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O sonho de Chico Mendes

Criação de reserva extrativista favorece luta dos povos da floresta

CARLOS JULIANO BARROS


Clareira para roçado de subsistência / Foto: Carlos Juliano Barros

Em 12 de março de 1990, três dias antes de passar a faixa para Fernando Collor de Mello, o então presidente da República José Sarney assinou o decreto que criava áreas de proteção ambiental, com destaque para a maior reserva extrativista (Resex) do Acre, batizada de Chico Mendes. Na verdade, o governo tentava colocar panos quentes sobre uma ferida que ainda não havia cicatrizado: o assassinato, ocorrido em dezembro de 1988, do famoso sindicalista e líder seringueiro imortalizado pelo nome da reserva.

O decreto jogou uma pá de cal sobre as expectativas de fazendeiros que não poupavam esforços nem violência para expandir seus pastos, expulsando e até executando quem resistisse. Por outro lado, essa medida representou uma grande vitória para as populações tradicionais, que dependiam da floresta para garantir sua sobrevivência e se viam ameaçadas pelo fantasma do avanço da fronteira agrícola.

A delimitação de espaços específicos para que os extrativistas pudessem viver em harmonia com a natureza - retirando dela apenas o necessário para seu sustento, sem devastá-la - foi o sonho que Chico Mendes perseguiu. A proposta de criação das Resex foi formulada em 1985 pelo Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), entidade que o sindicalista ajudou a fundar. Mas passaram-se cinco anos até sair do papel, e só foi concretizada após sua morte, um crime de repercussão internacional. "Há 15 anos, os seringueiros eram subcidadãos, e muitos nem documentos pessoais possuíam. Hoje, eles moram em territórios sobre os quais têm direito de usufruto por tempo indefinido. Essa conquista da ‘cidadania florestal’ é no fundo a grande vitória do movimento", afirma o antropólogo Mauro Almeida, ex-assessor do CNS.

Atualmente, na Amazônia, existem 12 unidades de conservação nesses moldes, que perfazem uma área de 3,4 milhões de hectares, distribuídas por sete estados. Só a Resex Chico Mendes - que se espalha pelos municípios de Rio Branco, Brasiléia, Xapuri, Sena Madureira, Assis Brasil e Capixaba - ocupa pouco menos de um terço de toda essa extensão. De acordo com dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsável pela gestão da reserva, nem 2% de sua cobertura verde original foi desmatada nos últimos 15 anos. Cerca de 2 mil famílias, um universo de 10,5 mil pessoas, vivem em seu interior dedicando-se principalmente à coleta de castanha-do-brasil - também conhecida como castanha-do-pará -, entre janeiro e abril, e à extração da borracha nos meses restantes. A caça e a pesca não predatórias e o trabalho nas roças de arroz, feijão e mandioca para subsistência complementam a rotina das populações extrativistas.

Se, no começo da década de 1990, a principal preocupação consistia em proteger a mata das investidas do chamado agronegócio, hoje a inquietação tem outro foco. "Na questão fundiária, houve um grande avanço, não se vêem mais seringueiros ameaçados por latifundiários. Além disso, as reservas estão cumprindo seu papel de proteção ambiental. Porém, nesse período, pouco se evoluiu em relação a alternativas econômicas à borracha e à castanha. Esse é o desafio: ampliar as possibilidades de geração de renda e melhorar o escoamento dos produtos da floresta para a cidade", avalia Raimundo Souza, coordenador no Acre do Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT), órgão do Ibama.

História de conflitos

O seringueiro Raimundo Pereira lê a duras penas e sabe apenas desenhar o próprio nome. A escola que freqüentou quando criança, como a maioria dos moradores da Resex Chico Mendes que já passaram dos 40 anos, foram as estradas de seringa das colocações por onde sua família perambulou. Era a época do "patrão", como se costuma dizer no Acre, quando os donos dos seringais não honravam direitos trabalhistas nem permitiam que seus empregados fizessem sequer um roçado para o próprio consumo. A dedicação era integral à borracha. Raimundo fala com orgulho do pai, com quem aprendeu a extrair o leite das árvores. "Ele era tuchao, uma espécie de campeão na seringa", explica.

Os patrões tinham disso: para estimular a competição, costumavam dar um prêmio para os que produzissem mais. Um relógio, um canivete, qualquer presente que envaidecesse o operário da floresta e o fizesse esquecer os preços abusivos que tinha de pagar àqueles mesmos patrões pelos mantimentos básicos de que sua família necessitava. "Eles nunca quiseram que o seringueiro aprendesse a ler e a escrever, pois assim era mais fácil enganá-lo. O extrativista só tinha direito de viver na colocação enquanto estivesse produzindo, senão era mandado embora", conta Raimundo Barros, o Raimundão, primo de Chico Mendes e quatro vezes vereador em Xapuri.

