Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Pelas trilhas da cultura e inteligência

Morte do crítico Wilson Martins enfraquece intelectualidade brasileira

CECILIA PRADA


A principal obra de Wilson Martins
Foto: Reprodução

Com o falecimento de Wilson Martins, ocorrido em 30 de janeiro deste ano em Curitiba, desfalcou-se a intelectualidade brasileira de um dos mais constantes, equilibrados, eruditos críticos literários que já tivemos, em toda a nossa história. E certamente é pouco, para sua erudição, para o legado de suas obras, classificá-lo meramente como “crítico literário” – mesmo porque a categoria, no ecletismo de nossas tendências literárias de hoje, rareia: ou temos a crítica universitária, especializada, fechada e em grande parte excessivamente ideologizada, ou meros resenhistas descompromissados e improvisados, sem nenhum propósito mais sério de avaliação e na quase totalidade das vezes empenhados em sustentar apenas o marketing editorial.

Wilson Martins foi um dos últimos pensadores que, partindo embora da literatura, avançou sua reflexão por outros campos culturais, aprofundando o viés sociológico e filosófico, para nos dar elementos de entendimento da nossa nacionalidade, de nossa história, de nosso estar-no-mundo enquanto cidadãos brasileiros e latino-americanos.

Nascido em 1921 em São Paulo, formou-se em direito, mas, após concluir um curso de especialização literária em Paris, passou a dedicar-se exclusivamente à literatura, na crítica e no magistério. Foi professor de literatura francesa na Universidade Federal do Paraná de 1952 a 1962, ano em que partiu para os Estados Unidos para atuar como professor visitante na Universidade de Kansas e depois como professor associado na de Wisconsin-Madison. Tornou-se depois professor de Literatura Brasileira da Universidade de Nova York, onde permaneceu de 1965 a 1991, aposentando-se em 1992 e sendo homenageado com o título de professor emérito. Foi também jornalista, exercendo durante 25 anos a crítica literária em “O Estado de S. Paulo” e no “Jornal do Brasil”. Morreu aos 88 anos, deixando vários livros de crítica – alguns deles foram traduzidos para o inglês, como A Ideia Modernista, de 1965. Destacam-se ainda A Palavra Escrita, A Crítica Literária no Brasil e principalmente a colossal História da Inteligência Brasileira, lançada pela Cultrix entre os anos de 1976 e 1979.

Recebeu Wilson Martins durante sua carreira prêmios importantes, como o Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, por duas vezes, e o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto de sua obra, em 2002. Ele próprio se definia como “o último crítico literário em atividade” e seguiu, em toda a sua carreira, um cânone comparativo que foi duramente combatido como “politicamente incorreto”. Segundo diz um dos analistas de sua obra, o jornalista Luiz Zanin Oricchio, alvo constante da crítica de Martins foram os multiculturalistas e relativistas que colocam todas as obras em pé de igualdade, numa ânsia de massificação populista. A qualidade da obra, e somente ela, seria para o notável crítico e professor o critério único, indispensável para se chegar à “verdade” estética. Essa independência de pensamento que o fez trilhar caminho individual, em oposição ao engajamento ideológico obrigatório que caracterizou, na segunda metade do século passado, a vida intelectual da América Latina, fez com que até o noticiário de seu passamento fosse escamoteado – ainda – pela maior parte de nossa grande imprensa.

Como, porém, neste início de século 21 em toda parte ventos mais arejados sopram, em âmbito mundial e também nacional, são também numerosas as vozes de intelectuais que agora começam a se levantar para denunciar os simplistas instrumentos de patrulhamento do passado e para tentar configurar nossa literatura dentro de moldes adequados à complexidade do mundo contemporâneo.

Incursão pela história

Para situar bem a obra de Wilson Martins, para compreender melhor seus parâmetros críticos e toda a orientação de sua carreira, devemos antes fazer uma breve excursão pela nossa história literária, no século 19 e no início do 20.

