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Peter Greenaway no Brasil

A Nasa nem imagina, mas sua colaboração foi fundamental na concepção da última grande obra do pintor e cineasta Peter Greenaway. Depois de experimentar as mais diversas áreas do mundo das artes, sua inquieta personalidade o levou a compor a ópera 100 Objetos para Representar o Mundo.

Em 1977, quando os norte-americanos lançaram a nave Voyager ao espaço, enviaram junto alguns objetos que representassem a vida e os habitantes da Terra. A carga incluía descrições das características do planeta, sua fauna, flora e vida humana. Esse projeto pretendia nos apresentar para supostas inteligências extraterrestres. Havia saudações em 55 idiomas, inclusive na linguagem das baleias jubarte e uma coletânea de música produzida na Terra que incluía de Bach aos Beatles. Também foram selecionadas 117 imagens que pudessem nos revelar aos supostos seres desconhecidos.

Eis que a megalomania yankee incomodou o cidadão Peter Greenaway e despertou mais uma vez sua conturbada personalidade artística. "A escolha do material foi necessariamente subjetiva, de um americano com instrução científica dos anos setenta que talvez tivesse ideais democráticos arrogantes e possíveis atitudes paternalistas em relação ao resto do mundo. Se considerarmos a diversidade da Terra, e de suas comunidades, no final, poderia conter apenas um limitado espectro de referências. Mas, ainda assim, você e eu, como representantes da Terra, não fomos consultados. Não nos foi solicitada uma contribuição".

O artista entendeu que era preciso corrigir esse erro. Do desacordo com a Nasa nasceu a idéia da ópera: "Reconhecendo plenamente o fato de que sua opinião é tão importante quanto a minha, elaborei minha própria lista, daquilo que eu acredito, com um misto de ironia e seriedade, que possa representar o mundo. De uma forma simples e um tanto pedante, dei à minha lista o nome de "100 Objetos para Representar o Mundo".

Deus, Freud, Adão e Eva, Mozart, o Corpo, a Água, o Beijo... Num primeiro momento Greenaway trouxe essa lista por meio de uma exposição. Depois optou pelo vocabulário das luzes, da voz e da música e montou uma ópera em que os 100 objetos compõem o espetáculo. O cenário foi construído como uma instalação que pode ser contemplada de perto pela platéia. A lista é, então, apresentada dentro de uma narrativa sequencial na qual o narrador apresenta o objeto definindo-o literal e metaforicamente. A narração é feita por Thrope, o misantropo, ser que odeia a sociedade e prefere a solidão à convivência social, que recita sua lista subjetiva para Adão e Eva, representados por dois atores nus. Seu objetivo é ensinar aos dois inocentes o que a Terra, e a humanidade que vive nela, realizou no último milênio. O misantropo os conduz através dos sentimentos, das delícias e da tormenta do sexo, do poder, do dinheiro, da guerra, da doença, das perdas e da morte. Com o decorrer da história Adão e Eva adquirem confiança no discurso de Thrope e passam a fazer exigências que vão além do razoável, o que os leva em última instância à morte.

Um mês de Greenaway

No Brasil, Peter Greenaway é mais conhecido por sua obra cinematográfica, mas durante um mês o público brasileiro teve a chance de conhecer outros lados do artista, que, antes de embrenhar-se pela sétima arte, foi pintor. De 15 de julho a 17 de agosto o Sesc organizou um megaevento com diversas obras de Greenaway. Uma exposição de quase trezentas pinturas feitas por Greenaway ao longo de vinte anos abriu o evento no Sesc Vila Mariana. Nas molduras estavam desde roteiros de seus filmes até a dramática série de pinturas, cujo tema retrata a reflexão de Greenaway sobre os corpos encontrados no rio Sena no período pós-Revolução Francesa.

As muitas maneiras de fazer arte funcionam na obra de Greenaway como um jogo de espelhos; é quase impossível conceber sua produção plástica sem revelar sua obra cinematográfica, e vice-versa. Por esse motivo, o Sesc organizou, além da exposição, uma mostra de filmes que abrange a produção de Greenaway de 1969 a 1995, desde seus curtas, médias e longa- metragens até seus onze vídeos produzidos para a televisão. Para a alegria geral dos cinéfilos, títulos como O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante, O Livro de Cabeceira puderam ser revistos.

O evento culminou com a apresentação da ópera 100 Objetos para Representar o Mundo e com a presença do próprio Peter Greenaway para uma palestra no Sesc Vila Mariana. Com os 100 objetos dispostos numa instalação e três telões de onde eles são descritos, a ópera inova e incomoda. "Isso é pura vanguarda", empolga-se o universitário Rodrigo Camargo entre os aplausos comedidamente vibrantes para a trupe inglesa. Greenaway coloca o ser humano na condição de espectador de si mesmo. "O mais legal é que, apesar contestar sua lista de representação, saí da ópera com uma visão menos homocêntrica. Quando tirados de seu contexto e apenas descritos pela sua função prática e simbólica, percebemos que o ser humano é tão estranho quanto qualquer outro animal que vive nesse planeta", filosofa a atriz Cintia Pieri.

Um Artista Híbrido

Peter Greenaway nasceu em 1942 na cidade de Newport, país de Gales. Dessa vez o aspecto híbrido de seu trabalho foi denunciado pela ópera 100 Objetos para Representar o Mundo, em que escolheu as coisas que ele gostaria que representassem a Terra e seus habitantes. No entanto, essa multiplicidade de talentos sempre foi uma constante em sua carreira.

Apesar de ter ganho notoriedade com sua obra cinematográfica, Greenaway é pintor por formação. Na pintura abusa mais uma vez da diversidade e utiliza-se de variadas técnicas e meios de concepção de um quadro. Em 1969, Greenaway filma o curta-metragem Intervals, em que retrata figuras comuns da Itália, como um açougueiro e um barbeiro, que não sabem que estão sendo filmados. Em 1975 consagrou-se com o curta Windows, cuja imagem era composta por janelas justapostas. Narra-se a história de 37 pessoas que morreram caindo de janelas. Só na década de 80 o cineasta começou a prouzir longas. The Falls, o primeiro de uma lista de 9, é uma crítica a estética a avant-garde. No final da década vieram os consagrados O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante, no qual narra-se a história de uma mulher, vítima de maus tratos do marido, que inicia uma relação passional com o solitário leitor de histórias, e o Livro de Cabeceira, no qual Greenaway faz do corpo um livro para se ler e escrever. Peter Greenaway é também escritor e cenógrafo. Essa sua última habilidade pôde ser constatada na intigrante ópera encenada no Sesc Vila Mariana.