Mesmo com a superexploração dos trabalhadores, os seringais nativos brasileiros não suportaram a concorrência dos seringais de cultivo altamente mecanizado dos países asiáticos, como a Malásia, que dominaram o comércio internacional desde a primeira metade do século 20. Além disso, já a partir dos anos 70, a ditadura militar acenava com uma nova estratégia de desenvolvimento - a agropecuária - para a região norte, a fim de "integrar para não entregar" aquela parte tão esquecida do país. "Até meados da década de 80, as indústrias nacionais de pneumáticos eram obrigadas a comprar a borracha amazônica a preços fixados pelo governo, que também oferecia crédito barato e assistência técnica aos patrões. Porém, com a gestão de Sarney, iniciou-se um processo de desmantelamento dessas políticas oficiais de proteção e a terra no Acre passou por um período de intensa especulação. Os donos dos seringais, que muitas vezes nem tinham o título de suas propriedades, começaram a vendê-los", explica Mauro Almeida.

"A passagem do patrão para o latifúndio foi um grande choque para os seringueiros. Os fazendeiros diziam que tinham comprado as terras, e nós - que nascemos e nos criamos nessa região, que abrimos varadouros e ramais, que desbravamos os rios, que enriquecemos pessoas que depois não tiveram a mínima consideração por nós - não tínhamos direito a nada? Fomos obrigados a resistir para conquistar nosso espaço", afirma Raimundão.

O conflito deixou um saldo de muitas mortes, mas nenhuma ecoou tão forte como a de Chico Mendes (ver texto abaixo). Ele organizou seus colegas e atraiu a opinião pública internacional para a causa em defesa da floresta. "A gente reunia 50, 60 seringueiros para fazer os empates. Mas não tenho saudade daquele tempo. Era muito perigoso", recorda Sebastião Mendes, também primo de Chico e morador do seringal Cachoeira - que fica fora da Resex e hoje faz parte de um assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Foi lá que se acirrou o conflito entre os extrativistas e o fazendeiro Darly Alves, mandante do assassinato do líder dos povos da floresta. Ele havia comprado de um fazendeiro paulista uma colocação justamente para desestabilizar o movimento e "expulsar aqueles que teimassem em resistir", completa Sebastião. A tal teimosia custou a vida do famoso sindicalista, mas acabou catalisando o processo de criação das reservas extrativistas em toda a Amazônia.

Cotidiano

No município de Brasiléia existem diversas entradas para a Resex Chico Mendes. De moto, é possível desbravar em pelo menos uma hora e meia o ramal mais curto que desemboca nas primeiras casas de extrativistas, no seringal Porvir Velho, onde Severino da Silva comprou uma colocação 12 anos atrás. Isso quer dizer que ele pagou pelas benfeitorias, como a casa, as cercas e os barracões. Em uma reserva, os seringueiros não possuem o título da terra, que pertence legalmente à União, mas têm o direito de trabalhá-la desde que preservem a natureza e respeitem o Plano de Utilização formulado por eles próprios na época da criação da Resex. A fiscalização cabe ao Ibama, em parceria com as associações de moradores.

A residência de Severino da Silva é simples como a de qualquer outro extrativista. Feitas de madeira retirada da floresta, as casas são suspensas para prevenir a entrada de cobras e em geral têm três cômodos - uma cozinha, uma sala e um quarto que se subdivide de acordo com o número de filhos - e o estritamente necessário em termos de móveis. O banheiro improvisado fica do lado de fora. Severino, porém, se dá ao luxo de assistir diariamente, na sua televisão preto-e-branco, aos programas de sua preferência. Uma placa para captar energia solar instalada no teto alimenta a bateria, similar às usadas em carros, que permite ligar o aparelho. "A maioria absoluta dentro da Resex não tem acesso a luz elétrica. A possibilidade mais viável é a energia solar. É muito caro e difícil levar energia com fio e poste para as comunidades isoladas", afirma José Luiz Lanes, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

A análise de Lanes reflete o principal problema enfrentado no dia-a-dia pelos seringueiros no Acre: acesso. Para eles, a distância não é medida por quilômetros, mas pelas horas necessárias ao deslocamento - quase sempre feito a pé - ao longo da reserva, ou da reserva para a "rua", como é chamada a zona urbana. Em alguns casos, é preciso passar dias a bordo de um barco para atingir as colocações mais isoladas. Não é difícil encontrar extrativistas caminhando manhãs e tardes inteiras nos ramais, usando o lombo de animais para transportar o excedente de arroz, feijão ou mandioca para ser comercializado na cidade.

