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A cidade sente saudade da natureza

História da árdua luta para humanizar espaços urbanos

CARLA ARANHA


Parque do Flamengo / Foto: Reprodução

É difícil imaginar o Rio de Janeiro sem o Jardim Botânico, o calçadão de Copacabana e o Parque do Flamengo. Da mesma maneira, São Paulo seria outra cidade, ainda mais cinzenta, não fossem bairros arborizados como o Jardim América e o Pacaembu, além do Parque do Ibirapuera. Todas essas obras, que contribuíram para a melhoria da qualidade de vida nas metrópoles, saíram das mãos de arquitetos paisagistas, cuja função é pensar o ambiente urbano a partir da interação com a natureza. Durante muito tempo, no entanto, a atividade não foi valorizada à altura no Brasil. Foi só a partir da década de 1970, com o reconhecimento do trabalho de Roberto Burle Marx e de outros grandes nomes, como Rosa Grena Kliass e Fernando Magalhães Chacel, que o paisagismo adquiriu maior projeção. Não por acaso, em 1976 foi fundada a Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas (Abap), que tem como objetivo colaborar para o aprimoramento da produção nacional no setor, por meio de seminários e cursos.

Para homenagear as mais de três décadas de atividade da entidade e a própria atuação dos profissionais da área, foi lançado recentemente o livro Arquitetura Paisagística Contemporânea no Brasil (Editora Senac), idealizado pelo arquiteto Eduardo Barra e organizado por Ivete Farah, Mônica Bahia Schlee e Raquel Tardin. Com prefácio de Rosa Kliass, o volume, ricamente ilustrado, percorre mais de 200 anos de história do paisagismo nacional, desde o século 18 até hoje, com ênfase nos projetos das últimas três décadas, período no qual a atividade mais se desenvolveu no país. “Os textos trazem uma abordagem inédita do histórico do ofício, que deixou de ser meramente decorativo, na primeira metade do século 20, para se tornar mais engajado e preocupado com questões ambientais ultimamente”, diz Eduardo Barra, que possui escritório no Rio de Janeiro e foi presidente da Abap entre 2005 e 2008.

No início, como mostra Hugo Massaki Segawa, professor doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), os espaços verdes no Brasil eram idealizados principalmente para aproveitar áreas alagadas e, quando possível, oferecer à população pontos a partir dos quais se pudesse observar a vista ao redor. O Passeio Público, no Rio de Janeiro, finalizado em 1783, é o maior exemplo do que se buscava nessa época. Situado entre o centro da cidade e o mar, era usado como local de descanso das famílias nos finais de semana – dali enxergava-se a praia. “Trata-se do único projeto paisagístico de envergadura do período colonial”, afirma Segawa. Mais adiante, com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, em 1808, surgiu uma série de jardins botânicos no Brasil. Os mais conhecidos são os do Rio de Janeiro, de Olinda (hoje desaparecido) e de São Paulo (que acabou se transformando no Jardim da Luz).

O começo do século 20 marca a criação de grandes áreas verdes, como a Praça da República, em Belém, e o Parque Municipal, em Belo Horizonte. São Paulo não fica atrás. O inglês Barry Parker consolida, em visita à cidade, um padrão urbanístico de bairros-jardins que resulta na concepção do Jardim América (de 1913), do Alto da Lapa (1921), do Pacaembu (1925), do Alto de Pinheiros (1925) e do Butantã (1935), todos com ruas sinuosas e arborizadas que escondem casas planejadas para não ter muros, apenas cercas vivas. Os empreendedores responsáveis pelos projetos estipularam rígidas normas urbanísticas para a preservação dessas áreas. Segundo Segawa, foi isso o que assegurou a sobrevivência desses espaços mesmo décadas após sua construção.

Na década de 1930, a arquitetura da paisagem inicia uma reviravolta no país. Se até então a produção artística nacional se baseava fortemente em ideias provenientes da Europa, nessa época surge com mais força a necessidade de se voltar para o Brasil. Burle Marx, Azevedo Neto, Luiz Emygdio de Mello Filho e Roberto Coelho Cardozo começam a pensar um paisagismo nacional, aproveitando plantas nativas, como cactos e orquídeas, antes desprezadas. A partir de 1935, Burle Marx desenha as praças de Casa Forte e Euclides da Cunha, no Recife, cidade onde mora por algum tempo, com espécies da caatinga e do semiárido nordestino, o que é considerado uma grande inovação. Alguns anos depois, ele começa a escolher tonalidades de plantas e a criar desenhos que ajudam a formar mosaicos coloridos nos jardins que projeta. O visual criado por ele passa a incorporar muitas curvas, como na Fazenda Marambaia, em Petrópolis (RJ), num casamento perfeito com a arquitetura modernista, que já firmava suas bases.

