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Tuberculose: um bacilo invencível?

A cura existe há mais de 60 anos, mas a "peste branca" resiste às tentativas de controle

EVANILDO DA SILVEIRA


Raios X: a partir de 1895, diagnóstico mais
preciso / Foto: Reprodução

Com registros de existência que datam de cerca de 6 mil anos e cura conhecida há mais de 60, a tuberculose continua a ser, até hoje, um grave problema de saúde pública em muitos países e a doença infecciosa que mais mata no planeta. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), um terço da humanidade está contaminado e, desses 2 bilhões de pessoas, a cada ano 9 milhões desenvolverão a doença e 1,7 milhão morrerão – em outras palavras, um indivíduo a cada 18,5 segundos. No Brasil, apesar de os números virem caindo discretamente, estima-se que haja 60 milhões de contaminados, com 110 mil novos casos e 5 mil mortes por ano. Diante desse quadro, autoridades de saúde do mundo todo, lideradas pela OMS, vêm lutando para controlar e debelar o avanço da enfermidade.

Não será uma luta fácil. No ano passado, vieram a público dois novos trabalhos científicos que deixam evidente a gravidade da situação. Um deles, coordenado pelo pneumologista Luiz Claudio Lazzarini de Oliveira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), descreve uma nova linhagem do bacilo Mycobacterium tuberculosis – o agente causador da doença, também conhecido como bacilo de Koch – que tem maior capacidade de driblar o sistema imunológico do ser humano. Chamado de RD-Rio, ele causa emagrecimento mais intenso, mais escarro de sangue e perfurações no pulmão e já é responsável por um em cada três casos registrados no Rio de Janeiro. O outro trabalho, desenvolvido por laboratórios de nove países, mostra que essa linhagem predomina sobre centenas de outras nos Estados Unidos, na América Central e na África.

Pelo tempo decorrido desde que é conhecida e por já existirem vacinas e medicamentos para preveni-la e combatê-la, a tuberculose já deveria estar sob controle. Não é, porém, o que acontece. Alguns fatores contribuem para isso. "Trata-se de uma enfermidade ligada às condições socioeconômicas da população", diz o médico e pesquisador André Báfica, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). "Fatores como a desnutrição e o aparecimento de cepas de bactérias resistentes ao tratamento contribuem para dificultar seu controle. Além disso, a inexistência de uma vacina eficaz aumenta o problema."

O fato de haver muito mais pessoas infectadas do que doentes – cada portador do bacilo pode contaminar outras dez pessoas – é outro fator que colabora para a propagação da enfermidade. "Existem muitos indivíduos com potencial para adoecer e se tornar transmissores", explica o médico Fernando Augusto Fiuza de Melo, diretor do Instituto Clemente Ferreira, órgão da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo considerado referência no tratamento de tuberculose e doenças respiratórias. De acordo com ele, de maneira geral a pessoa que transmite é aquela que tem a moléstia com cavidades no pulmão, onde o bacilo se reproduz com maior velocidade.

Dali ele ganha o mundo. Através dos canais bronquiais e favorecidos pela tosse, por espirros e pela fala da pessoa, os microrganismos chegam ao exterior, onde podem infectar novas vítimas, quase sempre pessoas íntimas e de relação mais próxima com o transmissor. Quanto maior o número de infectados e contatos entre eles e outros indivíduos, como nas aglomerações, mais facilmente o bacilo se espalha. "É por isso que numa favela a transmissão é maior que em locais onde as casas são mais amplas e têm mais dependências", diz Melo.

Duro de matar

Essa situação é reforçada pelo fato de o bacilo, uma vez no organismo da pessoa, ser "eterno enquanto viva o portador". Mesmo os que adoecem e são curados podem tornar-se um foco transmissor. "Com base nesse conhecimento, podemos dizer que, enquanto existirem infectados, a tuberculose pode voltar", explica Melo. "Foi o que aconteceu na Europa e nos Estados Unidos, onde a doença re-emergiu recentemente."