A dificuldade de acesso também prejudica a estruturação dos serviços públicos. "Ando 18 quilômetros por dia para chegar à escola", garante o professor Erinaldo Ribeiro. Dos 15 alunos matriculados em sua classe, pelo menos três faltam diariamente às aulas. Na área de saúde, a situação não é menos complicada. Apesar de existirem 43 postos de saúde em toda a Resex, onde vez ou outra um médico atende as famílias, os moradores em alguns casos precisam ser carregados em rede até um ramal para daí seguir para um hospital na cidade. "Há agentes comunitários de saúde da própria reserva que orientam a população, mas não um profissional fixo nos postos, porque as prefeituras não têm como arcar com esse custo", lamenta Raimundo Souza, do CNPT.

Desafio

"Nossa missão é diversificar a produção e mostrar que a floresta em pé pode gerar mais renda do que transformada em fazenda", afirma Mário Oliveira, gerente da Secretaria de Extrativismo e Produção Familiar (Seprof), do governo estadual. Hoje o poder público se depara com um problema tão ou mais urgente que o solucionado pelo decreto assinado por Sarney em 1990: estruturar a cadeia produtiva do extrativismo para impedir que os seringueiros caiam na tentação, por pura necessidade, de derrubar aquilo por que tanto lutaram. O açaí, fruto já amplamente consumido nos grandes centros urbanos; a jarina, considerada o marfim da Amazônia e utilizada para a fabricação de bijuterias; o óleo da copaíba, uma espécie de antiinflamatório natural, "são produtos com potencial para compor uma cesta que pode gerar renda para essas populações. Porém, consolidadas de fato, só temos a borracha, a castanha-do-brasil e a madeira", completa Oliveira.

Há algum tempo, a extração da borracha perdeu importância para a coleta de castanha e já não é mais o principal meio de sobrevivência das populações tradicionais do Acre. É preciso uma manhã inteira para dar a volta numa estrada - fazendo um único corte em cada árvore e posicionando o recipiente para receber o leite que escoa da seringueira - e uma tarde para completar outra volta, a fim de recolher o látex acumulado. Antes de a noite cair, ainda é necessário coagular o leite, usando as mais diversas técnicas, para produzir a borracha natural bruta (BNB), vendida principalmente para indústrias de pneumáticos. Em média, a produção diária fica em cerca de 10 quilos. "É um trabalho muito cansativo e que rende pouco dinheiro. Além disso, não sobra tempo para cuidar do roçado", argumenta Severino da Silva.

Desde 1999, o governo do Acre oferece um subsídio para os seringueiros. O repasse atual de R$ 0,70 eleva o preço final do quilo da BNB para a faixa de R$ 2. A ajuda tornou a atividade um pouco mais atraente, principalmente para os extrativistas de colocações isoladas, que enfrentam dificuldades para comercializar o excedente de sua produção agrícola e complementar o orçamento. Para incentivar ainda mais a exploração da borracha, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou em maio de 2003 um protocolo de intenção para a instalação, em Xapuri, da primeira fábrica do mundo de preservativos à base de látex de seringais nativos, que deve começar a funcionar em 2006.

Estão previstos investimentos da ordem de R$ 30 milhões, que prometem uma pequena revolução no cotidiano das 350 famílias da Resex Chico Mendes que vão fornecer a matéria-prima das camisinhas. "Em primeiro lugar, precisamos melhorar as condições de higiene no processo de extração do látex para que ele siga para a fábrica com a qualidade necessária à confecção dos preservativos. Para este ano, já foram liberados recursos a fim de implementar um ‘kit saneamento’ da rede de água e esgoto em 236 colocações", explica Tânia Guimarães, diretora técnica da Fundação de Tecnologia do Acre (Funtac). Outra preocupação é a logística de abastecimento. Parte do dinheiro será empregada na abertura e manutenção de ramais, para facilitar o trânsito de caminhões. Benefícios, entretanto, que não vão contemplar diretamente as outras 1,5 mil colocações da Resex distantes da fábrica de Xapuri. "O látex precisa chegar até ela em estado líquido e, por isso, não pode esperar. Tivemos de selecionar as famílias que se localizam dentro de um raio que permita o escoamento da produção", justifica Tânia.

