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Na rua, calorias e gordura em oferta

Consumo de comida nas calçadas e praças pode trazer riscos à saúde

LÚCIA NASCIMENTO


Milho cozido: uma das melhores opções
Foto: Lúcia Nascimento

A rotina de Antônio Guerreiro Filho, de 61 anos, é puxada. Acorda às 8 horas e com a ajuda da mulher prepara molhos, lava verduras e descongela carnes. Duas horas depois, está em seu carrinho de sanduíches, em frente à Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru, onde fica até as 23 horas. E não reclama. “Vendemos cem lanches por dia a menos de R$ 5, e a renda é suficiente para viver bem uma vida de pobre. O pior é quando tem greve dos alunos, aí fica difícil.”

A atividade de servir comida de rua chegou à sua vida 12 anos atrás, quando fechou a padaria que possuía na mesma cidade. “Havia muitos assaltos”, lembra. Com quase 50 anos, na época, não arranjou emprego, e a solução encontrada foi vender lanches na rua. “Sou corajoso e decidi comprar este trailer. No início vendia minipizzas, mas os alunos da Unesp pediam sanduíches, então mudei”, diz.

Não existem dados oficiais, mas estima-se que milhões de brasileiros ganhem a vida do mesmo modo que Antônio – como diz seu sobrenome, um entre tantos guerreiros. Em geral, eles chegam às ruas com seus carrinhos quando o desemprego aumenta ou não há oferta de trabalho formal – não muito diferente do que ocorreu quando esse tipo de atividade se iniciou. “A partir de meados do século 18, com o crescimento da população, as escravas saíam da cozinha para as ruas, levando comidas feitas em casa. Eram vendedoras ambulantes que percorriam as cidades vendendo beiju, cuscuz, bolinhos e outras iguarias”, afirma Wilma Maria Coelho Araújo, doutora em tecnologia de alimentos e integrante do grupo de pesquisa em gastronomia do Centro de Excelência em Turismo da Universidade de Brasília (UnB).

As escravas ganhadeiras, como eram chamadas, precisavam dar a seus senhores uma quantia previamente estabelecida. O que excedesse o valor combinado era apropriado por elas, que podiam acumular para comprar sua liberdade ou gastar no dia a dia. “Geralmente os senhores respeitavam as regras do jogo, embora a legislação fosse omissa. Somente a partir da chamada Lei do Ventre Livre, em 1871, foi facultado aos escravos o direito de acumular”, afirma a historiadora Cecília Conceição Moreira Soares, professora das universidades Estadual de Feira de Santana (UEFS-BA) e Católica de Salvador (Ucsal), no artigo “As Ganhadeiras: Mulher e Resistência Negra em Salvador no Século 19”.

Diversidade

No século 19, em todos os grandes centros urbanos brasileiros havia intenso comércio de alimentos nas ruas. “São Paulo tinha uma particularidade: vendia alimentos em forma de petiscos e com forte influência indígena – apesar de as vendedoras serem, em sua maioria, de origem africana”, diz João Luiz Máximo da Silva, historiador que apresentou dissertação de mestrado sobre o assunto na Universidade de São Paulo (USP).

Entre a imensa variedade de alimentos daquela época, havia içás (formigas) torradas, cuscuz (de bagre ou pitu), pasteizinhos, empadas de palmito, pinhões cozidos, amendoins torrados, doces e pipoca. “Os vendedores pescavam camarões, bagres e piquiras no rio Tamanduateí e os utilizavam para rechear cuscuz e empadas, juntamente com o palmito. Algumas vezes, comiam-se pratos mais completos, como moquecas. Mas não se conhece a receita desses alimentos”, diz João Luiz. Por isso, não é possível dizer se a preparação era semelhante à que conhecemos hoje.

Naquela época, no Rio de Janeiro destacavam-se as refeições, como o angu. Já na Bahia a origem africana das vendedoras se impôs ao cardápio com comidas como o acarajé, o quitute regional mais conhecido.

Ainda hoje, em cada lugar do país, as comidas de rua marcam a identidade cultural de vários povos e culturas. Pão de queijo é mineiro, tapioca é nordestina, suco de açaí é nortista, cachorro-quente é paulista, tacacá é manauense, espetinho de camarão é de quem mora no litoral. Todos os alimentos de rua possuem, no entanto, uma característica comum: refletem a origem histórica da população, mostram as influências de migrações entre estados e revelam a condição socioeconômica local. “É a preservação de nossa história”, diz Wilma.

O fato se repete em milhares de culturas espalhadas mundo afora. Estimativas da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) mostram que há no mínimo 2,5 bilhões de pessoas que consomem alimentos de rua pelo planeta, preservando a tradição.

