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Escravidão da era moderna

País tenta conter tráfico de pessoas, mas ações são insuficientes

NATÁLIA SUZUKI


Cartaz em banheiro de aeroporto / Foto: Divulgação

Em março deste ano, um menino haitiano de 12 anos foi encontrado perdido próximo à estação Corinthians-Itaquera do metrô, na zona leste da cidade de São Paulo. Ele havia fugido do cativeiro em que se encontrava. Segundo seu relato, partira da ilha caribenha com mais 13 crianças, orientado por um parente. Seu destino final era a Guiana Francesa.

Num sobrado na Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte paulistana, as autoridades flagraram 16 bolivianos e um peruano trabalhando em condições análogas à escravidão numa tecelagem, fornecedora de roupas para uma loja de departamentos. Nenhum deles tinha situação trabalhista regularizada e sua jornada começava às 7 horas e terminava às 21. Todos habitavam no local de trabalho. Foram apreendidos cadernos com anotações de cobranças ilegais de gastos dos trabalhadores. Segundo uma pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro divulgada em janeiro deste ano redes de prostituição ajudam a financiar a atividade de garimpo no Suriname. O capital viria do lucro arrecadado com a exploração sexual de brasileiras aliciadas no Pará e no Maranhão. Esses três casos, que parecem não ter nenhuma relação entre si, revelam um fato grave: todas essas pessoas foram vítimas de redes internacionais de tráfico humano.

Muito por fazer

O tráfico de pessoas existe em praticamente todos os países. Segundo estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2005 havia mais de 2,4 milhões de casos dessa prática ilegal no mundo. No Brasil, porém, a forma como o problema se instalou é peculiar. Somos ao mesmo tempo um país de origem, trânsito e recepção de vítimas. Em 2002, a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial (Pestraf), realizada pela ONG Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria), apontou a existência de 241 rotas de tráfico para fins sexuais, sendo 131 internacionais, 78 interestaduais e 32 intermunicipais, sem contar aquelas utilizadas para exploração laboral, tráfico de órgãos e tecidos e adoção ilegal.

Segundo dados dos Núcleos de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETPs) e da Polícia Federal, algumas das principais rotas brasileiras são aquelas que enviam mulheres dos estados do Pará e de Goiás para o mercado do sexo do Suriname e da Europa, respectivamente. Há destaque ainda para o recebimento de paraguaias e argentinas para exploração sexual e de bolivianos para o trabalho forçado no território brasileiro. Por aqui, passam também adolescentes e crianças traficados da América Central, que seguem para a Europa para adoção ilegal.

O problema não é recente. Em 2006, o governo federal anunciou a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e, dois anos depois, lançou um plano bienal de ações referentes a esse combate. Nos últimos meses, o Ministério da Justiça organizou um grupo de trabalho, envolvendo a sociedade civil e setores governamentais, para a elaboração e a proposição de um novo plano nacional. Uma das metas, segundo Ricardo Lins, coordenador de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério da Justiça, é ampliar o período de vigência de dois para quatro anos. O ministério espera concluir em breve a consulta pública dessa nova edição, para que seja implementada ainda neste ano.

Em parte, a iniciativa brasileira é consequência da adesão do país ao Protocolo de Palermo, em 2004. O documento, elaborado pela comunidade internacional em 2000 e assinado por 147 países, define o tráfico como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre a outra para fins de exploração”. A partir de então, o governo federal passou a adotar ações que contemplam os três eixos principais previstos no protocolo para o enfrentamento do crime: a prevenção, o atendimento à vitima e a repressão da prática.

Órgãos governamentais, entidades da sociedade civil e especialistas são unânimes ao afirmar que houve um avanço no combate ao problema no Brasil, mas ainda há muito por fazer. O governo federal investiu R$ 5 milhões em ações de combate ao tráfico desde 2008. Segundo Ricardo Lins, porém, essa quantia é maior, se forem consideradas outras ações indiretas. Ele explica que, além do estabelecimento de políticas públicas específicas, o plano possibilitou definir metas transversais entre oito ministérios que, desde então, estão envolvidos diretamente no assunto.

“O fato de haver uma política e um plano significa que o governo reconhece a problemática. Há um interesse maior em discutir o assunto e combater o crime. Além disso, a sociedade está mais consciente”, diz o pesquisador Marcel Hazeu, coordenador da Sodireitos, ONG paraense que atende a vítimas.

Ações preventivas, em campanhas e produção de pesquisas, estão sendo disseminadas pelo país, bem como as estratégias de repressão organizadas entre polícias locais, federal e internacionais. O coordenador do Ministério da Justiça menciona que a campanha que inseria peças publicitárias nas principais rodoviárias e aeroportos brasileiros, durante o primeiro semestre deste ano, fez com que o número de denúncias aumentasse 50% entre os meses de fevereiro e abril de 2010.