Já um profissional maduro, entre 1954 e 1961 Burle Marx desenha o Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro. O espaço recreativo em frente ao mar reúne 120 hectares de verde com trilhas para caminhadas protegidas pela sombra proporcionada pela copa das árvores. Hoje, o local conta também com pistas para ciclismo e outras atividades esportivas, atraindo centenas de pessoas nos finais de semana.

Em 1970, os cariocas ganham outro grande presente. Nesse ano, Burle Marx concebe o calçadão de Copacabana, que se torna um dos maiores cartões-postais do país, com dois tipos de desenho, ambos em pedra portuguesa. Um deles reproduz as ondas do mar e outro apresenta coloridas formas geométricas, no canteiro central da Avenida Atlântica.

O paisagismo finalmente se torna reconhecido. Nessa época, os escritórios de Burle Marx e de outros especialistas, como Coelho Cardozo, Rosa Kliass, Luciano Fiaschi e Fernando Chacel, passam a ser cada vez mais procurados. “A partir da década de 1980, ampliou-se ainda mais o mercado de trabalho, em grande parte devido a uma nova mentalidade que começava a surgir”, diz a arquiteta Ivete Farah.

Influência da democracia

Um pouco antes, nos anos 1970, eram lançadas as primeiras leis de proteção ambiental no país. A preocupação com a preservação do meio ambiente passa a ser uma constante nos trabalhos de paisagismo e de intervenção urbana, alargando inclusive o campo de atuação dos profissionais da área, que são chamados a projetar espaços como o Parque do Jaraguá, de 1976, em São Paulo, o Parque Setorial, de 1977, localizado em São José do Rio Preto (SP), e o Parque das Mangabeiras, de 1982, em Belo Horizonte (MG).

Nos anos seguintes, com o fim da ditadura, em 1985, os movimentos sociais, muitas vezes organizados a partir de associações de moradores, passaram a reivindicar melhorias na qualidade de vida nas metrópoles, fomentando discussões sobre questões urbanas. A preocupação era mais do que legítima: o crescimento desenfreado das cidades comprometia áreas públicas de convivência e redutos naturais. Segundo a arquiteta Mônica Bahia Schlee, autora do capítulo “O (Re)Desenho Paisagístico das Cidades Brasileiras (1986-1995)” do livro citado, a partir da década de 1980 o governo assumiu com mais empenho o papel de regular o espaço urbano. Com isso, surgem algumas iniciativas voltadas para a democratização de locais de lazer e o embelezamento das cidades. Tem então lugar o Projeto Rio-Orla (1990-92), que reurbanizou cerca de 30 quilômetros de vias no Rio de Janeiro, da praia do Leme a São Conrado e da Barra da Tijuca ao Recreio dos Bandeirantes. Em seguida, é criado o Programa Rio-Cidade (1993-96), outro grande marco, com o objetivo de proporcionar espaços mais agradáveis. Equipes multidisciplinares foram contratadas pela prefeitura para dar novos ares a diversos bairros. Em Copacabana, Lucia Costa reestruturou as calçadas e concebeu setores de descanso em ruas transversais. Eduardo Barra sistematizou os pontos de parada de ônibus em Botafogo, região de grande fluxo de automóveis e pedestres, e projetou jardineiras coloridas nas esquinas das vias. Em Vila Isabel, na zona norte carioca, Luiz Cancio evocou a memória musical do lugar, que foi berço do samba, ao reconstituir a imagem de boulevard, típica da época de ouro de Noel Rosa e outros artistas, por meio de uma cuidadosa arborização da principal avenida do bairro.

Na mesma época, destacou-se o Programa Favela-Bairro, que a partir de 1994 priorizou a melhoria de infraestrutura das comunidades do Rio de Janeiro, com a pavimentação de caminhos e a construção de praças. “Todos esses projetos foram emblemáticos, pois ampliaram muito o alcance das intervenções governamentais no espaço público, afetando positivamente estratos sociais diversos. Foram, porém, iniciativas pontuais, que evidenciam a falta de um planejamento integrado”, diz Mônica Schlee.

Fica claro também no período quanto algumas capitais, como São Paulo, deram pouca atenção a alternativas que poderiam oferecer locais gratuitos de diversão sintonizados com a natureza. “As várzeas dos rios paulistanos poderiam ter sido poupadas da sanha construtivista se tivéssemos legisladores mais lúcidos, e hoje teríamos uma cidade belíssima, permeada por parques lineares às margens de seus leitos. O problema é que São Paulo foi terrivelmente massacrada pelo espírito progressista do século 20, em que o bom era concreto e asfalto. A boa notícia é que hoje há muita gente preocupada com o assunto, procurando soluções”, analisa Eduardo Barra.

