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Ficção
ESCRÚPULOS, não!

Maria Helena Kühner

A própria palavra lhe soava estranha: escrúpulos. Reparem no som, dizia. Não é um som claro, aberto, sadio; pelo contrário, sugere doença, algo assim uma irupção na pele, pontos que crescem, incham, cheios de um pus amarelento e fétido: escrúpulos! Melhor não ter do que ter. Falta de escrúpulos: a expressão nunca lhe soara como perda ou falta. Não tendo os tais escrúpulos sentia-se bem, leve, limpo, asseado. Sem escrúpulos: situação ideal, imagem de uma pessoa saudável. No fundo, uma questão de estética. E de comodidade. Com um rosto limpo, asseado, livre desses incômodos escrúpulos, podia ir a qualquer parte, fazer o que bem quisesse. Ou lhe pedissem. Ou mandassem - qualquer coisa que dependesse de uma boa apresentação e desde que, é claro, recebesse algo em troca. Pois o fato de ser assim sadio não fazia dele um bobo. Coisa que certamente não era.

Assim dizendo, empinava o corpo magrelo, arrebitando a bunda murcha que não conseguia sequer lhe encher as calças. Corpo de bailarino, dizia, orgulhoso, tentando convencer a si mesmo e aos outros. E estufava o peito e encolhia a insistente barriguinha que teimava em anular seus esforços de escondê-la e se exibia, indiscreta, mal desfazia por instantes a pose, desenhando-lhe um perfil sinuoso e ridículo. Ridículo que o tempo se comprazia em acentuar, arrancando-lhe os já escassos fios do que dizia Ter sido uma farta cabeleira, uma autêntica juba de leão - Léo, o leão! - e eram agora pequenos tufos laterais eriçados e indecisos entre um ruivo sujo e um grisalho indefinido e lamentoso. Mas não se dava por achado. A única coisa que o incomodava eram os óculos, afirmava.

Óculos envelhecem, sempre, não há dúvida. Tentara lentes, mas tendo também astigmatismo...Enfim, sabia que não era bonito, mas. E com o mas vinham histórias em tom de confidência, de amores e conquistas, porque lábia, ah! Isso ele tinha, sabia como seduzir uma mulher, podia alguém mais bonito atrair no primeiro instante, mas se ele conseguia arrastar a mulher para um canto de janela, ah! Era tiro e queda. Duque de Window, era seu apelido - não dizia se dado por outros ou inventado e difundido por ele próprio para tentar convencer quanto a seus talentos de sedutor.

Daí evitar Ter escrúpulos : simples questão de estética, repetia. Muitos profissionais da política sabem perfeitamente disso, tanto que, por preocupação com a própria imagem, também os evitam e, em vez daquele ar sério e preocupado dos que têm essa doença, mantêm um ar de confiança e um sorriso, sempre - o que é muito mais eficaz. Que a aparência é tudo. Tudo. O resto não tem importância.

Mas foi por essa razão mesma que "aquilo" o incomodou. Não sabe nem dizer como foi que começou. E começou exatamente pela aparência. Ora, ele sempre reparou muito na aparência. Por isso estranhou, se assustou mesmo, desde a primeira vez. E até agora não conseguia entender.

A coisa veio quase sem sentir. Uma tarde senta-se à mesa de um bar, em local de grande movimento, e fica a olhar a multidão - passando em revista as mulheres, sobretudo, como gostava de fazer. Mas enquanto olhava foi se dando conta ... Não há dúvida, algo estranho acontecia. Com os outros, claro. Por sob os trajes de colorido e formas diversas, os rostos, os gestos, até as vozes haviam se tornado iguais. Onde antes havia rostos e expressões pessoais e distintas, agora só via rostos iguais, os mesmos traços, o mesmo olhar, a mesma expressão vazia e distante, homens, mulheres, crianças tornados faces mudas e imóveis, máscaras modeladas por uma mesma forma, figuras anônimas, mudas, sem vida, multidão programada por um computador que a todos reproduzia por um mesmo padrão, um kit universal de figuras incrivelmente iguais, atitudes e gestos repetidos, autônomos, gado.

