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Adoção


Quais os caminhos que os interessados em adotar uma criança no Brasil devem tomar? A legislação brasileira é clara e objetiva? Após as questões legais estarem resolvidas, como fica a adaptação da nova família que se formou? Essas e outras questões são abordadas, em artigos inéditos, pelo psicólogo e autor do livro Compreendendo o Filho Adotivo (Edições Bagaço, 2004), Luiz Schettini Filho, e pela advogada, professora de direito constitucional e autora de Adoção à Brasileira: Registro de Filho Alheio em Nome Próprio (JM Editora, 2007), Tatiana Wagner Lauand de Paula.

 

Os filhos adotivos e suas novas famílias

por Luiz Schettini Filho


A adoção de uma criança não é apenas a expressão de um desejo, nem, simplesmente, o resultado da decisão de “ter um filho”. É mais do que isso: é a busca da organização de uma família. A integração do filho na nova família dependerá, em grande parte, da compreensão do processo de mudança motivado pelo afastamento dos pais biológicos. Esse filho já vem com uma história que não pode ser esquecida. A partir daí, o apoio dos pais adotantes será determinante de grande parte do comportamento do filho. Esse apoio constitui, basicamente, uma atitude de aceitação incondicional, independentemente das características comportamentais do filho. A aceitação não se coaduna com qualquer tipo de comparação que se venha a fazer entre o filho adotado e o filho “idealizado”. Enquanto houver diferença entre a imagem pré-formada e aquela que se tem do filho adotado, com certeza, ainda não se terá mergulhado profundamente na aceitação incondicional desse filho. A mudança por que a criança passa na troca de família não significa apenas a substituição de uma situação por outra, mas a integração entre sua história passada, presente e futura. A convivência dos membros da nova família depende das características da história adotiva de cada um. Há, pelo menos, quatro momentos importantes no que diz respeito ao bem-estar da nova família.

 

Completação da história

A história pessoal de uma criança não se apaga e nem pode ser substituída. Na adoção, ocorre uma mudança que atinge o projeto de vida de seus novos pais. É bom lembrar que a prática de tentar retirar os pais biológicos da biografia dos filhos adotivos resulta em sérios danos emocionais para ele e, conseqüentemente, para o grupo familiar. Todo o sucesso inicial da adaptação dos membros da família dependerá da integração de dois estágios da história dos pais e filhos adotivos. Não podemos desconsiderar, na vida da criança, o estágio anterior ao encontro com os pais adotivos. A ligação entre esses dois marcos existenciais se reveste de profunda importância, pois dará o sentido de continuidade, permanência e completação da sua história pessoal. O intervalo entre essas duas situações produzirá o vazio, e o vazio, a angústia. A participação no novo grupo familiar muda a posição da criança no mundo porque altera sua trajetória de vida, que será produtiva, boa ou má, como conseqüência das relações interpessoais que puder estabelecer. A mudança atinge, na mesma amplitude, o projeto de vida dos seus novos pais. É nesse contexto que pais e filhos encontram a verdadeira convivência na qual não se torna mais possível a dissociação. É na conjunção desses fatores que se forma a família afetiva.

 

Apego afetivo

Toda criança luta insistentemente para apegar-se a uma outra pessoa e poder construir seu grupo de existência, isto é, sua família. A qualidade do apego afetivo determinará o sucesso da convivência familiar. No caso do filho adotivo, a mãe, emocionalmente bem preparada para recebê-lo, será um personagem decisivo na sua formação pessoal. É pela convivência que se permite à criança ligar-se afetivamente aos componentes de sua família. Se por um lado o tempo de convivência não é, em si, suficiente para estabelecer uma relação afetiva saudável, por outro, o que chamamos de “qualidade da convivência”, sem o tempo necessário para que ela se expresse, não produzirá resultados efetivos. O tempo dedicado à convivência tem a função de fixar a qualidade da relação de afeto. Pais atentos à relação entre tempo e qualidade da convivência afetiva, certamente, darão o que têm de melhor para promover a adaptação familiar.

 

Ameaça de rejeição

A rejeição é um dos sentimentos mais desconfortáveis que experimentamos, pelo fato de atingir áreas importantes da personalidade, produzindo insegurança, sentimentos de menos-valia, sensação de impotência e incompetência. Ser rejeitado assemelha-se a sentir-se próximo da destruição, como conseqüência da sensação de isolamento, solidão, abandono e morte. É preciso lembrar que o filho adotivo vive três possíveis ameaças de rejeição. Vive a rejeição dos pais biológicos (independente das razões pelas quais não ficou com eles), enfrenta a expectativa da aceitação dos pais adotivos e, ainda, é atingido pela insegurança e intranqüilidade dos pais adotantes enquanto consolidam a ligação afetiva com o filho que chegou. O filho adotivo vive, sozinho, esse pesado conflito: buscar os pais biológicos concretamente ou na sua imaginação, sem se sentir desleal com os pais adotivos. Esse conflito, muitas vezes, perdura por um bom tempo na infância e na adolescência. Nesse contexto, os pais adotivos podem ser figuras eficientes de ajuda se conseguirem expressar para o filho apoio e compreensão. De modo geral, falar ao filho o que ele não ousa dizer aos pais será uma forma de alívio e de redução dos seus sentimentos de culpa.

