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REVISTA E - PORTAL SESCSP

 


 

O instrumentista e regente João Carlos Martins fala das várias facetas de sua paixão pela arte dos sons

 


A frase que dá título à seção Depoimentos desta edição surgiu de uma sugestão indireta do próprio entrevistado. Para o pianista João Carlos Martins - diretor do campus de música da Faculdade de Arte Alcântara Machado (FAAM) e regente da Orquestra Bachiana -, esse se tornou um lema depois de ter protagonizado uma história traumática: dois acidentes que afetaram nervos e ossos das mãos e do antebraço, tornando impossível o exercício da paixão iniciada aos 8 anos de idade, o piano. Em meio a essa trajetória digna de filme - e, segundo Martins, vem um hollywoodiano por aí -, o músico, hoje com 67 anos, afirma ter descoberto a estreita ligação entre o amor e o ódio em uma relação tão visceral quanto a que ele tem com a música, em especial com a obra do compositor alemão Johann Sebastian Bach. "No momento em que os médicos me disseram 'Você não vai mais tocar', eu não podia olhar para o piano, tal era a revolta que eu tinha", afirma no depoimento que deu à Revista E, no restaurante de um hotel em São Paulo que abriga a sede de sua orquestra. "Seis anos depois, eu voltei [ao piano] praticamente de joelhos pedindo desculpas." Na conversa, Martins - que escreveu a autobiografia A Saga das Mãos (Campus, 2007) e tem dois documentários alemães sobre sua história - falou de sua paixão pela música, de suas novas atividades e explicou por que Bach é para ele "uma grande catedral". A seguir, trechos.

 

Paixão pela música
O piano foi uma paixão originalmente induzida. Por influência do meu pai; eu tinha 8 anos. Mas eu transformei essa paixão induzida em uma paixão que passei a perseguir. Da indução, eu saí para a perseguição porque me identifiquei com a música. E nesse momento passei a persegui-la com tamanha obstinação, que os acidentes físicos que eu sofri - foram dois - acabaram transformando esse amor em ódio durante um período, talvez por imaturidade. Essas ocorrências me fizeram abandonar a música por alguns anos. Foi quando descobri que o amor e o ódio podem estar muito próximos, senti isso na pele. No momento em que os médicos me disseram "Você não vai mais tocar piano", eu não podia olhar para o piano, tal era a revolta que eu tinha. Mas o amor sempre vence. Seis anos depois, eu voltei [ao piano] praticamente de joelhos pedindo desculpas. E isso tornou a acontecer em 1985, na segunda vez em que tive de parar. Voltei de joelhos também.
Sempre digo: piano ou é fácil ou é impossível. Nunca é difícil. Mas a facilidade corresponde aos 2% de talento que Deus possa lhe dar - o restante, os 98%, é transpiração. Para essas pessoas, o piano é fácil. Agora, a coisa é difícil para quem não tem os tais 2%. Comecei a estudar piano aos 8 anos e, seis meses depois, ganhei o Concurso Bach, que existia para pianistas de todas as idades. Aí começou. A música foi virando minha razão de viver. Praticamente uma obsessão. Com 12 anos, tracei um objetivo para mim: estudava até oito horas por dia - e gostava. A cada dia eu queria aprender mais repertório. Na verdade, embora eu tenha tido uma carreira - acho que expressiva - como pianista, os grandes marcos que considero na minha vida são a primeira aula de piano, aos 8 anos de idade, e a primeira aula de regência, aos 64.

 

Bach
Bach continua uma grande catedral. Em primeiro lugar porque, à medida que os anos vão passando, a sua intensidade vai se atualizando. Por exemplo: estamos vivendo uma época da tecnologia, da computação - que lideram todas as revoluções no século 21 -, e Bach pode ser identificado com essa revolução. Costumo brincar dizendo que é mais ou menos como o Bill Gates, no sentido de que podem vir mais 500 mil Bill Gates, mas nenhum deles vai ser aquele que trouxe o computador com áudio. E é assim com Johann Sebastian Bach. Ele é único. E eu dei o exemplo do computador com áudio porque você pode listar todos os outros grandes compositores, Beethoven, Mozart, todos os gênios da música, mas quando você pega a música de Bach, matematicamente você vai encontrar o computador mais avançado tecnologicamente dos dias de hoje. Você encontra uma lógica matemática em tudo nele. Em toda a escrita dele. Ele acabou sendo a síntese de tudo que aconteceu em sua época e profetizou tudo o que viria depois. Bach é o ano 0.

 

Novo começo
Meu pai quis ser pianista desde os 10 anos de idade. Mas, em 1908, três dias antes de sua primeira aula de piano, uma máquina decepou a mão dele. Por isso o nome do livro é A Saga das Mãos. Talvez essa tenha sido a razão de ele querer ter um filho pianista. O meu irmão é um excelente pianista. E eu, que tive a oportunidade, acho que fiz um trabalho grande na minha missão, estive representando nosso país lá fora. Eu fiz um trabalho legal.
Comecei uma carreira nos Estados Unidos e era muito pobre. O primeiro acidente foi em um intervalo de temporada, treinando com um time da Portuguesa de Desportos. Uma pedra atingiu a minha mão e rompeu o nervo cubital [relativo ao cúbito, osso que, com o rádio, forma o esqueleto do antebraço]. Isso teria sido o fim. Mas na verdade foi aí que começou a vida que eu sempre tinha procurado por meio da música. Começou a minha luta. E, com altos e baixos, a música venceu no final. Pode estourar a Terceira Guerra Mundial que a música continua do mesmo jeito para mim. Eu vejo muito significado na frase "A música venceu". Digamos que hoje estou feliz. Eu vivo feliz. Nunca posso dizer que as minhas mãos morreram; afinal, eu até consigo tocar uma música com três dedos. Tudo que eu realizei de mais forte na carreira foi já com a mão profundamente afetada. Foi tudo na base da determinação. Dez minutos antes de um concerto eu não sabia se poderia tocar. Cheguei a cancelar um concerto em Paris três minutos antes, com um teatro lotado.

 

Novas paixões
Acho que nunca na minha vida estive tão conectado com as pessoas. São telefonemas, eu vou à periferia de São Paulo, trabalho com deficientes, e a cada passo estou me realizando mais. Antes de tudo, estou querendo deixar um legado. É fácil para uma pessoa que nunca errou cumprir a sua missão. O difícil é uma pessoa que possa ter errado mas não continuou a errar e optou pelo bem. Acho que isso é a vida.
Quando tenho a primeira reunião com a orquestra, falo que a única palavra que não admito é inveja. Digo a eles que a única palavra que quero lá dentro é amor. Eu proíbo a palavra inveja porque, na minha vida, eu, como pianista, sempre que ia assistir a um concerto torcia pelo sucesso da apresentação como se ela fosse minha. Era assim com o Nelson Freire, com o Arthur Moreira Lima...
Sou diretor de uma faculdade de música há três anos, foi um convite, e as duas ocupações - a faculdade e a orquestra - são minha vida. Foi por meio da faculdade que acabei me envolvendo no social. Comecei a ver a real situação de um aluno de música no Brasil. Aí comecei a formar também a Bachiana jovem para criar um mercado de trabalho para os garotos. É um relacionamento bárbaro. Ninguém me chama de senhor. Falo que, se algum aluno me chamar de senhor, eu me sinto velho; se me chamar de você, eu me sinto seminovo.

 

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