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Por que morrem nossos jornais?

Especialistas procuram descobrir as verdadeiras causas do desaparecimento de periódicos

CELIA DEMARCHI


Hipólito José da Costa: pioneiro
Foto: Reprodução

Em pouco mais de um ano, o país assistiu ao naufrágio de dois jornais memoráveis: a “Gazeta Mercantil” em maio de 2009 e o “Jornal do Brasil” em agosto de 2010 (do qual persiste apenas uma versão online). Os dois veículos começaram a sangrar bem antes de sua morte, de certa forma, anunciada: acumulavam dívidas fiscais e trabalhistas colossais, que terminaram por inviabilizá-los como negócio, para decepção do empresário baiano Nelson Tanure, que os comprara no começo dos anos 2000.

A “Gazeta Mercantil” tinha quase 90 anos. Surgiu como boletim quando a economia paulista ganhava importância, em 1920, e se robusteceu a partir do “milagre econômico” do regime militar, na década de 1970. O “Jornal do Brasil”, inicialmente monarquista, foi criado em 1891 e inovou ao montar uma estrutura empresarial e distribuir os exemplares por meio de carroças, além de contar com correspondentes estrangeiros, como Eça de Queirós.

Esses periódicos repetiram a trajetória de diversos jornais brasileiros que brilharam por muitos anos, mas acabaram falindo. Não há, porém, como analisar em profundidade por que os jornais nascem e morrem no Brasil, simplesmente porque “ainda não estudamos esse assunto”, de acordo com José Marques de Melo, professor emérito da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e diretor da Cátedra Unesco da Universidade Metodista de São Paulo.

Há obras que tentam elucidar o tema, como História da Imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodré, além de estudiosos que trabalharam ou trabalham para desvendá-lo, como Esther Bertoletti, que a partir dos anos 1970 se dedicou, pela Biblioteca Nacional, ao Plano Nacional de Microfilmagem dos Periódicos Brasileiros, percorrendo o país em busca de títulos e coleções num périplo comparável ao do historiador pernambucano Alfredo de Carvalho (1870-1916), quase cem anos antes.

O resultado da extenuante pesquisa deste último acabou se perdendo e só recentemente ela foi redescoberta, em Pernambuco, segundo Marques de Melo: “O Brasil é ciclotímico, só dá importância a novidades. Imprensa aqui é considerada coisa velha”.

Personagem controvertido

O primeiro periódico brasileiro, o “Correio Braziliense”, surgiu em 1808, coincidindo com a chegada de dom João VI. Naquele ano, quando a prensa de Johannes Gutenberg já tinha bem mais de três séculos, a primeira publicação europeia com periodicidade, lançada em Antuérpia em 1602, faria 206 anos.

O “Correio Braziliense” era editado e impresso na Inglaterra por Hipólito José da Costa, brasileiro que se refugiara em Londres, fugindo dos cárceres da Inquisição em Portugal. Segundo Marques de Melo, Costa foi amado (“Barbosa Lima Sobrinho dizia haver somente ‘indícios’ sobre como ele se mantinha em Londres”) e odiado (“Fernando Segismundo o chama de ‘jornalista venal’ ”).

O jornal era lido na capital inglesa por portugueses que escaparam das tropas de Napoleão e por comerciantes ingleses que mantinham correspondentes no Brasil e em Portugal. Na colônia tinha um público mais amplo, apesar da censura, que de forma aparentemente contraditória prejudicava sua circulação, já que o periódico era financiado, ao menos em parte, pelo governo imperial.

Além de pioneiro na imprensa, Hipólito da Costa teria introduzido outra novidade, porém nada abonadora: o esquema que, na visão de Marques de Melo, seria a primeira versão do “mensalão”. Costa era bancado por dom João VI e pela Coroa inglesa, à qual Portugal teve de se subordinar após a invasão de seu território pela França, e em tese defendia os interesses comerciais dos dois impérios. Na opinião de Marques de Melo, Costa terminou por consolidar o “mensalão” quando se tornou funcionário da embaixada brasileira na Inglaterra depois da morte do periódico: “O jornal fecha, mas ele é recompensado”.

Segundo o professor, de todo modo, o “Correio Braziliense” foi um dos grandes instrumentos de civilização do Brasil em sua época, porque trazia informações variadas sobre a Europa para a elite brasileira. Inclusive chegou a publicar, traduzido para o português, o tratado Areopagítica, de John Milton, clássico em defesa da liberdade de pensamento, editado originalmente em 1644, na Inglaterra.