Nos dois últimos anos, cerca de 20 mil policiais foram capacitados para lidar com o tema e, no mesmo período, houve 211 condenações de pessoas envolvidas com essa prática ilegal. Segundo dados da Polícia Federal, nos últimos 20 anos foram instaurados 793 inquéritos em todo o Brasil. O estado campeão de processos é Goiás, com 147 casos. Em 2005, após a adoção pelo Brasil de leis antitráfico, houve um aumento sensível de casos registrados. Foram 119, contra 72 no ano anterior. “Com a legislação antitráfico, o trabalho da Polícia Federal foi intensificado, porque nosso público-alvo aumentou”, explica Paula Dora Morales, delegada chefe da Divisão de Direitos Humanos da Polícia Federal.

Não faltam, porém, dificuldades. O país enfrenta sérios desafios em relação ao desenvolvimento de estratégias de inteligência, já que há problemas para sistematizar e unificar os dados disponíveis. Hoje, não existe um número oficial de casos de tráfico, porque são registrados apenas os que foram julgados. “Nem todos têm caráter penal. Muitos não chegam a gerar processos, mas isso não significa que não existiu o crime”, diz Hazeu.

Um dos objetivos do Ministério da Justiça é criar um sistema de informação único, capaz de sistematizar os dados sobre perfil das vítimas, detalhes sobre as rotas e outras informações registradas por órgãos governamentais e não governamentais.

“Hoje, os dados disponíveis são insuficientes e não há análise”, lamenta Anália Belisa Ribeiro, psicóloga e coordenadora do NETP de São Paulo. O país também enfrenta problemas na adaptação da legislação. Faltam mecanismos para responsabilizar e punir aliciadores, traficantes e exploradores. E as ações de combate muitas vezes apresentam defasagem em relação às inovações que os criminosos imprimem a suas práticas, como a criação de novas rotas, o uso de tecnologia para aliciamento das vítimas e a associação com outras atividades ilegais, como lavagem de dinheiro e tráfico de drogas.

Em junho, o Departamento de Estado americano divulgou um relatório em que classificava as práticas dos países em relação à resolução do problema. O Brasil está na lista daqueles que não cumprem totalmente os requisitos para a eliminação do tráfico, mas vêm desenvolvendo esforços significativos para tal.

Questão de gênero

Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), mulheres e adolescentes do sexo feminino representam 80% das vítimas desse comércio ilegal. Desse total, 79% são traficadas para fins sexuais, 18% para trabalhos forçados e o restante para outras formas de exploração. As mais vulneráveis ao aliciamento pertencem às classes sociais mais baixas, têm poucas opções econômicas e apresentam baixos índices de escolaridade. O relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) divulgado em junho deste ano mostra que o tráfico sexual cresceu 20% nos últimos seis anos no Brasil, que se tornou o país da América do Sul que mais trafica mulheres para a Europa. Ainda segundo o documento, a maioria das vítimas são meninas de regiões pobres de estados do norte do país, principalmente Amazonas, Pará, Roraima e Amapá, que são enviadas para Espanha, Itália, Portugal e França.

Na opinião do pesquisador Marcel Hazeu, a solução é atacar as causas que incitam o fenômeno, desenvolvendo programas de apoio familiar e políticas contra a violência doméstica, além de promover estímulos para ampliar a empregabilidade e a escolaridade.

A psicóloga Anália Ribeiro lembra ainda que o trabalho de conscientização é também um desafio, porque muitas vezes é necessário sensibilizar as próprias vítimas para que enxerguem sua condição. “Muitas não têm noção de que estão sendo exploradas, porque são aliciadas por pessoas conhecidas, com quem têm vínculos afetivos. Elas acham que têm de pagar um preço diante da perspectiva de melhorias no futuro. O objetivo é conseguir interditar o ciclo da rede e evitar que a pessoa caia de novo na exploração”, diz ela.

A pesquisadora Maria Lúcia Leal, da Universidade de Brasília, ressalva, por outro lado, que o tema do tráfico ainda é abordado de forma preconceituosa. Segundo ela, é comum achar que toda prostituta brasileira no exterior é explorada. “Existem aquelas que estão no mercado do sexo por opção”, afirma.

Cooperação internacional

Considerando que o tráfico de pessoas não se limita às fronteiras dos países, o crime somente pode ser enfrentado por meio da cooperação internacional. “O tráfico interno é problema do país em que acontece, mas quando o fenômeno é internacional não adianta apenas um tratar da questão, porque há, pelo menos, dois envolvidos. O crime organizado é muito articulado, por isso é preciso criar uma rede semelhante à dele para combatê-lo”, esclarece Adriana Maia, especialista em cooperação técnica, no que respeita ao tráfico de pessoas, do UNODC no Brasil. O país tem acordos com Bélgica, Itália, Espanha e Portugal para desenvolver estratégias conjuntas, como a implementação de campanhas, ações de conscientização de autoridades públicas e da sociedade, investigação e prisão de criminosos.

“A Polícia Federal recorre ao levantamento de dados em outros países, além de contar com a cooperação de órgãos governamentais estrangeiros para a investigação e o acompanhamento de casos”, explica a delegada Paula Morales. Entre os principais parceiros da Polícia Federal no combate a esse crime estão a Europol e a Interpol. Apesar de o governo federal ter adotado a política contra o tráfico apenas em 2006, a Polícia Federal atua contra esse crime desde 1990. No âmbito do Mercosul, existe um grupo de trabalho, organizado pelos governos, que promove o desenvolvimento de ações regionais para a promoção de assistência às vítimas nesses países e para a organização de informações num sistema único de dados.