Trata-se de um paradoxo. A melhoria da qualidade de vida e o consequente aumento da longevidade nesses países facilitou o surgimento de novas fontes de transmissão do M. tuberculosis. "Muitos dos idosos de hoje, contaminados nas décadas de 1920 e 1940, antes do surgimento da quimioterapia, quando eram maiores as taxas de infecção e adoecimento, tornaram-se nas últimas décadas transmissores da doença", diz Melo. "Eles funcionam como reservatórios de bacilos dos tempos de alta incidência da infecção, que agora foram reativados pela queda da imunidade própria da velhice."

Apesar de todos esses fatores, os tratamentos existentes vinham dando resultado, e o número de doentes diminuía a cada ano. Na década de 1980, porém, surgiu a pandemia da Aids. A queda das defesas imunológicas causada pelo vírus HIV facilitou a infecção e a proliferação do bacilo, e o número de casos voltou a crescer. Hoje, do total de infectados, cerca de 700 mil também são portadores do vírus da Aids.

A bactéria causadora da tuberculose é chamada de bacilo de Koch em homenagem ao bacteriologista alemão Robert Koch, que a descobriu em 24 de março de 1882. Com apenas dois milésimos de centímetro, ela é transportada por partículas úmidas que ficam pairando no ar e pode permanecer suspensa durante horas, pronta para ser inalada por uma pessoa e instalar-se em seus pulmões. Cada gotícula carrega de um a três desses microrganismos. Por isso, não é de estranhar que, quando o homem começou a se juntar em cidades, tenha aumentado a propagação da doença.

Foi o que aconteceu a partir da Revolução Industrial, primeiro na Inglaterra e depois no resto do mundo, quando os operários passaram a viver aglomerados e em péssimas condições de higiene. Em meados do século 19, a tuberculose dizimou um terço da população da Europa. Por isso, passou a ser conhecida como a "peste branca", pela palidez anêmica da pele dos doentes e para se contrapor à "negra", como ficou conhecida a peste bubônica, que durante o século 14 vitimou pelo menos 25 milhões de pessoas na Europa.

No caso das Américas, embora comprovada sua existência na era pré-colombiana, não existem registros de que havia tuberculose entre os nativos brasileiros antes da chegada dos portugueses. O bacilo foi trazido por alguns colonizadores europeus doentes, atraídos pelo clima tropical, na época considerado saudável e recomendado aos tuberculosos. "Foi o que aconteceu com a vinda dos padres jesuítas, que, devido à missão de catequese, mantinham contato constante com as populações indígenas, facilitando a transmissão", conta Melo. "Um dos mais famosos, o padre Manuel da Nóbrega, destacou-se por seus sermões e pela tísica."

Em busca da solução

A descoberta de Koch foi um passo importante para entender a doença e procurar uma forma de tratá-la. Outros vieram depois, como a invenção do estetoscópio, em 1816, que tornou possível o diagnóstico mais preciso. Mais tarde, em 1895, o uso dos raios X permitiu a produção de imagens das partes internas do corpo, facilitando a detecção de várias moléstias, inclusive a tuberculose. Em termos de prevenção, tratamento e cura, o primeiro marco importante foi o surgimento da vacina BCG, abreviatura de bacilo de Calmette-Guérin.

Trata-se de uma variante do bacilo tuberculoso bovino, resultado de mutação genética descoberta pelos pesquisadores franceses Albert Calmette e Camille Guérin. Eles obtiveram uma cepa atenuada, que mantinha as propriedades de estimulação imunológica, capaz de proteger contra o M. tuberculosis, mas sem causar a doença. Com ela foi criada a vacina BCG, em 1921, que é ministrada até hoje no primeiro mês de vida dos bebês. "A vacina protege as crianças contra formas graves da enfermidade, como a miliar e a meningite tuberculosa, mas a imunidade que confere aos adultos é muito limitada", explica Báfica.

Por isso, a doença permaneceu incurável até os anos 1940, quando foi descoberta a estreptomicina, o primeiro antibiótico capaz de atuar de maneira eficaz no combate à tuberculose. Depois, outras drogas foram surgindo e utilizadas com sucesso, como a isoniazida, na década de 1950, a rifampicina e o etambutol, na de 1960, e a pirazinamida, sintetizada nos anos 1950, mas utilizada somente em 1970. No final desse mesmo ano, foram descobertos outros fármacos que auxiliam o tratamento nos casos de resistência bacteriana. Desde então não há nenhum medicamento novo que demonstre eficácia contra a tuberculose disponível no mercado.

