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OS DOIS BRASIS

Efre Antonio Rizzo

Conheci, nos meus tempos de ginásio, hoje 1º. grau, um professor holandês que costumava dizer que muitas coisas que fazíamos, ou deixávamos de fazer, era porque nós, brasileiros, nunca tínhamos participado de uma guerra, uma situação-limite que nos ensina muitas coisas. Segundo ele, "na guerra, descobrimos a importância dos alimentos como uma questão de sobrevivência e de solidariedade. A comida, muito escassa, tinha de ser suficiente para todos e a distribuição das rações alimentares era muito controlada. Era um tempo de controle absoluto dos recursos disponíveis. Aqui no Brasil joga-se muita coisa fora, enquanto muitas pessoas passam necessidade. E não há muita consciência disso".

Aquele professor, certamente, se referia, já naquela ocasião, a um comportamento muito comum do brasileiro que, com pouco contato com a realidade além de seu horizonte doméstico, desconhecia as profundas contradições dos tristes trópicos de Lévi-Strauss ou dos dois brasis de Roger Bastide.

Contrastes estes que teimam em continuar dando contornos à nossa realidade; e até se agravaram nos últimos anos.

O Brasil possui uma das maiores áreas agricultáveis do mundo, isto é, podemos produzir quantidade expressiva de alimentos. Temos todas as condições favoráveis para isto: sol o ano inteiro, solo fértil, clima adequado, água abundante... E se ampliarmos a utilização de tecnologias mais atuais, podemos aumentar em muito a produção agrícola, hoje em torno de oitenta milhões de toneladas por ano. Teoricamente, podemos produzir comida para todos nós e para muita gente mais. Com sobra.

Por outro lado, segundo o IPEA, o mapa da fome no Brasil atinge 32 milhões de pessoas. Ou seja, cerca de vinte por cento da população brasileira está passando fome e, entre ela, uma quantidade enorme de idosos e de crianças. É um dado assustador só evidenciado por ocasião das grandes calamidades, como ocorre com a seca do Nordeste, algo que vem sendo constatada desde os tempos do Império.

Esse contraste cruel entre a abundância possível e a carência real se torna mais perverso quando utilizamos um dado da Secretaria da Agricultura e do Abastecimento do estado de São Paulo mostrando que as perdas agrícolas, no Brasil, oitava economia do mundo, situam-se em torno de 14% do PIB, ao ano. Em outras palavras, estamos literalmente jogando fora cerca de dez bilhões de reais por ano, em alimentos. Triste Brasil este, pois, enquanto São Paulo é considerada por muitos como a capital da gastronomia mundial, há, no país, um contingente de excluídos quase do tamanho da população da Argentina que não possui o mínimo para uma sobrevivência digna. Ou, mesmo, para uma mera sobrevivência.. Se essa quantia fosse transformada em salários mínimos, poderíamos fornecer uma cesta básica mensal neste valor para mais de seis milhões de famílias, atendendo cerca de 25 milhões de pessoas. Praticamente sem nenhum investimento adicional.

Temos um grande desafio em nossas mãos, o desafio social da fome. É necessário que a sociedade se organize de forma mais eficiente e eficaz. Evidente que os níveis de responsabilidade são diferentes. Sob a ótica do controle o desperdício, o importante é criar a consciência da responsabilidade coletiva, uma vez que, se não a criamos, contribuímos para a permanência do problema, pois estas perdas acontecem deste a colheita no campo até a mesa do consumidor. É necessário ultrapassar as fronteiras domésticas e buscar os caminhos possíveis para enfrentar este brasil da fome. É preciso combater a cultura do desperdício de alimentos, numa perspectiva de racionalização dos recursos disponíveis para total aproveitamento da produção, em favor de todos.

Diminuir a fome ou a subnutrição, por meio do controle do desperdício não é uma questão de caridade, ou mera filantropia, é uma questão de justiça, pois a alimentação é um direito básico de todo e qualquer cidadão (artigo XXV, da Declaração Universal dos Direitos Humanos). As motivações podem ser variadas, mas o objetivo é sempre o mesmo: a solidariedade humana em busca da sobrevivência de todos, com dignidade.

O programa Mesa São Paulo-Colheita Urbana, do Sesc, sugere uma alternativa.

Efre Antonio Rizzo é técnico do Sesc Carmo