Crítico ácido de Hipólito da Costa, Werneck Sodré reconhece seus méritos, ao afirmar que o “Correio Braziliense” representou “tarefa gigantesca”, até porque o jornalista provavelmente o redigia e editava sozinho. Mensal, com 96 a 150 páginas e seis seções (“Política”, “Comércio e Artes”, “Literatura e Ciências”, “Miscelânea”, “Reflexões” e “Correspondência”), o periódico, sintomaticamente, circulou pela última vez apenas três meses após dom Pedro I declarar a Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822.

Segundo Werneck Sodré, a Independência foi fatal para o “Correio Braziliense”, que vinha se enfraquecendo ainda por outros motivos, entre os quais o surgimento de concorrência de veículos mais informativos e menos doutrinários. A classe dominante, a seu ver, acabou por aceitar a Independência, que Hipólito não defendeu: “E, por isso mesmo, o ‘Correio Braziliense’ perdeu a razão de existir”.

Já o “jeitinho” inaugurado por Hipólito da Costa teria prosseguimento e garantiria boa parte dos futuros periódicos. De acordo com Marques de Melo, o presidente Campos Salles (1898-1902) estabeleceu a “verba secreta”, que distribuía a todos os veículos, tática adotada por grande parte dos governos que vieram depois. “A imprensa depende de um poder. No capitalismo de fato, de quem consome seus produtos.”

As empresas capitalistas de mídia, no entanto, demoraram a aflorar no Brasil e, segundo o professor, ainda são poucas, contando-se entre elas o Grupo Folha, iniciado em 1921 com o lançamento da “Folha da Noite”, o Grupo Estado, cujas origens remontam ao Segundo Reinado, quando foi lançado o jornal “A Província de São Paulo”, e que começou amparado nos cafeicultores paulistas, e a Editora Abril, primeira a se desenvolver nesses moldes, nos anos 1950, com venda avulsa de revistas.

Negócio entre amigos

Ainda na década de 1950 surgia um dos jornais mais populares e bem-sucedidos que já circularam no Brasil, totalmente atrelado ao governo: “Última Hora”. Em campanha para voltar pela via do voto à presidência da República, Getúlio Vargas não tinha o apoio da imprensa, àquela altura já bastante concentrada nas mãos de umas poucas famílias e grandes empresas, como os Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Entra em cena, então, mais um personagem polêmico da história da mídia: Samuel Wainer.

Judeu nascido em 1910 na Bessarábia, no antigo principado da Moldávia, na Europa Oriental, Wainer chegara ao Brasil aos 2 anos. Jornalista ousado, dirigia uma revista combativa durante o Estado Novo, a “Diretrizes”. Conforme escreve Antonio Hohlfeldt no volume 2 da coleção Imprensa Brasileira – Personagens que Fizeram História (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005), Wainer era repórter dos Diários Associados quando entrevistou Getúlio Vargas em sua fazenda em São Borja, no Rio Grande do Sul, em 1950.

A entrevista, de enorme repercussão, lhe valeria uma amizade especial com o então candidato e um posterior acordo para que lançasse o “Última Hora” (cuja primeira edição circulou em junho de 1951), ancorado em empréstimos generosos de instituições oficiais, benesses que eram concedidas também, e até mais fartamente, segundo Werneck Sodré, aos demais veículos, em especial “O Globo” e as organizações de Chateaubriand.

O “Última Hora” embutia a receita do jornalismo populista, ou sensacionalista, que Wainer havia aprendido a fazer nos Estados Unidos, onde fora correspondente. “Foi revolucionário, era feito por jornalistas muito talentosos”, diz Marques de Melo. Escreveram para o diário, por exemplo, Tarso de Castro, Sérgio Porto, Nélson Rodrigues, Ivan Lessa, Paulo Francis, Di Cavalcanti e Adalgisa Nery.

O jornal teve um sucesso estrondoso, mas foi também um exemplo contemporâneo da fórmula que viabilizou e quebrou o primeiro periódico do país, o “Correio Braziliense”. O “Última Hora” nasceu e prosperou regado a recursos públicos e morreu com a mudança do regime que apoiava, golpeado pelos militares em 1964 (sobrou somente a edição carioca, que agonizou até 1972, quando Wainer a vendeu ao “Correio da Manhã”). “Nas grandes rupturas, os jornais se adaptam ou acabam”, diz Marques de Melo. “O ‘Última Hora’ não apoiou e morreu”.