O desenvolvimento dessas drogas, as medidas profiláticas com a vacina BCG e a organização de programas de controle nacionais, que diminuíam drasticamente a mortalidade nos países em desenvolvimento, criaram a ilusão de que seria possível controlar o mal. "A máxima nos anos 1970 era, segundo a União Internacional de Luta contra a Tuberculose, ‘acabar com ela agora e para sempre’", diz Melo. "Era possível notar, porém, uma nítida dicotomia entre a queda da incidência da doença nos países industrializados, onde ela estava controlada, ou quase, e sua manutenção como um grave problema de saúde pública nas nações pobres ou em desenvolvimento."

As consequências disso não se fizeram esperar. Nas décadas seguintes, a euforia foi substituída pela decepção, ao se notar que a moléstia recrudescia nos países avançados e agravava-se nas nações pobres. Em 2006, os números continuavam aumentando na África, na região do Mediterrâneo oriental e no sudeste asiático. Nessa escalada, uma característica chama a atenção: a diferença de incidência entre as regiões pobres e ricas.

As primeiras apresentavam 79% dos infectados, ante 21% nas segundas. "Do total de novos registros a cada ano, 95% ocorrem nos países em desenvolvimento e apenas 5% nos avançados", diz o pneumologista Afrânio Kritski, da UFRJ. "Os coeficientes de incidência e de mortalidade nos primeiros atingem 171 e 60 por 100 mil, ante 23 e 2 nos últimos, respectivamente. O que é mais grave e sério, no entanto, são os números das mortes anuais, com 98,7% nos países pobres e 1,3% nos ricos."

Destaque negativo

O Brasil, embora registre queda no número de casos desde 1999, à taxa de 2% a 3% ao ano, ainda se destaca negativamente no cenário mundial. Com uma incidência de 47 por 100 mil habitantes, o país ocupa o 15o lugar entre as 22 nações responsáveis por 80% do total de pacientes no mundo. Assim como ocorre no restante do planeta, também há grandes diferenças entre as regiões pobres e ricas. A periferia das grandes cidades e os bolsões de pobreza, como as favelas, continuam sendo o maior obstáculo no combate à doença.

Segundo Draurio Barreira, coordenador do Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT), do Ministério da Saúde, historicamente os grandes centros urbanos são os locais onde é maior o número absoluto de incidências. "São Paulo e Rio de Janeiro são os dois municípios com mais pacientes novos por ano, cerca 6 mil em cada um", diz. Apesar disso, São Paulo está melhor em números relativos, apresentando um índice de 40 doentes para cada 100 mil habitantes, menor que a taxa nacional. Já a do Rio de Janeiro é quase o dobro da do país, 86 por 100 mil habitantes. "O bacilo não está vencendo, mas 5 mil mortes por ano causadas por uma enfermidade curável é inaceitável", reconhece Barreira.

Para tentar reverter o quadro mundial, a OMS lançou em 1993, mesmo ano em que declarou a tuberculose uma emergência mundial, a estratégia Dots (sigla de Directly Observed Treatment Short Course, Tratamento Curto Diretamente Observado), que implicava uma série de iniciativas e a participação ativa dos governos no controle do problema. Uma dessas medidas era a criação de esquemas de terapêutica padronizados e aplicados aos pacientes sob observação direta dos agentes de saúde, com o objetivo de garantir que tomassem de fato os medicamentos. Uma das principais metas da Dots era detectar 70% do total estimado de doentes e curar 85% dos identificados.

Até 2004, 184 países haviam adotado a estratégia, inclusive o Brasil. Mas as metas não foram completamente alcançadas. Naquele ano, 53% dos doentes foram detectados em todo o mundo, com 82% de cura. A partir desses dados, a OMS resolveu aprofundar e intensificar a estratégia e criou a Parceria Stop TB (TB é a abreviatura técnica de tuberculose), que tem como principal objetivo possibilitar o acesso universal ao diagnóstico de alta qualidade e ao tratamento centrado no paciente. A intenção é reduzir pela metade até 2015 o número de casos e as mortes em relação a 1990 e eliminar a doença como problema de saúde pública até 2050, atingindo a taxa de um caso por milhão de habitantes.

