. Frequentemente a criação de uma obra de arte provem de um estado de estoque. Por outro lado, o consumo cultural ocorre quando essas carências estão atendidas. Mas, de fato, em termos de usufruto do tempo livre é necessário que determinadas coisas estejam garantidas. Eu espero que não se use a cultura como derivativo para a fome, para satisfação política ou outra coisa qualquer.

É autoritário dizer que é preciso ensinar as pessoas a consumir cultura?

Falar em ensinar é complicado. Mas eu diria que facilmente se conclui que estamos de tal forma formatados pelo modo de existência atual que não sabemos o que fazer com nosso tempo livre. Quando somos crianças passamos quatro horas sentadas na escola, depois na universidade, depois no escritório, no ônibus, metrô. Enfim, essa "sentação" explica em grande parte uma das dificuldades das pessoas usarem o tempo de uma outra maneira. É preciso vencer impulsos estruturais e culturais muito fortes hoje em dia. Essa é a razão pelo qual a tevê é o instrumento desse domínio absurdo.

Antigamente dizia-se que o homem é um animal político, hoje ele é um animal "sentante". A menos que descubramos formas sensacionais de difusão de prática cultural para uma pessoa sentada, as coisas vão ficar absolutamente desinteressantes e com um tom banal, como a da tevê que está por aí. A menos que se descubra uma alternativa fantástica para o ser sentante, o homem precisa sair dessa condição para ter uma prática cultural mais rica. Então, de fato, se não um ensinamento, é preciso ao menos uma estimulação, uma chamada para esse fato da vida cotidiana. Isso significa sair de casa, afastar-se um pouco da família. Não adianta vir com discurso bonitinho de fatores políticos que dizem que a família morreu. A família não morreu de forma nenhuma. É preciso sair um pouco, respirar, ver outras coisas, sair da cadeira, conhecer outras pessoas e outros núcleos. É nessa interação que o tecido cultural se fortalece. Respondendo sua pergunta anterior sobre a necessidade de ensinar as pessoas, eu repito que ensinar é um termo muito complicado, mas eu diria que algum tipo de estimulação é necessária para que a pessoa saiba aproveitar seu tempo livre muito bem. Nós estamos preparados para o trabalho, estamos despreparados para o "não-trabalho". Temos que preparar as pessoas para o "não-trabalho".

Como se faz isso?

É uma boa pergunta e eu teria a resposta parcialmente. Por exemplo, uma das formas de fazer isso é aumentando a participação da cultura no currículo escolar. Não só como disciplina: chega de ensinar história da arte, história da filosofia, história disso e daquilo, mas sim colocar o jovem dentro de uma prática cultural efetiva para que ele saiba o que esperar da cultura. Uma das respostas mais terríveis que eu obtive, nessa pesquisa com universitários, dizia que o jovem não sabe para que serve a cultura. Desalentador.

Fazendo o advogado do Diabo: para que serve a cultura?

Serve para infinitas coisas. As pessoas têm uma visão imediatista e instrumentalizada da cultura. É preciso criar as tensões para que as pessoas saibam como usar o tempo livre.

E quem cumpriria esse papel de desformatar as pessoas? Por exemplo o MAC, no passado o foi um referencial onde as pessoas podiam fazer cursos etc. Não faltam opções que ofereçam qualidade?Sem dúvida nenhuma. Veja: os locais que têm responsabilidade nesse processo abrem espaço para cultura diante dos currículos, mas note que abrir é importante abrir espaços para o fomento cultural e não para a informação sobre a cultura. Informação não é cultura. Não é porque um local possui equipamentos culturais que ele está aberto para a cultura. As indústrias precisam abrir espaços para a cultura, como nos anos 50 e 60 - quando essa preocupação foi mais intensa - muitas fábricas criaram um ambiente cultural para o trabalho. O objetivo sempre era o de melhorar a produtividade. Essa questão de estabilidade das empresas continua. Tomie Othake é uma artista que frequentemente faz peças para indústrias que provocam alguma coisa nas pessoas. As empresas têm uma responsabilidade sobre isso. Mas essa responsabilidade não chegou ainda nem à milésima parte se comparada a outros lugares. A presença da cultura e a ocupação dos espaços no Brasil estão muito aquém do que poderia chegar. Em uma série de países europeus, em todo o projeto de edifício tem de estar incluído uma porcentagem para aquisição de obras de arte. Desperta-se, assim, a consciência de que a presença da cultura humaniza o homem. Esse é o papel das universidades, escolas, empresas e da administração pública. São Paulo é uma cidade falida do ponto de vista cultural e existencial. Ela não tem parques, não tem obras de arte, as pessoas não sabem respeitar a cidade. São Paulo parece uma cidade destruída pela guerra. O que eu me pergunto é, primeiro, por que algumas pessoas sentem necessidade de agredir a cidade e, segundo, por que a cidade agredida não reage.

No cenário internacional, as artes plásticas brasileiras são muito respeitadas. Eu gostaria de saber do senhor, como diretor de um museu, por que não há um acolhimento semelhante aqui no Brasil?Essa resposta é fácil. Porque nós não temos uma cultura no Brasil para as artes plásticas. Na pesquisa que realizei, as artes plásticas apareceram como a última opção de uso do tempo livre do universitário. A pesquisa foi realizada há dois anos, na época da Bienal, e 80% dos estudantes universitários da USP não tinham comparecido ao evento. Eles não viam razão, nem necessidade para isso. É claro que a resposta à sua pergunta implica duas possibilidades: primeiro, os estudantes estão errados por não apresentar interesse; segundo, as artes plásticas não dão aos estudantes aquilo que eles gostariam de ter. Ou seja, a responsabilidade pode ser dos dois. Nos anos 50 e 60, as artes plásticas participavam intensamente do debate cultural do país. Era a época do concretismo, depois do neoconcretismo, era a época do tropicalismo, havia a poesia concreta, cultura concreta. Hoje as artes plásticas não participam mais, com exceção de alguns momentos salientes, como a exposição do Nelson Lerner no Rio de Janeiro, que recebeu uma ridícula suspensão por um juiz da vara das crianças e dos adolescentes. Com exceção desses momentos de escândalo, as artes plástica não participam mais do debate cultural do país. Isso hoje em dia é assunto para galeristas, críticos, colecionadores e, os próprios artistas. Seria interessante saber desses artistas por que eles não participam mais do debate cultural. Mas, independentemente disso, nós não temos uma cultura que leve as pessoas a apreciar as coisas devidamente. Na França, as crianças sabem se comportar, sabem olhar, recebem a informação. Por quê? Não digo que seja porque foram preparadas, mas elas convivem com um ambiente cultural muito mais forte e denso que o nosso. Isso explica um pouco porque um artista brasileiro não faz tanto sucesso aqui quanto faz lá fora. Mas essa é apenas uma parte da resposta, a outra é que o Brasil não faz parte do primeiro time cultural do mundo. Nós não somos um país que propõe comportamentos culturais, somos importadores culturais. Não conseguimos ver, de dentro para fora, um modelo cultural. Nesse sentido, nós não somos uma civilização da maneira como os norte-americanos são. Civilização existe quando um país exporta para outros um modo de viver, uma representação da existência, que é partilhada. Alguém vai ler alguma coisa sobre um artista brasileiro? Não. Os norte-americanos não se interessam por notícias que não dizem respeito ao seu país, à sua cidade. O francês idem. O brasileiro é quem se interessa por saber o que acontece no resto do mundo porque ele se sente um habitante da periferia do mundo. Atrás do Brasil não tem mais nada, é o espaço universal, você cai num abismo, num oco, num vazio metafísico.