Na qualidade de país colonizado e mantido sob o jugo da monarquia portuguesa, o Brasil somente pôde ter uma literatura dotada de caráter nacional definido após a Independência – nos séculos anteriores a mera existência de livros era escassa, quase inexistente entre nós, e as bibliotecas eram conservadas sob sete chaves principalmente em conventos e órgãos institucionais da Coroa portuguesa. Nosso primeiro jornal, o “Correio Braziliense”, data de 1808 e foi publicado em inglês e em português em Londres, com periodicidade mensal, graças aos esforços de Hipólito José da Costa, que o escrevia sozinho. Nesse mesmo ano, a instalação da corte portuguesa no Rio de Janeiro permitiu que a Imprensa Régia aqui estabelecesse também sua oficina – no entanto, o veículo de comunicação dela saído, a “Gazeta do Rio de Janeiro”, pouco ou nada significava em termos jornalísticos e culturais, já que se limitava a publicar documentos oficiais ou artigos previamente encomendados e autorizados pela pesada censura imperial.

Somente após a Independência tiveram início as manifestações autóctones de nossa literatura. Com o aumento das publicações, começaram também a aparecer os primeiros comentários sobre as obras lançadas. Devemos ter em conta, porém, que a crítica artística e teatral surgiu entre nós muito antes da literária. Machado de Assis (1839-1908), por exemplo, aos 21 anos já era crítico e até mesmo censor teatral do jornal “Diário do Rio de Janeiro” – bem antes de começar a planejar suas obras de ficção.

Com a geração intelectual de 1870 – considerada a mais representativa da nossa cultura no século 19 –, a crítica literária pôde se desenvolver de maneira mais ou menos regular, por meio de revistas e jornais, em uma virada antirromântica que se definiu em todos os níveis, favorecendo tendências realistas e depois naturalistas na ficção, parnasianas na poesia, positivistas e materialistas em filosofia. Com Tobias Barreto (1839-1889) e a Escola de Recife foi também sedimentado um ideário filosófico que sobreviveria até o início do século 20. Temos então, nesse período, duas grandes figuras da crítica literária – Sílvio Romero (1851-1914) e José Veríssimo (1857-1916). Segundo Alfredo Bosi, os dois gigantes apresentam caráter bem diferenciado em suas obras, e pontos de vista não coincidentes. A crítica do primeiro foi de caráter sociológico e propunha “uma abordagem da obra literária em função das realidades antropológicas e sociais, vistas como fatos primeiros e inarredáveis”, baseada nas obras filosóficas de caráter cientificista e positivista que pregavam o determinismo biossociológico de Hippolyte-Adolphe Taine, o evolucionismo, a ideia do progresso. Sílvio Romero permanece como dono de uma paixão inteligente pelo homem brasileiro – diz ainda Bosi – e pode ser visto como pedra de toque de uma linhagem de pesquisadores e críticos que se estenderia até nossos dias.

Orientação bem diversa teria o paraense José Veríssimo, que enfatizava o caráter estético das obras literárias e tinha um ponto de vista que poderia ser definido como “humanista”. Como nos diz na introdução de sua História da Literatura Brasileira, publicada postumamente em 1916: “Literatura é arte literária. Somente o escrito com o propósito ou a intuição dessa arte, isto é, com os artifícios de invenção e de composição que a constituem, é, a meu ver, literatura”. Ainda no século 19, destacaram-se também, no campo da crítica literária, Nestor Vítor (1868-1932), João Ribeiro (1860-1934) e Araripe Junior (1848-1911).

Com a chegada do novo século, outros nomes importantes surgiram no Brasil, homens eruditos, de formação intelectual europeia, que alargariam os horizontes do pensamento nacional e serviriam como orientadores das levas de ficcionistas e poetas que iam aparecendo nas primeiras décadas do século 20, quer mantendo-se dentro de uma corrente determinada – como os católicos, liderados por Alceu de Amoroso Lima (1893-1983) –, quer ligados ao desenvolvimento do modernismo pós-1922, como Mário de Andrade (1893-1945) e Oswald de Andrade (1890-1954).

Antecessores de Wilson Martins foram, em especial, Sérgio Milliet (1898-1966), que colocou à disposição da cultura brasileira seu bem construído acervo de saber literário, filosófico e artístico, e Álvaro Lins (1912-1970), que exerceu a profissão como uma espécie de leitor seletivo da produção contemporânea, “uma espécie de bibliotecário que arquivava nos anais da história um conjunto válido de títulos” – como diz, em artigo sobre Wilson Martins e seus mestres, o escritor Miguel Sanches Neto no jornal literário “Rascunho”, de Curitiba, atualmente o mais importante de seu gênero no país.