Gado. Exatamente o que lhe pareciam: gado. Gado tangido por mão invisível, caminhando, lento ou apressado, em direção a... talvez a parte alguma. Dos rostos amorfos, ruídos que tentavam fazer soar como palavras e só com esforço conseguia entender. Gado. É o que pareciam . Vagamente incomodado, continua a olhá-los: nada capaz de atrair, de chamar a atenção, de despertar desejos ou fantasias, nada que... Gado. Nada mais que gado.

Aos poucos vai se reassegurando. Ora, não há com que se incomodar. Os quadros do tal Antonio Maia (ou é Antonio Maria? Não, Antonio Maria era músico, não? Ah, não importa), mas os quadros do tal cara eram todos assim, um bando de gente de rostos redondos e iguais, gado olhando sem ver. E é um artista respeitado, elogiado, famoso. E também os vê assim. Se se incomoda com isso, ou não, é problema dele. Porque, pensando bem, há até vantagem nisso. Claro que há. Pensando bem...

Ao chegar em casa sua satisfação consigo mesmo é de novo visível: pensando bem, é, de fato, uma grande vantagem. Gente é algo complicado de se lidar, mulher, então! é preciso saber como abordar, como falar, sondar terreno, estudar reações - e é aí que os tais escrúpulos brotam quase sem se notar e quando se vê já se está rolando em uma série de princípios e normas e regras e isso-eu-não-posso e aquilo-eu-não-devo, que é um horror, cria limites, barreiras, entraves, complica tudo, atrasa a ação. E exige classificar, rotular, avaliar. E há sempre os que reclamam que estamos avaliando errado, ou ferindo sentimentos, agredindo, sim, que há até os que falam em agressão!

Assim, não. Sem avaliações. Sem sentimentos. Se escolheram ser gado, tanto melhor: gado se tange, se empurra para onde se quer, é fácil, fácil de lidar. Não é culpa sua se as pessoa se tornaram gado. Não há porque ficar se lamentando, tem mais é que tirar vantagem da situação. E não há nada antiético nisso, pelo contrário, é absolutamente ético tratar as pessoas de acordo com o que são.

Aliás, é o que manda a própria ciência - leu outro dia em uma entrevista de outra figura importante no jornal (Devia ter recortado e guardado, para citar depois. Impressiona! Mas ainda lembra da idéia.): excluir o particular, o pessoal, os afetos, os juízos de valor, que só inibem e atrapalham. É esta a única atitude que tem sentido em uma era de ciência abstrata e computadorizada. A atitude moderna, atual. Portanto, sua opção de se manter sem escrúpulos, que nascera de um ponto de vista estético, era - agora via claramente - a própria ética do presente. Ele estava, assim, sendo um homem moderno, bem dentro dos padrões de seu tempo.

Mais uma vez empina a bunda e estufa o peito, feliz consigo mesmo. E com suas escolhas.

Estaria, portanto, tudo perfeito se... se "a coisa" não tivesse progredido. Será que escapara de uma doença e caíra em outra? A primeira vez que aconteceu lhe deu mesmo a impressão de ser sintoma de algo sério. Foi esquisito, foi... ameaçante, até, ver aquele paletó e calças e sapatos e a pasta de couro caminhando em sua direção sem ninguém dentro, sem estar vestindo ou calçando ou sendo segura por mãos que... Onde o corpo, onde as mãos? Alguém conseguira um meio de se tornar invisível, de... A angústia veio quando o fenômeno se multiplicou: as pessoas haviam sumido e um mundo de coisas, de objetos e trajes e cores e formas - vazias! - se movia a seu redor. Não estava cego, via os objetos. Onde as pessoas? O que se passava, que ele não sabia?

Corre a olhar-se no primeiro espelho que encontra: lá está seu rosto, seu corpo, suas mãos. Pode se ver de corpo inteiro. Vê um vestido aproximar-se, dançando no ar em movimento de andar. Hesita, dá um passo, volta, mas decide segui-lo. E falar-lhe. Ouve uma voz em resposta - que não entende, amontoado de sons sem significado. Tem que fazer algo, tem que saber, ver o que ... Sua namorada. Felizmente um Duque de Window tem sempre uma namorada de plantão. É só procurá-la.

