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Uma legislação sem consenso

Nova lei de propriedade intelectual abre discussão sem fim

CARLOS JULIANO BARROS


Arte PB

Numa entrevista concedida em julho deste ano ao jornal “Tribuna do Norte”, sediado em Natal (RN), o compositor Pedro Mendes narra um episódio no mínimo inusitado. Certa vez, ao comemorar sua festa de aniversário em um bar da cidade, ele foi abordado por fiscais do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) que o teriam autuado por, curiosamente, cantar suas próprias canções. Criado no início da década de 1970, o Ecad é um órgão privado que reúne dez associações de profissionais ligados à música. Basicamente, sua missão é cobrar de emissoras de rádio e televisão, casas noturnas e até de consultórios dentários um valor pela veiculação pública das composições feitas pelos quase 250 mil artistas representados pela entidade. Em tese, toda vez que uma canção é reproduzida, o detentor do direito autoral faz jus a uma remuneração, pagamento esse que deveria ser repassado justamente pelo Ecad. No entanto, Pedro Mendes – que em 1987 gravou Linda Baby, considerada popularmente o hino da capital potiguar – garante que em mais de 20 anos jamais embolsou um centavo sequer pela reprodução da música.

Duramente criticado por compositores menos conhecidos, que acusam de pouco transparente o critério utilizado para a cobrança e o pagamento dos direitos autorais, mas defendido com unhas e dentes por músicos do chamado mainstream, o atual modelo de gestão do Ecad pode estar com os dias contados. Tudo porque o Ministério da Cultura (MinC) está propondo uma revisão da lei 9.610, de 1998, que rege atualmente os direitos autorais no país. A possibilidade de a entidade vir a ser fiscalizada pelo governo federal é uma das modificações que, se aprovadas pelo Congresso Nacional, vão alterar significativamente a forma como os brasileiros se relacionam não só com a música, mas com toda a produção cultural e intelectual feita no país. “O direito autoral tem uma importância muito grande na economia da cultura, perpassa toda a cadeia produtiva – da criação até o processo final de fruição e consumo. Ele está na base de uma movimentação que gira em torno de 7% do PIB”, afirma Rafael Oliveira, coordenador geral de Difusão de Direitos Autorais e Acesso à Cultura do MinC.

Desde dezembro de 2007, uma série de debates públicos vem sendo realizada para tratar do assunto e, entre os meses de junho e julho deste ano, um anteprojeto de lei concebido ao longo das discussões foi colocado para consulta pública na internet, a fim de receber sugestões. “É o processo mais interessante que está em curso no mundo de reforma legislativa nesse campo. Neste momento, existem tentativas de reforma na Argentina e no Canadá, que acabaram de começar. Recentemente, ocorreu uma mudança no Chile, mas a do Brasil é a mais promissora”, resume Pablo Ortellado, coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo (Gpopai-USP).

Como nem poderia deixar de ser, as alterações na lei de direitos autorais pretendem acompanhar o crescente uso da internet e o acelerado desenvolvimento das tecnologias digitais verificados nos últimos 15 anos. A legislação atualmente em vigor não permite, por exemplo, que o dono de um CD comprado legitimamente em uma loja transfira os arquivos de música para seu aparelho de MP3. Da mesma forma, proíbe a “cópia privada” sem fins comerciais, não permitindo a um estudante fazer a reprografia – o xerox – de um livro próprio, caso queira fazer anotações sem prejudicar o exemplar original. Além disso, impede até mesmo que professores exibam um filme em sala de aula sem pedir autorização a seus criadores, o que coloca na ilegalidade praticamente todos os profissionais da educação que utilizam obras audiovisuais como recurso pedagógico. De acordo com a proposta do MinC, todos esses usos – já totalmente consolidados no dia a dia dos brasileiros – deixariam de ser considerados irregulares.