No Peru, por exemplo, o público tem à disposição cocos, chocolates, tortas de limão e sorvetes, além da variedade imensa de salgados à base de batata, arroz e grãos, todos bem apimentados. Em Nova York, nos Estados Unidos, é comum encontrar carrinhos que oferecem petiscos variados, como cachorro-quente, pretzel e churros, dentro do Central Park. Esses carrinhos são regulamentados, e só pode comercializar alimentos quem possui licença. Em Moçambique, no sudeste da África, são vendidos amendoins, castanhas, peixe-frito, carne assada, frutas, guloseimas e ovos cozidos.

Higiene

Apesar dos sabores diferenciados, praticamente todos os países têm um ponto em comum: não possuem políticas ou programas destinados a incentivar a higiene no preparo e na venda dos alimentos, o que pode acarretar casos de infecção alimentar ou de intoxicação. “Seria importante considerar medidas voltadas à formação continuada dos vendedores e envolver os manipuladores que atuam nessa cadeia produtiva”, sugere Ryzia de Cassia Vieira Cardoso, professora da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Segundo a especialista, em 2002 a Associação das Baianas de Acarajé e Mingau criou um movimento para a formação de baianas que vendem acarajé em Salvador. O programa, que ficou conhecido como Acarajé 10, apresentou resultados positivos quanto à manipulação higiênica dos alimentos, mas durou pouco tempo, por falta de envolvimento local e de patrocinadores.

Outro caso de intervenção em que se tentou transmitir conhecimento sobre práticas de higiene e de manipulação dos alimentos ocorreu em Cuiabá, entre 2005 e 2006, mas não apresentou resultados satisfatórios. Pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) foram às ruas e coletaram 285 amostras do sanduíche “baguncinha” (versão local do X-Tudo). A maioria dos vendedores contatados eram homens de 16 a 23 anos, com jornada de trabalho entre 48 e 56 horas semanais, principalmente no período noturno. A maioria não possuía licença para o comércio nem era membro de sindicato ou associação de classe.

A coleta foi dividida em três etapas: antes da intervenção educativa, um mês e seis meses depois. Foram feitas análises microbiológicas dos alimentos e da água usada pelos vendedores para lavar as mãos durante o trabalho. Os resultados, porém, não foram animadores: “Considerando todas as amostras analisadas de sanduíches, não houve melhora em relação aos níveis médios de contaminação por coliformes fecais após a intervenção educativa”, lamenta Aída Couto Dinucci Bezerra, uma das responsáveis pela pesquisa e organizadora do livro Alimentos de Rua no Brasil e a Saúde Pública.

“A infraestrutura é precária; poucos estabelecimentos têm água potável disponível ou sanitário acessível. Muitos manipuladores de alimentos não dão destino correto ao lixo produzido em seu comércio e igual proporção não possui sistema de refrigeração adequado para a armazenagem dos ingredientes. As mãos dos manipuladores também têm sido identificadas como fonte de contaminação”, afirma Aída.

Segundo Wilma Araújo, cabe à Vigilância Sanitária de cada município orientar esses trabalhadores para reduzir a possibilidade de contaminação. “Recursos há. Conhecimento, também. O que se precisa fazer é orientar sempre sobre como se deve preparar a comida, porque certamente esses cuidados também se refletirão na redução do desperdício dos produtos”, diz.

Exemplos

Em países desenvolvidos, esse tipo de comércio está sujeito a regulação. De acordo com levantamentos apresentados pela FAO, na América Latina a normalização ainda está em evolução. Alguns países, como Bolívia, Colômbia, Peru e Equador contam com resoluções específicas sobre os principais aspectos da venda ambulante de alimentos, entre eles a higiene. No Brasil, o controle sanitário é de responsabilidade dos municípios, e poucas ações eficientes foram colocadas em prática até hoje.

Um bom exemplo vem da Malásia, no sudeste asiático, onde as autoridades oferecem um extensivo programa de incremento da infraestrutura e de treinamento aos vendedores, incluindo até distribuição de água para seus locais de trabalho. Cingapura, pequeno país da mesma região, é outro caso de sucesso. Lá, os vendedores foram transferidos para pequenos centros comerciais próximos de escritórios e de locais movimentados, para facilitar o acesso à infraestrutura necessária.

No início da década de 1980, o governo construiu centros desse tipo, preparados para a venda de comida, incluindo a oferta de água potável, eletricidade, banheiros e locais apropriados para o descarte de lixo. Em 1986 todos os vendedores de comida de rua já haviam sido deslocados para esses espaços. Eles receberam licença do governo para trabalhar, mas antes participaram de cursos sobre manipulação de alimentos e tiveram de mostrar, na prática, que estavam tomando os cuidados necessários para evitar qualquer tipo de contaminação na comida vendida.