Se por um lado o poder público não se ocupou de questões ambientais nas décadas de 1980 e 90, por outro a iniciativa privada começou a investir mais na recuperação da paisagem. Um bom exemplo do trabalho feito nesse período é o residencial Tortugas, de Benedito Abbud, construído no Guarujá (SP) em 1991, com uma profusão de cascatas e espelhos d’água. O jardim sobre a laje do jornal “O Globo”, no Rio de Janeiro, também marcou época. Inspirado em pátios árabes e jardins japoneses, ele tem muros de tijolo aparente e apresenta espécies vegetais rasteiras e trepadeiras, que tornam menos inóspito o local.

Novos tempos

A contínua expansão das cidades e as ameaças de destruição do meio ambiente marcam o início da primeira década do século 21. O conceito de desenvolvimento sustentável, cada vez mais valorizado, é assimilado pela arquitetura. “O projeto paisagístico tem incorporado cada vez mais premissas de conservação do meio natural por meio de propostas de usos e formas que aproximam natureza e cidade”, diz a arquiteta paisagista Raquel Tardin. É bem representativo dessa tendência o Portal do Camorim, de Fernando Chacel e Sidney Linhares, um parque aberto à visitação pública na zona oeste do Rio de Janeiro, inaugurado em 2001. A mata local foi restaurada, assim como a estação de tratamento de água construída no século 19. Rosa Kliass e Gláucia Dias Pinheiro também conseguiram recuperar áreas degradadas em Belém, através da criação do Parque Mangal das Garças. As paisagistas introduziram elementos da vegetação nativa e refizeram ambientes naturais típicos do Pará, como campos, várzeas e matas.

Empreendedores responsáveis pela construção de hotéis junto a áreas virgens também passam a adotar mais essa postura. O Nannai Beach Resort, em Pernambuco, que tem paisagismo assinado por Luiz Vieira, Alexandre Campello e Kássia Torres, por exemplo, proporciona uma integração com a natureza litorânea local. O projeto dos profissionais abrangeu toda a área externa, que inclui parque aquático, deques, sistema viário, estacionamento, playground e ligação entre os bangalôs, informa Raquel Tardin no capítulo referente aos anos 1996-2006 de Arquitetura Paisagística Contemporânea no Brasil.

O tratamento dado à laje do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, também é bastante ilustrativo dos novos rumos da arquitetura especializada no país. De autoria de Rosa Kliass e Luciano Fiaschi, o projeto concebeu o espaço como local de circulação de pessoas e conta com restaurante, bar, sala de reuniões e um museu sobre aviação. Todos os ambientes receberam plantas rasteiras mescladas a pedras decorativas.

Outra vertente do trabalho dos profissionais do paisagismo é a recuperação de áreas degradadas. Em 2004, Eduardo Barra e Marcia Nogueira Batista transformaram em bosque uma região de São Luís, no Maranhão, que se tornara depósito de bauxita contaminada. Na mesma época, Eduardo Barra foi convidado a desenhar um parque na periferia de Poconé (MT), próximo ao Pantanal, em um local onde antes existia um garimpo de ouro, hoje exaurido. “Infelizmente, por razões políticas, o projeto não se concretizou”, diz Barra.

Um dos maiores desafios da arquitetura paisagística hoje no Brasil é justamente disseminar a importância da preservação da natureza e seus recursos nas cidades ou fora delas, afirma Raquel Tardin. “O processo de intervenção urbana precisa levar em conta as necessidades humanas em consonância com o meio”, explica ela. A tendência, acredita Eduardo Barra, é que haja um respeito crescente pelas características do terreno, como vegetação, clima, regime de ventos, fauna etc. “É algo muito abrangente e complexo, pois há a obrigação de criar algo bonito e sustentável. A boa notícia é que o mercado não é mais exclusividade do eixo Rio-São Paulo. Encontro com frequência colegas pelos aeroportos do Brasil em viagens de trabalho”, comenta.

Um entrave à disseminação do paisagismo está na questão da formação profissional, que, segundo Raquel Tardin, deixa a desejar. Os arquitetos Paulo Renato Pellegrino e Lucia Costa concordam. “O ensino do planejamento da paisagem é espremido em uma ou duas disciplinas nos currículos de graduação de arquitetura e urbanismo, sendo ministrado em sua maioria por professores que têm sua base de formação no projeto de edificações”, afirmam eles em texto de Arquitetura Paisagística Contemporânea no Brasil. Por isso, garantem os profissionais, são tão importantes as iniciativas da Abap e de outras instituições voltadas à discussão de novas formas de ver a ocupação urbana e promover maior integração entre o homem e os espaços livres.

 

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