É insistente e ansioso o toque da campainha, o medo de ela não estar em casa, ou de ... A porta se abre e do baby-doll que esvoaça no ar à sua frente sai um som conhecido, um tom de surpresa. Fecha os olhos, angustiado - ela também! - mas sente de súbito mãos que pousam em sua nuca e nos lábios o toque de um beijo leve de boas-vindas. Abre os olhos: nada. Onde o corpo, a boca que...? Fecha os olhos novamente, e estende as mãos apalpando: em suas mãos surge o corpo conhecido, concreto, palpável, que ele alisa e aperta, gratificado e feliz. Depois de um instante, devagar, ainda com medo, vai reabrindo lentamente um olho, os olhos: à sua frente o baby-doll, vazio, se move. Inseguro, sem saber como agir ou o que dizer mais, se despede (como se despedir, assim?) ainda ouvindo aqueles sons engrolados, que não lhe dizem nada, a não ser um espanto ou surpresa.

Em casa, só, deita e tenta raciocinar. Um fenômeno. Estranho, não há dúvida. Será que é momentâneo? Ou será que de agora em diante... A hipótese o apavora. Que cegueira era aquela que o impedia de ver as pessoas? Tinha relação com o que acontecia antes, com certeza, aqueles rostos amorfos e iguais. Mas pelo menos os via e ouvia, e agora... Como se relacionar com aquela gente sem rosto, sem corpo, com essas... essas coisas que nem gente são?

A falta de hábito de pensar, estabelecer ligações, relações, articular os pensamentos transformava essa meditação numa tarefa penosa e infrutífera. Refazia seu caminho na vida e nada encontrava que... Sempre fora um cara sadio, normal. Sempre levara a vida numa boa, então porque... Bom, pelo menos uma coisa vira - e era importante; sexo ele não ia perder, dera até para sentir o corpo da mulher, apalpá-la, quase ficara excitado, não fosse a agonia daquele momento ele teria...

Taí: estava se afobando à toa. Sexo: era uma forma de ligação. Para ele sempre fora. Só que ia ser gozado, todas as mulheres, já iguais, agora tornadas apenas corpos, a serem tocados, tateados, explorados, apalpados, penetrados. Tinha que treinar as mãos. Como não sabia se o viam ou entendiam o que falasse, melhor aprender a trabalhar bem com as mãos. Apurar também suas técnicas. E pronto! Riu sozinho. Restava o sexo, como não? Ainda podia usar aqueles corpos para se satisfazer, usar as mulheres pra...

Usar. A palavra lhe soou mal. Usar. Já renunciara a fantasias e desejos, a inventar para cada mulher - na época em que ainda eram diferentes - uma forma de sedução, de conquista. Ah, mas sua técnica certamente continuaria funcionando para conseguir as que quisesse e usá-las para garantir seu prazer, sua...

Súbito se deu conta: epa, essa estranheza com a palavra usar era um mau sinal! Sinal de que se não estivesse, como sempre, alerta, os tais escrúpulos poderiam vir a brotar! Pensava ter-se livrado deles, mas pelo jeito eram renitentes, contagiosos, perigosos. Não, não ia entrar nessa. Tinha ainda aquela forma de contato: iria usar sim, por que não?, os corpos que suas mãos conseguissem pegar.

Riu de novo, novamente tranqüilo, quase feliz. Alisou com as mãos os ralos cabelos que teimavam em manter-se eriçados sobre as orelhas, dando-lhe um leve ar apalhaçado. Para tudo havia solução. E ele sabia como encontrá-la. Sempre soubera. Podia não ser a melhor. A mais desejada. Mas pelo menos estava livre de vez daquela doença: escrúpulos ele não teria, nunca ! Jamais!

Maria Helena Kühner é escritora, autora do livro É!, entre outros.