A ameaça da rejeição talvez seja a possibilidade mais angustiante para o filho adotivo e sua família, pois produzirá um descompasso nas expectativas e nos projetos de vida do grupo e de cada um individualmente.
Destacamos aqui as interrogações sobre a rejeição que o filho sente em relação aos seus pais de origem. Com certeza, essa é uma situação de natureza pessoal, que a criança resolverá no âmbito da sua intimidade. Os pais adotivos, certamente, poderão criar condições que favoreçam a criança na solução desse problema.

Provavelmente, o instrumento mais eficiente de ajuda será eliminar obstáculos à tentativa de o filho recompor a imagem dos pais de origem; seja no auxílio à busca de sua parentalidade biológica, seja na facilitação à construção de uma imagem idealizada desses mesmos pais.

 

Diferenças individuais

A prática da vida nos ensina que a marca característica do ser humano não é a semelhança entre as pessoas, embora acentuemos esse fato como uma evidência do valor e dos direitos do indivíduo. Por conta dessa forma de pensar e sentir a pessoa, afastamos, para um nível secundário de importância, as características individuais que indicam as diferenças. Na verdade, o que conta em termos da interação entre as pessoas são suas diferenças, que constituem, assim, seu patrimônio individual. As relações de convivência e adaptação só são possíveis porque as pessoas são semelhantes entre si, mas são as diferenças que dão sentido à individualidade. As diferenças não têm de ser encaradas como deficiência ou insuficiência.

Avaliado sob esse ponto de vista, o filho adotivo em nada difere daqueles outros que não vivem a experiência da adoção. Não se pode colocar, indiscriminadamente, qualquer distorção, ou mesmo, distúrbios de comportamento do filho adotivo, como resultante de sua história de adoção. Esse conceito de semelhança e diferença é importante para assumirmos uma atitude justa e respeitosa à pessoa da criança adotada e podermos, conseqüentemente, contribuir para sua adaptação à nova família. Pais que vêem o comportamento do filho sob o ponto de vista da padronização, sem levar em conta as diferenças individuais, não só agridem e desvalorizam a sua personalidade, como criam obstáculos à harmonia da convivência familiar. Quando se consegue ver o filho sob esse ângulo, enxergando suas características marcadamente individuais, se está criando um ambiente facilitador para a adaptação familiar.


“A mudança por que a criança passa na troca de família não significa apenas a substituição de uma situação por outra, mas a integração entre sua história passada, presente e futura”


Luiz Schettini Filho é psicólogo e autor, entre outros livros, de Compreendendo o Filho Adotivo (Edições Bagaço, 2004).

 
 

A maior dificuldade da adoção no Brasil: distanciamento entre a criança real e a criança “ideal”

por Tatiana Wagner Lauand de Paula


Quando se opta pela adoção de um filho, no Brasil, e buscam-se os meios legais, por vezes não se encontra uma criança que possa ser adotada. Esse fato causa surpresa, pois a população em geral tem a crença de que existem milhares de crianças abandonadas.

Porém, trata-se de um abandono fático e afetivo, mas não jurídico. Há, sim, crianças mal cuidadas, mal alojadas, mal tratadas, mal alimentadas, inclusive exploradas ou vítimas de violências. Mas, há pais ou outros familiares próximos que não estão dispostos a dar o consentimento que a lei exige para que possam ser adotadas. Muitas vezes são filhos indesejados afetivamente, e não efetivamente abandonados por seus pais.

Os pais ou familiares biológicos ainda detêm, perante a lei, o poder familiar se dele não desistirem, mesmo que seu contato com a criança seja ínfimo ou inexistente. Legalmente, essas crianças não estão abandonadas e a manutenção da vinculação legal é suficiente para que seja ignorado o abandono, gerado pela ruptura gradual dos vínculos e pelo distanciamento e desinteresse ao desenvolvimento delas. Isso porque o artigo 45 do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/1990, estabelece que a adoção depende do consentimento dos pais ou do representante legal do adotando.

As crianças que efetivamente estão liberadas para adoção são aquelas cujos pais são desconhecidos (depois de cessadas todas as tentativas possíveis de localização) ou tenham sido destituídos do poder familiar (depois de um procedimento judicial). Na prática, as que se encontram nessas condições já não mais estão enquadradas nas exigências feitas pelos candidatos à adoção, pois já não são mais bebês. É o distanciamento entre a criança real e a criança “ideal” para adoção.