“Nossa legislação é considerada uma das mais rígidas do mundo, aquém da de vários países. O que estamos fazendo é harmonizá-la com o ordenamento jurídico internacional, em nenhum momento diminuindo direitos, mas assegurando que usos justos possam estar devidamente assegurados”, defende Rafael Oliveira, do MinC. Para comprovar sua avaliação, ele cita uma pesquisa bastante recente feita pela ONG Consumers International, que comparou a legislação de 34 nações e apontou a brasileira como a sétima mais restritiva de todas. Além disso, segundo ele, a revisão é necessária para ampliar benefícios a algumas categorias de profissionais ainda hoje não reconhecidas, como dubladores de filmes e arranjadores de concertos musicais, que terão enfim suas atividades protegidas com a nova legislação.

Se, por um lado, a revisão proposta pelo MinC tem sido vista com bons olhos por aqueles que advogam a ampliação do chamado “acesso ao conhecimento”, por outro ela também vem sendo bombardeada por setores que fazem a defesa ferrenha da propriedade autoral. Na leitura de Dalton Morato, advogado da Associação Brasileira de Direitos Reprográficos (ABDR), entidade que congrega as principais editoras de livros do país, “se for aprovada a proposta de alteração da lei da forma como foi apresentada, ela representará a morte da indústria cultural brasileira. Por quê? Porque ela permite a cópia de qualquer obra intelectual, para várias finalidades, sem remuneração do autor e do editor”, afirma ele.

O tom ácido é compartilhado pelo compositor e advogado Juca Novaes, presidente da Comissão de Direito da Propriedade Imaterial da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) e diretor da Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus), uma das dez entidades que compõem o Ecad. “Chama minha atenção o projeto do governo porque coloca à frente não o interesse do autor, mas o do consumidor. Defendo o acesso ao conhecimento desde que o autor receba”, critica.

As iminentes mudanças provocaram até mesmo a reação de alguns pesos-pesados da música popular brasileira, como Roberto Carlos, Danilo Caymmi e Sandra de Sá, que já torceram publicamente o nariz para a revisão da lei 9.610/98. Foi criado inclusive um Comitê Nacional de Cultura e Direitos Autorais (CNCDA), reunindo artistas que afirmam não ter sido ouvidos no processo de discussão comandado pelo MinC. Entretanto, na avaliação do advogado e professor universitário Guilherme Carbone, especialista na questão, “essas pessoas estão advogando em causa própria. A sociedade muda, a tecnologia transforma e o direito acompanha”, contra-argumenta. Discussões à parte, o fato é que o debate esquentará para valer quando o projeto de lei for encaminhado ao Congresso Nacional. Como estamos, porém, em ano de eleição, é bastante provável que a votação da matéria fique a cargo da próxima legislatura.

Jabá

Entre outras coisas, a proposta defendida pelo MinC também pretende acabar com o famigerado “jabá” – como é conhecido o pagamento feito pelas grandes gravadoras para que as rádios deem mais destaque a determinados artistas em sua programação, asfixiando a carreira daqueles que não têm contrato assinado com as principais empresas da indústria fonográfica. No campo da música, porém, uma das mudanças mais importantes se dará mesmo no sistema do Ecad de arrecadação e distribuição de direitos autorais. Considerado uma verdadeira “caixa-preta” por boa parte dos compositores brasileiros, ele passará a ser supervisionado por um órgão público, se as alterações vingarem de fato.

Segundo os críticos da revisão, no entanto, essa fiscalização abre a porta para um “intervencionismo” exacerbado por parte do poder público. “Minha preocupação é com esse lado da proposta do governo: a participação muito maior do Estado em um negócio que é privado”, critica Juca Novaes, da Abramus. Em sua avaliação, o Ecad tem dificuldade em gerir os direitos autorais devido ao grande número de compositores cadastrados, espalhados por um país de dimensões continentais, e em virtude da alta taxa de inadimplência. “Ninguém quer pagar o Ecad. Para se ter uma ideia, mais de 50% das rádios e TVs não pagam. Não é um problema da entidade, mas de natureza cultural do Brasil”, justifica Novaes.