A grande reportagem

Muito popular também à época do “Última Hora”, a revista “O Cruzeiro” surgiu bem antes, em 1928. Considerada por alguns estudiosos como a melhor revista ilustrada brasileira do século 20, foi fundada pelo jornalista e escritor português Carlos Malheiros Dias e era editada pelos Diários Associados, de Chateaubriand.

Concebida para servir a interesses ideológicos e políticos e mostrar o Brasil como nação hegemônica, de acordo com interpretação de Leoni Serpa (A Máscara da Modernidade: A Mulher na Revista “O Cruzeiro”), a publicação se consolidou por meio da mesma via percorrida antes pelo “Correio Braziliense”, pelo “Última Hora” e tantos outros ainda hoje: empréstimos e anúncios do governo. Porém, embora tenha apoiado Vargas em 1930 na conquista do poder, nos anos 1950 Assis Chateaubriand se colocou na oposição, contribuindo para sua derrocada.

“O Cruzeiro” foi um tremendo sucesso. Inovou em padrão gráfico e criou novos gêneros de leitura, alargando o espectro dos jornais diários e revistas semanais ao trazer na mesma edição matérias políticas palpitantes, amenidades de Hollywood, dicas de saúde e crônicas escritas por expoentes da literatura nacional, como Rachel de Queiroz.

Uma de suas características mais marcantes foi a valorização da fotografia como parte fundamental da informação: fotos para ler. Na edição de 1º de novembro de 1930, a reportagem sobre a revolução comandada por Vargas contra Washington Luís foi ilustrada com 27 fotos, observa Marialva Barbosa em seu estudo “‘O Cruzeiro’: Uma Revista Síntese de uma Época da História da Imprensa Brasileira”.

No começo dos anos 1940, “O Cruzeiro” cravou ainda outra marca no jornalismo brasileiro, com grandes reportagens de caráter investigativo. Uma delas, “Enfrentando os Xavantes”, de 1944, mostrava índios atacando um avião com flechas e bordunas. Editada em 18 páginas com fotos, acabou reproduzida em 18 países, numa repercussão típica do jornalismo sensacionalista.

A distribuição da revista era competente, pois ela chegava a todos os tipos de leitores, mesmo em pequenos municípios: “Na minha cidade, Santana do Ipanema, em Alagoas, o que mais estarreceu foi uma capa com a Carmen Miranda morta, de batom”, diz Marques de Melo.

Chateaubriand teria participado da concepção do golpe de 1964, que apoiou, como fez a grande imprensa. Em seguida, porém, passou a criticar o governo militar, ganhando consequentemente sua antipatia. Foi o início da decadência de “O Cruzeiro” e dos Diários Associados, empresa mal administrada e endividada.

A própria televisão (inclusive a Globo, a partir de 1965), além de novas revistas (como “Manchete” e “Fatos & Fotos”), teria ajudado a apagar o brilho de “O Cruzeiro”, que expirou juntamente com os demais veículos do grupo, na década de 1970 – sua última edição circulou em julho de 1975. Na opinião de Marques de Melo, contudo, a principal razão de sua morte foi outra: “Chateaubriand resolveu expandir ‘O Cruzeiro’ para a América Latina, numa tentativa de concorrer com as revistas americanas ‘Time’ e ‘Life’. Os americanos se uniram para matar a revista. Então, investiram na TV Globo”.

Pequenos notáveis

Se na linha do tempo a ascensão e a queda das publicações da grande imprensa aparecem quase sempre relacionadas a momentos políticos, o mesmo acontece com a chamada imprensa nanica, cujos veículos surgem justamente quando se torna urgente contestar, e não legitimar, o poder instituído – e acabam quando tal poder é destituído. Assim, no país, eles proliferam periodicamente: “O Brasil é historicamente autoritário”, diz Marques de Melo, acrescentando que esse tipo de imprensa aparece quando o autoritarismo começa a se esgarçar. “Aí sua derrota se dá através da ironia”. Durante a ditadura militar iniciada em 1964, brotaram inúmeros veículos desse gênero, como “Pato Macho”, “Opinião”, “De Fato”, “Versus”, “Movimento”, “Coojornal”, “Politika”, “Grilo” e “Jornalivro”. O que mais se destacou, porém, foi “O Pasquim”, que circulou de 1969 a 1991. Quando fechou, estava moribundo havia vários anos – a ditadura, contra a qual se voltara de modo irreverente, caíra em 1985.