Iniciando sua carreira de crítico literário em 1942, Wilson Martins demonstrou desde logo uma personalidade forte e convicta, capaz de resistir às novas tendências que procuraram, e acabaram por conseguir, engessar a espontaneidade jornalística na rigorosa camisa de força da crítica processada apenas pela universidade, no mais das vezes irremediavelmente atrelada às correntes ideológicas da esquerda marxista e lukacsiana.

O maior leitor da cultura nacional

Consagrou-se Wilson Martins exclusivamente à crítica. Não era absolutamente o que em geral se diz dos críticos, “um escritor frustrado”. Nunca quis ser poeta ou ficcionista. Nunca se preocupou em criar seguidores, atrelar-se a correntes, e apesar de sua longa carreira no magistério universitário – que lhe permitia a sobrevivência – queria apenas ler o maior número de livros e autores, e dar sua opinião livre e articulada sobre eles. Dizia-se um autodidata, “educado pelo sistema antigo, de rigor, disciplina e obediência, sem excessos de complacência” e reconhecia como seu papel – no dizer ainda de Sanches Neto – “salvar da produção cada vez mais massificada um coletivo de obras que se destacaram”. Imbuído dessa missão autoimposta, estabelecia um confronto entre a tradição, que tão bem conhecia, e os contemporâneos que já haviam atingido a categoria de mestres. Acusado inúmeras vezes de retrógrado, ultrapassado, de superficial e até de obscurantista, manteve-se inabalável em seus propósitos – aliando sua atividade semanal nos jornais à paciente e colossal dedicação com que ia juntando material para a sua História da Inteligência Brasileira – onde acompanha a produção editorial do país ou sobre o país de 1500 a 1960.

Ecoando o artigo de Sanches Neto, outro autor que escreve no “Rascunho”, Rodrigo Gurgel, aprofunda as razões da opera magna de Martins não ter tido até hoje a repercussão que lhe seria plenamente devida, e não hesita em dizer, em “Os Pecados de Wilson Martins”, que, a seu ver, eles seriam pelo menos três: o de não ser um crítico estrangeiro, em país que valoriza até os reles ouropéis que nos vêm de fora; não ser de esquerda, não rezar pelo catecismo marxista; e ser um vencedor, por elaborar “com altivez e independência uma obra que será lida, relida e analisada nos próximos séculos”. Sua personalidade representou certamente uma ameaça às igrejinhas nacionais, às manadas de medíocres que infestam nosso panorama cultural – é o que diz, com todas as letras do alfabeto, Rodrigo Gurgel. E o fato de tanto ele como o citado Sanches Neto terem podido expressar suas opiniões tão francamente em “Rascunho” prova que nem tudo é como dantes no quartel de Abrantes: a abertura e a transparência prevalecem, na complexidade deste início de século, sobre o fechamento e a mediocridade que censurava e ainda de certo modo censura os textos que ousam se mostrar dissidentes.

Em artigo publicado no site “Observatório da Imprensa” de 2 de fevereiro de 2010, Gabriel Perissé também expressava sobre o recém-falecido Martins a mesma opinião, dizendo que não se deveria dizer, em relação a ele e a outros mortos ilustres, “perdemos um grande...”, mas sim “ganhamos finalmente esse autor em sua plenitude possível”, já que “o ponto final biográfico é a chance de encontrarmos sua obra completa, consumada”.

Dotada de coragem como sempre, e de uma sinceridade a toda prova, levantou-se ainda a voz do escritor Deonísio da Silva, docente da Universidade Federal de São Carlos, em abril deste ano, também no “Observatório da Imprensa”: ele teve a ousadia de investir abertamente contra uma professora considerada de altíssimo nível, Flora Süssekind, por ter criticado Wilson Martins post-mortem e estendido sua crítica até mesmo aos que o elogiavam, como Alcir Pécora e Miguel Sanches Neto. Deonísio – uma espécie de enfant terrible que não hesita em apontar os reis nus – avança até contra um tema tabu nos meios universitários, ao dizer: “[Wilson Martins] fez a história da literatura brasileira de 1500 a 2009, acompanhando os lançamentos e garimpando neles o que achava relevante. Antonio Candido data sua história de nossas letras na segunda metade do século 18 e vem até 1930. E nas universidades só ele é citado. Há décadas. Wilson Martins integra a multidão de esquecidos para que poucos possam aparecer louvados pelos mesmos de sempre”.