Entretanto, na avaliação de Rafael Oliveira, do MinC, as críticas sobre essa possível “estatização” não têm cabimento. “Isso aconteceria se criássemos um órgão público para cobrar e recolher o direito autoral. Não achamos que seja a solução, ao contrário. O que queremos é garantir que esse sistema funcione de modo que o autor e toda a sociedade possam fazer o efetivo controle social sobre ele”, afirma. “Essa regulação é muito light. O que estamos dizendo é que eles precisam tornar o processo público e claro. É uma prestação de contas”, acrescenta. Procurada pela reportagem, a direção do Ecad preferiu não se manifestar.

Outro artigo da nova lei que indicaria o intuito de aprofundar a ingerência do Estado é o que trata do “licenciamento compulsório”. De acordo com a proposta do MinC, se um livro esgotado no mercado editorial for considerado de interesse público, mas os proprietários do direito autoral colocarem obstáculos à sua reprodução, cobrando preços abusivos, por exemplo, o presidente da República poderá autorizar a reedição. Isso, porém, só poderá acontecer se a empresa interessada em reimprimir a obra comprovar a capacidade de colocá-la novamente em circulação. Além disso, o proprietário do direito autoral será ressarcido de acordo com o valor de mercado. Fazendo uma analogia, essa possibilidade já consta da lei que rege a propriedade industrial no Brasil, e pode ser utilizada na quebra de patentes de remédios considerados fundamentais para as políticas públicas de saúde. “Colocar isso para o presidente da República demonstra nossa preocupação de que a questão seja resolvida pela maior autoridade do país, e não por um servidor ou dirigente de ministério”, justifica Oliveira.

Vespeiro

“Basicamente, a proposta de revisão da atual lei de direitos autorais avança ao recuperar algo que havia na legislação anterior, de 1973, e que existe em vários países, que é a tal cópia privada – a possibilidade de alguém fazer uma cópia num único exemplar, por conta própria, sem fins lucrativos. A lei atual não permite, só pequenos trechos”, explica o professor Guilherme Carbone. Porém, na avaliação do advogado Dalton Morato, o anteprojeto do MinC “vai muito além de abordar a questão da cópia privada”. Prova disso seria a redação do artigo 46 da proposta levada a consulta pública. O texto diz que não constitui ofensa aos direitos autorais a “reprodução, distribuição e comunicação” de obras protegidas que tenham “fins educacionais, didáticos, informativos, de pesquisa ou para uso como recurso criativo”.

Morato argumenta que não existe música, filme ou livro que não tenha uma dessas finalidades. “Não se pode utilizar a desculpa ou talvez a necessidade de corrigir pontualmente alguns determinados artigos da lei para fazer essa profunda reforma que está sendo proposta, sem contrapartida alguma para os autores intelectuais”, contesta. De acordo com ele, uma forma de garantir essa compensação seria a cobrança de uma taxa sobre todos os equipamentos com capacidade de copiar arquivos, como gravadores de DVD e máquinas de xerox, a exemplo do que acontece na Espanha. Lá, essa espécie de imposto, chamado de “gravame”, é destinado a um fundo, posteriormente repartido entre os autores de acordo com a reprodução feita da obra de cada um.

Certamente, um dos maiores vespeiros em que toca a revisão da atual lei de direitos autorais é a questão da reprografia de livros – uma polêmica que há anos opõe, principalmente, editoras e parte da comunidade universitária que defende o xerox como forma mais econômica de acesso a obras literárias e científicas. Segundo Morato, “o problema se encontra exatamente nas bibliotecas das faculdades, na bibliografia adotada pelos professores, que muitas vezes não é atualizada, com livros difíceis de encontrar em livrarias. A culpa não é dos editores ou dos autores, não é do preço do livro”, afirma.

Por outro lado, o representante do MinC entende que a revisão da lei 9.610/98 não suprime, nem mesmo flexibiliza, os direitos autorais. Ele também discorda da ideia de que os livros, especialmente os universitários, sejam baratos. “Não conseguimos chegar a uma conclusão porque o preço continua alto. O governo tem feito de tudo para baratear, tanto que hoje toda a cadeia produtiva está desonerada de impostos federais”, afirma. Com relação à reprografia, a ideia do MinC é propor uma espécie de contrato entre uma organização que represente as editoras e as centrais de cópias das universidades, de modo que uma parcela do valor cobrado pelo xerox seja transferida para essa entidade, que terá a função de arrecadar o dinheiro e repassá-lo aos titulares dos direitos autorais que tiverem suas obras reproduzidas.