Foi para seguir as diretrizes da OMS que o Brasil lançou o PNCT, criado em 1999, integrado à rede de serviços de saúde. "O programa é executado em conjunto pelas esferas federal, estadual e municipal, o que permite o acesso universal da população às suas iniciativas", explica Barreira. "Ele está subordinado a uma política de ações com padrões técnicos e assistenciais bem definidos, garantindo desde a distribuição gratuita de remédios até medidas preventivas e de controle." Com o PNCT, o país investiu R$ 108,4 milhões em 2008 – para 2009, o governo federal disponibilizou cerca de R$ 110 milhões para combater a doença.

Outras iniciativas para o controle da doença surgiram em instituições científicas. Uma delas é Programa Acadêmico de Tuberculose (PAT), criado em 2000 na UFRJ. "O PAT está baseado em três pilares", afirma Kritski, um de seus idealizadores. "Assistência de qualidade aos pacientes, realização de pesquisas e ensino multidisciplinar em todos os níveis, particularmente na pós-graduação." Esse programa foi o embrião da Rede-TB, formada em 2001, e que reúne pesquisadores de todo o Brasil em busca de diagnósticos e terapias mais eficientes.

Resistência às drogas

O país e o mundo terão de fazer muito mais, no entanto, para vencer um novo problema: as variedades de bacilos que não respondem aos remédios. "Hoje temos casos resistentes a todos os fármacos disponíveis", explica a médica pneumologista Ana Maria Campos Marques, da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), que pesquisa a tuberculose na população indígena de Mato Grosso do Sul. "Esse problema é consequência da estrutura ruim dos serviços de saúde e do não-comprometimento dos gestores, assim como do uso irregular da medicação ou do abandono do tratamento."

Segundo a OMS, a cada ano aparecem entre 400 mil e 450 mil novos casos que apresentam alguma das duas formas conhecidas de resistência aos remédios normalmente usados. Uma delas, a mais comum, é conhecida pela sigla MDR, que designa uma variedade resistente a várias drogas. A segunda, XDR, variante extremamente resistente a medicamentos, surgiu na África e, embora mais rara, é mais preocupante: não responde a nenhum tratamento existente e é praticamente incurável. De 53 sul-africanos afetados recentemente, apenas um sobreviveu.

A principal causa da resistência, o abandono do tratamento, ocorre por dois motivos principais: os efeitos colaterais desagradáveis e a ilusão de que já se está curado depois de dois a três meses, devido ao desaparecimento dos sintomas. "Os remédios são eficientes quando utilizados de forma correta durante o período de seis a doze meses", explica Báfica. "Isso precisa ser seguido à risca, mesmo com os fortes efeitos colaterais." A desistência e a administração errada dos remédios leva à pressão seletiva dos microrganismos, gerando resistência bacteriana e tornando ineficazes os medicamentos. Quando isso ocorre, o tratamento é ainda mais longo e severo, podendo eventualmente chegar a 18 ou 24 meses.

Com o objetivo de desenvolver uma forma menos penosa de curar a tuberculose, Báfica iniciou um projeto de pesquisa para criar um sistema baseado em micropartículas (partículas de polímeros biodegradáveis com tamanho de um micrômetro, ou um milionésimo de metro), contendo as três drogas mais usadas no combate à doença, isoniazida, rifampicina e pirazinamida. "Em tese, os fármacos acoplados às micropartículas chegariam mais facilmente ao bacilo, por exemplo, dentro dos macrófagos pulmonares (células de defesa), e seriam liberados lentamente no local da infecção, diminuindo a dosagem e o tempo de tratamento e, consequentemente, os efeitos colaterais, e aumentando a eficácia terapêutica", explica.

Para Kritski, até que novas drogas surjam, o controle da tuberculose somente será alcançado quando a sociedade civil e os governos assumirem que precisam de fato atuar de modo conjunto, com esforços coordenados, "como uma orquestra que pretende executar uma sinfonia". É necessário também buscar a erradicação da miséria, da fome e das más condições de habitação das populações carentes. "Além disso, é preciso contar com a divulgação na imprensa, para que a população leiga também participe, reconhecendo a gravidade do problema da tuberculose e auxiliando a diminuir o estigma da ‘peste branca’ que acompanha o ser humano há milênios."

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