Colosso de erudição

O leitor que se interesse pela obra colossal do mestre terá uma desilusão ao procurá-la nas livrarias – poderá constatar o descaso proposital em que ela e o autor foram lançados nos últimos decênios, pois a História da Inteligência Brasileira, completamente esgotada há muito, é encontrada apenas em sebos, onde se verifica que só conseguiu até hoje ser publicada por duas editoras menores: a Cultrix, de 1976 a 1979, e a T. A. Queiroz, de 1992 a 1996.

É interessante, portanto, que se conheça antecipadamente o tesouro de erudição nela contido, em seus sete volumes. Na apresentação geral da coleção pela Cultrix, os editores ressaltavam a metodologia do autor em “estudar simultaneamente, em seu momento próprio, as obras literárias, científicas e artísticas, os fatos exteriores que possam ter influído na orientação ou natureza das ideias e os debates políticos, religiosos, sociais e doutrinários”. Objetivo, portanto, ampliado e ousado, que foi atingido plenamente pela exposição empreendida pelo autor praticamente ano a ano de nossa história pátria, e focalizada sobre obras e temas, de preferência à análise de autores e personalidades.

No primeiro volume, que abrange o período de 1550 a 1794, Martins, dispensando prolegômenos, entra diretamente no tema, escolhendo o ano de 1550 (em que o padre Leonardo Nunes inicia os estudos rudimentares de latim no colégio jesuíta em São Vicente) como marco inicial da vida intelectual do país – situando a esta, por conseguinte, como concebida claramente dentro de “um plano instintivo de conquista espiritual, refletido na concomitância com que se instalam os colégios e na sua estratégica disseminação geográfica”. Analisa com extrema sutileza o “renascentismo jesuítico” que iria dialeticamente marcar toda a vida cultural da colônia, estabelecida, como diz, “sob a égide do Concílio de Trento” – realizado de 1545 a 1563, com o triunfo da Contrarreforma. Em 80 pequenos capítulos, o autor nos dá um panorama mais do que detalhado, surpreendente, que nos leva até os tempos da Inconfidência Mineira e do arcadismo, para culminar no aparecimento do moderno homo oeconomicus – a ascensão do brasileiro, e “dos mulatos livres e assalariados que prenunciam uma sociedade em que a consciência econômica, como fator mental, faz a sua entrada”.

Nos demais volumes, a mesma metodologia nos possibilita seguir seu imensamente erudito roteiro (que abrange os domínios da ciência, da política, da história, além dos da literatura e das artes): o volume 2, de 1794 a 1855, traz a emergência da nacionalidade e o período do romantismo; o volume 3, de 1855 a 1877, vai até a geração de 1870 e a Escola de Recife, de relevo ímpar na história do pensamento nacional; o volume 4, de 1877 a 1896, mostra o alvorecer da República e o findar do século 19; no volume 5, de 1897 a 1914, acompanhamos as convulsões mundiais e o entrechoque dos ismos; no volume 6, de 1915 a 1933, os conflitos ideológicos esboçados em escala global e os fatores que desencadeariam logo mais a 2ª Guerra Mundial. A edição original da Cultrix termina com o sexto volume, mas a de T. A. Queiroz inclui o sétimo e último, que vai de 1933 a 1960.

Evidente que, em tempos como o nosso, em que numerosas obras, mais antigas e até mais esquecidas, saem das gavetas dos arquivos para bem apresentadas e prestigiadas reedições, a inteligência brasileira está a reclamar de nossas importantes e florescentes empresas livreiras uma última edição, devidamente valorizada, da obra colossal de Wilson Martins – que, repetindo as palavras de Rodrigo Gurgel, permanecerá certamente nas estantes de nossas universidades nos séculos futuros, bem como nos sites de e-books, como referência fundamental para todos os que se ocupam das manifestações culturais da nacionalidade.

 

Comente

Assine