Em seus bons tempos (significativamente, os anos mais duros da ditadura e da censura), “O Pasquim” chegou a vender 200 mil exemplares (caso da edição com a famosa entrevista de Leila Diniz). Já o último número do tabloide criado pelos geniais Tarso de Castro, Sérgio Jaguaribe (o cartunista Jaguar), Sérgio Cabral, Claudius e Carlos Prósperi circulou com apenas 3 mil exemplares. Nessa época já não estava por lá a maior parte de seus criadores nem dos grandes profissionais que se juntaram depois à equipe, como Henfil, Ziraldo, Millôr Fernandes, Carlos Leonam, Fortuna, Sérgio Augusto, Ivan Lessa, Paulo Francis e Fausto Wolff. Com esse time, o jornal suportou a censura, algumas apreensões, a prisão de toda a equipe em 1970, atentados a bomba a bancas de jornais que o distribuíam.

A receita de sobrevivência era a da imprensa nanica em geral. Com formato tabloide (daí o termo “nanica”), baixa rentabilidade e produção simplificada, demandava relativamente poucos anunciantes. Paolo Marconi, no livro A Censura Política na Imprensa Brasileira (Global Editora, 1980) assim se manifesta sobre a imprensa nanica: “[...] contestou o regime, não tanto com a ideologia, mas com a informação […] mostrou às outras camadas políticas ativas da população – estudantes, Igreja, sociedades de bairro – que jornal era coisa fácil de ser feita”.

Bernardo Kucinski, no volume 1 da coleção Imprensa Brasileira – Personagens que Fizeram História (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005), afirma que “os primeiros jornais alternativos nasceram pelo vazio deixado pelo desbaratamento da imprensa vinculada ao campo popular e pelo estreitamento do espaço crítico na grande imprensa”.

Tais circunstâncias ajudam a explicar por que a tiragem dos jornais impressos no Brasil caiu durante a ditadura, segundo Marques de Melo, depois de ter atingido o pico de 5 milhões de exemplares por dia nos anos 1950, quando a população era de menos de 70 milhões de habitantes. Hoje, segundo dados divulgados em julho pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC), circulam diariamente no país, que tem mais de 190 milhões de habitantes, apenas 4,25 milhões de exemplares. O professor lembra ainda que a tiragem diária de um único jornal japonês, o “Asahi Shimbun”, é de 12 milhões a 15 milhões de exemplares.

Por que isso acontece no Brasil? “Por falta de educação formal e por desinteresse do brasileiro. Mas também porque a imprensa não fala do que o leitor precisa ou deseja saber”, explica Marques de Melo, ressaltando: “ ‘O Cruzeiro’ e ‘Realidade’, por exemplo, contavam histórias sensacionais. O jornalismo existe por causa da curiosidade das pessoas.”


“Gazeta Mercantil”: dívidas astronômicas

Justamente após alcançar o maior faturamento de sua história, no ano 2000, a “Gazeta Mercantil” entrou em rota descendente, morrendo em 2009, depois de longa agonia. O jornal econômico, contudo, arrendado em 2003 à Companhia Brasileira de Multimídia (CBM) pela família Levy, não teria sido nocauteado pelos mesmos golpes que abalaram outros grupos de mídia na época: o estouro da bolha da internet, em que tinham apostado altos investimentos em dólar, cuja cotação disparou em 1999, inchando suas dívidas.

Na verdade, a “Gazeta Mercantil” teria sido uma das poucas empresas que ganhou dinheiro com a internet, por meio de parceria com a Portugal Telecom, firmada em junho de 2001, e se esfacelou por causa de sérios e antigos problemas de gestão, além de dívidas fiscais e trabalhistas astronômicas. Para piorar, não conseguiu enfrentar o surgimento de um concorrente em seu segmento, o “Valor Econômico”.

A “Gazeta Mercantil”, de todo modo, protagonizou uma história de sucesso, cujo período áureo começou em meados da década de 1970, em pleno “milagre econômico”, sob o comando do jornalista Roberto Müller Filho: “A Gazeta mostrou o crescimento da indústria e dos bancos e trouxe a burguesia para a cena”, diz ele em depoimento registrado por Maria Helena Tachinardi em seu livro Roberto Müller Filho – Intuição, Política e Jornalismo (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010).

 

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