Além das iniciativas oficiais, organizações não governamentais e agências multilaterais agem de forma colaborativa, promovendo a troca de experiências desenvolvidas localmente. O trabalho da ONG paraense Sodireitos é um exemplo. Desde 2006, atende vítimas e seus familiares e desenvolve projetos de prevenção em bairros pobres de Belém. Para investigar o paradeiro de uma potencial vítima de tráfico, a organização aciona a Polícia Federal, embaixadas, entidades da sociedade civil e outros órgãos do país de destino da pessoa procurada. Uma vez resgatada, a vítima recebe assistência social e psicológica.

Ações locais

De acordo com Adriana Maia, um dos efeitos positivos do plano nacional foi o estímulo à formulação de políticas locais para o enfrentamento do problema. Os governos estaduais passaram a incluir a questão em suas agendas. São Paulo e Pernambuco estão elaborando planos, enquanto o Pará aguarda um decreto para implementar o seu.

É também no âmbito estadual que os NETPs, formados por órgãos públicos e entidades da sociedade civil, empreendem grande parte das ações de prevenção, repressão e atendimento às vítimas. Atualmente, existem sete dessas entidades no Brasil, sediadas em São Paulo, Pernambuco, Pará, Ceará, Goiás, Bahia e Rio de Janeiro, lugares em que está registrada a maioria das ocorrências de tráfico de pessoas.

Desde 2004, o NETP de São Paulo atendeu 600 denúncias. O procedimento envolve o acolhimento da vítima por uma equipe multidisciplinar e, a partir daí, o encaminhamento aos ministérios públicos estadual ou federal, que cuidam dos processos de responsabilização dos culpados. Pessoas ameaçadas são abrigadas em sigilo pelo Programa de Proteção às Testemunhas (Provita) ou pelo Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), especialmente quando elas cooperam com a polícia na investigação do caso.

Se um imigrante traficado para o Brasil deseja permanecer aqui, recebe abrigo. Diversos órgãos são acionados para que propiciem sua integração social, por meio de assistência à saúde, formação para atividade laboral, ajuda de custo e educação para os filhos. Se, em vez disso, preferir voltar para a terra natal, o Ministério da Justiça e a Organização Internacional para as Migrações custeiam o retorno. Além disso, há o acompanhamento da pessoa por mais seis meses no país de origem. “Antes da implementação do plano nacional, quando a Polícia Federal recolhia as vítimas após uma operação, não se sabia o que fazer com elas. Hoje existe uma cadeia de atendimento”, afirma a delegada Paula Morales.

Adriana, do UNODC, destaca ainda a atuação dos municípios por meio do envolvimento das prefeituras, polícias e ONGs. Um exemplo disso é a iniciativa dos postos avançados instalados nos principais aeroportos brasileiros, que agregam os esforços do poder público e da sociedade civil local. Esses postos são centrais de atendimento e de informação e trabalham em parceria com os núcleos estaduais para assistência às vítimas. O objetivo é acolher pessoas deportadas e orientar os que vão embarcar quanto aos riscos de uma viagem de caráter duvidoso.

“Fazemos atendimentos voluntários desde 1998 nos aeroportos. Esse modelo de trabalho partiu da sociedade civil e, agora, está sendo disseminado como política de governo”, comemora Dalila Figueiredo, presidente da Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad), ONG que atua no posto avançado do Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP).

Legislação conflituosa

De acordo com Alexia Taveau, especialista em tráfico de pessoas do UNODC de Viena, nos últimos dois anos 80% dos 155 países analisados pela ONU adotaram algum tipo de lei voltada especificamente para o combate a esse crime.

Em 2009, segundo relatório do Departamento de Estado americano, foram instaurados mais de 4 mil processos por tráfico de pessoas no mundo todo. Desse total, 335 se relacionavam a casos de trabalho forçado. Paralelamente, foram identificadas mais de 49 mil vítimas no mesmo período.

“O assunto se tornou global e, paulatinamente, é incluído na agenda dos países. A iniciativa se dá principalmente pela produção de leis específicas”, avalia Adriana Maia. O mecanismo jurídico é importante, pois é com ele que se criam oportunidades para capacitar autoridades públicas sobre o tema. “Ainda hoje há juízes que não conseguem reconhecer o crime e, por isso, não punem os responsáveis devidamente”, diz a especialista.

Em 2005, o Código Penal brasileiro sofreu uma adaptação. Foram introduzidos os artigos antitráfico 231 e 231-A. Contudo, eles ainda se restringem aos casos de prostituição. Apesar de a legislação caracterizar o trabalho forçado e a remoção ilegal de órgãos como práticas criminosas, eles não estão vinculados diretamente à atividade do tráfico de pessoas. “Por causa disso, o entendimento jurídico desse crime no Brasil continua bastante limitado e altamente controvertido”, explica Anália Ribeiro, coordenadora do NETP-SP.

 

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