Essa situação deve-se aos preconceitos contra a adoção. Os pais, que não estão verdadeiramente interessados nos seus filhos ou que não possuem condições de criá-los, não têm coragem de entregá-los para adoção. Essa falta de decisão leva as famílias a colocarem as crianças numa instituição, onde são sustentadas e educadas por terceiros. O desinteresse manifesta-se pelas ausências prolongadas e pela brevidade das raras visitas. Além da espera pela criança legalmente liberada para adoção, os candidatos à adoção devem obedecer a todos os rigores da lei, submetendo-se a critérios subjetivos e objetivos de condições pessoais, sociais e econômicas para satisfazer todos os requisitos exigidos. Pagam advogados, juntam documentos, comparecem a entrevistas técnicas e audiências.

Apesar de o trâmite legal ser imprescindível para o atendimento do melhor interesse da criança, com a garantia constitucional do devido processo legal, o processo de adoção é visto como demorado e burocrático. Dentre as fases do processo de adoção, está o estudo psicossocial, que é um instrumento de avaliação do contexto familiar no qual o adotando será inserido. Por ser a adoção irrevogável e para garantir a proteção integral com o bom desenvolvimento da criança e do adolescente, evitando negligências, abusos, rejeições, maus tratos ou devoluções, esse estudo é determinado por lei. O artigo 167 do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que a autoridade judiciária “determinará a realização de estudo social ou, se possível, perícia por equipe interprofissional, decidindo sobre a concessão de guarda provisória, bem como, no caso da adoção, sobre o estágio de convivência”.

Porém, algumas vezes, os técnicos responsáveis pelas práticas de seleção de pessoas cadastradas nos Serviços de Adoção dos Juizados da Infância e Juventude demonstram uma postura, herdada historicamente, preconceituosa e estereotipada, alienada à concepção social, histórica e cultural da família parental e monogâmica.

Os assistentes sociais e psicólogos e os demais técnicos consideram aptas para adotar aquelas pessoas pertencentes à família “modelo e ideal”: casados legalmente, centralizados na autoridade conservadora e tradicional do pai, estáveis economicamente. Essa “seleção” passa a ser temida pelos candidatos à adoção que, por receio de serem rejeitados, não se submetem a ela e, conseqüentemente, burlam o procedimento legal. As pessoas têm insegurança de que seus perfis possam representar óbices à habilitação.

Percebe-se, portanto, que a demora na concretização da adoção é causada, principalmente, pela excessiva especificação das características da criança pretendida: geralmente branca, recém-nascida, saudável e do sexo feminino. As que apresentam necessidades especiais e integram grupos de irmãos institucionalizados são consideradas “inadotáveis”.

Essas condições impostas ofendem a verdadeira tutela da filiação e da adoção, porque se percebe que se quer um biotipo e não um filho. O modelo ideal parece ser retirado da capa de uma revista, como se escolhe um animalzinho de estimação numa loja.

A preferência por crianças brancas vem de tradições históricas e culturais em que os cristãos louros eram superiores moralmente aos infiéis de pele escura, gerados pela “infidelidade” do português com a índia e com a negra, raças já “naturalmente” inferiores. Há ainda o medo de adotar criança de cor diferente da sua pelo preconceito da sociedade. Efetivamente, é a vontade de formar a família “modelo”, que por tradição foi imposta e aceita como perfeita.

A escolha por recém-nascidos é para poder esconder a verdade diante dos preconceitos também históricos e culturais da inferioridade de filhos adotivos como filiação de segunda categoria e na crença de que é melhor a criança não trazer recordações do passado. Quanto mais velha a criança, menor a possibilidade de omissão da adoção, impossibilitando o “fazer de conta que é biológico”. A cultura de que a adoção é uma possibilidade de imitar a biologia e uma forma de caridade vai de encontro, nessas situações, a sua verdadeira tutela jurídica, como forma de expressão de um direito da criança e do adolescente: proteção integral em uma vida familiar sedimentada no afeto, confiança, estabilidade, segurança, continuidade, delicadeza, respeito, carinho. A suposta dificuldade de educação de crianças mais velhas também motiva as exigências dos candidatos. E as meninas são consideradas mais dóceis e “dão menos trabalho”.

Assim, as pessoas que se inscrevem como candidatos à adoção de uma criança têm que esperar muito tempo até verem satisfeito seu desejo diante das inúmeras exigências. O que se verifica na prática é que há um grande número de candidatos à espera de uma criança para adotar, em vista dos padrões físicos e fisiológicos exigidos. Entretanto, nas instituições existem muitas crianças maiores de 2 anos esperando que apareça alguém disposto a adotá-las.


“A cultura de que a adoção é uma possibilidade de imitar a biologia e uma forma de caridade vai de encontro [...] a sua verdadeira tutela jurídica, como forma de expressão de um direito da criança e do adolescente”

 

Tatiana Wagner Lauand de Paula é advogada, professora de direito constitucional e autora do livro Adoção à Brasileira: Registro de Filho Alheio em Nome Próprio (JM Editora, 2007).