Esses exemplos são citados pela organização não governamental Consumers International (CI), que recentemente fez uma campanha pela preservação e incentivo ao consumo de comida de rua. “Em Cingapura, aqueles que acumulam certo número de pontos negativos podem ter a licença suspensa. Se forem reincidentes, ela pode ser cassada”, afirma Satya Sharma, coordenador do projeto de comida de rua da CI na Malásia. Até mesmo o tráfego local foi beneficiado com a iniciativa. “As ruas e calçadas eram tomadas pelos vendedores de comida e, além de ficar praticamente intransitáveis, iam se deteriorando. Hoje isso mudou”, diz.

Riscos

Não é algo comum infectar-se ao consumir alimentos preparados na rua – segundo dados do Ministério da Saúde, o risco é bem maior dentro de casa. Mesmo assim, a importância de ações como as citadas é incalculável. Afinal, uma simples infecção alimentar causada por bactérias ingeridas no alimento pode levar até 14 dias para ser vencida.

De acordo com uma pesquisa feita pela nutricionista Alessandra Lucca, apresentada como dissertação de mestrado à Faculdade de Saúde Pública da USP, os riscos estão à vista. “Pesquisei vendedores de cachorro-quente e havia problemas em tudo o que se possa imaginar. O purê de batata ficava em temperatura ambiente. As bisnagas de maionese não eram limpas diariamente. Alguns fritavam as carnes e aqueciam as salsichas antes dos momentos de maior movimento”, diz. Segundo ela, apesar dos erros de preparo, felizmente as pessoas não costumam sentir-se mal após a ingestão desse tipo de alimento, por causa da alta rotatividade. “Não dá tempo de estragar.”

A principal dica para não ter problemas é olhar a barraca e seu entorno. Verificar se há limpeza, se não há animais por perto, se há utensílios diferentes para a coleta de cada ingrediente. Uma boa forma de analisar o ambiente é observar as unhas do vendedor – se estão cortadas, limpas e sem esmalte –, suas roupas e se ele manipula o dinheiro e a comida ao mesmo tempo, sem lavar as mãos. Também é importante observar se o alimento que está sendo preparado possui bom cheiro, textura e sabor. Se apesar desses cuidados aparecerem sintomas como enjoo, diarreia, perda de apetite e dor abdominal por mais de um dia, é hora de procurar auxílio médico.

“O setor de comidas de rua fornece oportunidades de geração de renda e requer baixíssimos investimentos. Esse tipo de comida também é uma ótima maneira de prover alimentos baratos e saborosos para as pessoas que se movimentam pelas cidades. Só é necessário garantir que os vendedores tenham acesso a boas condições de higiene para que a comida seja segura”, conclui Satya.


Regime para engordar

Acarajé, pastel, cachorro-quente, hambúrguer, pipoca, sorvete, milho verde, caldo de cana, pão de queijo... As opções de comida de rua são muitas, mas será que constituem alternativas saudáveis? “Os alimentos vendidos nas ruas são, na maioria das vezes, altamente calóricos, ricos em gorduras e pobres em algumas vitaminas e minerais, comprometendo a saúde do consumidor e contribuindo para o aumento de peso”, alerta Maria Gandini, nutricionista da RGNutri Consultoria Nutricional.

Ela cita como exemplo o acarajé, que por ser frito em azeite de dendê é muito calórico e rico em gordura e, devido à ausência de vegetais variados, tem poucas vitaminas e minerais. Já o hambúrguer, além de ser frito em óleo, muitas vezes vem acompanhado de maionese, rica em gordura, e de outros molhos, como catchup e mostarda, que contribuem para aumentar o total de calorias. O cachorro-quente, apesar de não ser frito, também é altamente calórico, devido à quantidade de acompanhamentos incluídos, como molhos, bacon, purê de batata e batata palha. “A salsicha, fonte de proteínas, é também rica em gorduras e por isso não deve ser consumida com frequência”, diz Maria.

Segundo ela, uma boa opção, entre as que são oferecidas na capital paulista, é o milho verde cozido. “Por não ser frito, acaba sendo uma das melhores escolhas ao se comer na rua. Entretanto, o milho é fonte apenas de carboidratos e vitaminas A e do complexo B, havendo necessidade dos demais nutrientes. Outro problema diz respeito à procedência da água em que o alimento é cozido, que pode trazer riscos à saúde”, pondera.

A recomendação é evitar salgadinhos e frituras, principalmente em lugares onde o óleo é reutilizado. As carnes cruas também podem transmitir doenças e devem ser evitadas, principalmente quando são comercializadas em veículos, pois em geral não há refrigeração e a proliferação de bactérias nessas condições é maior. Alimentos assados ou industrializados são os mais recomendados para evitar doenças – mas nem sempre serão os mais saudáveis.

 

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