“É importante ressaltar que o repasse de no mínimo 50% de tudo o que for arrecadado com o sistema de reprografia vai para o autor. Hoje, os contratos não preveem mais do que 5% ou 10% de remuneração para o autor (para cada exemplar vendido). Isso quer dizer que ele vai ganhar possivelmente mais dinheiro com a cópia xerox do que com a venda do livro propriamente dito”, diz Oliveira. Além disso, a proposta de nova legislação determina que todas as obras colocadas em circulação pelas editoras sejam numeradas, a fim de garantir o controle efetivo de quantos exemplares foram comercializados nas livrarias.

Limitações

Uma das principais justificativas dos que defendem a revisão da lei de direitos autorais é sua atualização face ao desenvolvimento dos recursos da internet nos últimos anos, o que elevou à enésima potência o acesso às mais variadas fontes de informação e conhecimento. Apesar disso, um dos assuntos mais importantes para aqueles que navegam diariamente na rede mundial de computadores foi deixado de lado na proposta lapidada pelo MinC: o compartilhamento online de músicas e filmes, conhecido pela sigla P2P (do inglês, peer to peer). “Como essa é uma questão que em outros países ainda está meio nebulosa e que ninguém está sabendo como regular, o MinC preferiu nem tocar no assunto”, analisa o advogado Guilherme Carbone. Há, no entanto, nações em que a pressão da indústria fonográfica e dos estúdios de cinema e televisão tem sido tão intensa que o cerco vem se fechando a essa prática. Na França, por exemplo, o cidadão que for flagrado fazendo download de conteúdos não permitidos, mesmo que sem fins comerciais, pode ser punido com a perda da conexão à internet.

Na opinião de Rafael Oliveira, do MinC, o fato de a nova proposta ignorar o assunto não é uma limitação, mas uma “opção” política, deixando para um segundo momento a discussão sobre esse tema tão polêmico. “Fomos até conservadores perante essa demanda. O que temos de garantir é que as relações sejam equilibradas, para que se estabeleçam novos modelos de negócios que vão garantir o acesso na internet a obras protegidas da forma como o autor desejar. Afinal, é ele que tem de dizer se quer que a obra seja disponibilizada livremente na internet”, afirma.

Na verdade, esse debate é para lá de espinhoso, porque o P2P esbarra em restrições que extrapolam as fronteiras nacionais. “O Brasil é signatário de acordos internacionais que determinam que se dê uma proteção mínima aos direitos autorais. Então, se o país fizer uma lei que diga que toda cópia sem finalidade de lucro é livre, isso poderia até ser considerado ilegal do ponto de vista do direito internacional”, diz Pablo Ortellado. Apesar da evidente complexidade do assunto, o pesquisador da USP defende que não se perca a oportunidade de discutir amplamente algumas alternativas para regular o P2P, já que ele interessa a uma parcela cada vez maior da população, sobretudo a mais jovem. Uma das saídas, por exemplo, seria a cobrança de uma taxa sobre o acesso à internet, posteriormente repartida entre os produtores de conteúdo que não topassem disponibilizar livremente suas obras para download na internet.

A verdade é que é praticamente impossível chegar a um consenso em torno da redação da nova lei de direitos autorais. Mesmo que venha a ser aprovada na íntegra pelo Congresso Nacional, a tendência é que os autores e entidades representativas que se sentirem lesados procurem a Justiça para questionar a futura legislação. Na avaliação do advogado da ABDR, por exemplo, “existe um sério risco de essa alteração ser considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, porque o direito de autor é uma garantia constitucional prevista em cláusula pétrea. Ninguém está pensando nisso”, avisa Dalton Morato – sinal de que a batalha ideológica ainda vai render muitos capítulos.

 

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