A colocação de Raimundo Pereira foi uma das cadastradas. Ele também está animado, pois acha que o preço pago pelo leite da seringueira vai aumentar. Tânia acredita que o litro será negociado a R$1,80, fora o subsídio. Além disso, na forma líquida, o látex não perde água, como no processo de produção da BNB - o que aumenta seu peso e, conseqüentemente, a rentabilidade. Mesmo assim, por enquanto as estradas de Raimundo estão "brutas", ou seja, não foram abertas para facilitar seu deslocamento de uma árvore até a outra, e ele se dedica ao roçado e à menina-dos-olhos dos extrativistas: a castanha.

No inverno - de dezembro a março -, os ouriços que contêm as amêndoas caem do alto das copas e ficam amontoados no pé da árvore. O trabalho de coletar, quebrar o fruto e recolher a castanha, que termina em abril, é recompensado pelo elevado valor da lata de 10 quilos do produto: em média, ela é comprada pelas cooperativas de trabalhadores a R$ 16. "Há três anos, não havia outra opção de venda senão os marreteiros, intermediários que pagavam um preço muito baixo. Porém, com o apoio do governo federal, capitalizamos as cooperativas da região, como a Cooperativa Agroextrativista de Xapuri (Caex) e a Cooperativa Agropecuária e Extrativista de Epitaciolândia e Brasiléia (Capeb), para que elas pudessem beneficiar os trabalhadores", explica Mário Oliveira.

Recentemente, o governo estadual concluiu as obras de duas usinas de beneficiamento da castanha - uma em Xapuri e outra em Brasiléia - que foram entregues a uma empresa criada especialmente para geri-las, em que a Capeb e a Caex detêm, cada uma, 25% das ações. O restante ficou para o grupo boliviano Tauamano, um dos mais expressivos do mundo no ramo. "Eles estão estabelecidos há mais de 20 anos. Foi uma boa parceria, porque a empresa entra com capital e abre as portas do mercado, o que sempre foi um dos nossos gargalos. O ideal seria deixar nas mãos dos trabalhadores, mas temos de ser realistas, porque uma gestão como essa precisa ser bem direcionada", afirma Oliveira.

Por outro lado, Manuel Gonçalves de Souza, diretor da Capeb, garante que a usina de Brasiléia havia sido inicialmente prometida à sua entidade e que as obras deveriam ter ficado prontas cinco anos atrás. A cooperativa já havia inclusive firmado contrato com empresas da Itália, que comprariam a castanha. "Mas o governo depois disse que não tínhamos capital para investir e administrar. Enquanto formos apenas repassadores de matéria-prima, nunca conseguiremos desenvolver o cooperativismo, agregar valor aos produtos e fixar o seringueiro na floresta", rebate.

Benefício para todos

O seringal Cachoeira, em Xapuri, foi o palco da discórdia entre Darly Alves e Chico Mendes. Hoje, o assentamento recebe visitantes do mundo inteiro dispostos a conhecer de perto as terras que motivaram a luta do líder dos povos da floresta. Mas o lugar é também referência em outro assunto controverso: o manejo sustentável da madeira.

Há três anos, cerca de dez famílias passaram a cortar árvores de suas colocações, de acordo com determinações dos órgãos ambientais, e a fornecer madeira para uma fábrica de móveis de alto padrão, para exportação, instalada no Pólo Moveleiro da cidade. Hoje esse número saltou para 30. "No começo, muita gente foi contra, eu inclusive. Mas tudo é feito de modo a não prejudicar a floresta", comenta Sebastião Mendes, que também aderiu ao projeto. "Há árvore que chega a dar cinco metros cúbicos, uma renda de R$ 3,5 mil. Aproveitamos até os galhos", acrescenta.

Em abril passado, a Associação de Moradores da Resex Chico Mendes de Xapuri enviou ao Ibama uma proposta de manejo da madeira, similar ao desenvolvido no Cachoeira, que contemplaria inicialmente 20 famílias. Entretanto, Raimundo Souza, do CNPT, acha que a atividade pode desestabilizar a estrutura social da reserva: "Temos de beneficiar a totalidade das quase 2 mil famílias que nela vivem, sem privilegiar uma minoria. Não se pode pensar em um manejo específico para áreas localizadas. Isso abre também uma brecha para a pressão dos madeireiros que atuam de forma ilegal e predatória nas regiões onde a exploração não for autorizada". Ele acredita ainda que é preciso apostar em outras alternativas, como a exploração do açaí, por exemplo, antes de pensar na madeira. "Porém, o grande problema é a questão do mercado. Não se pode chegar à floresta e sair catando tudo, é necessário normatizar a extração. Precisamos, sim, estruturar essas outras cadeias produtivas, mas infelizmente não se faz isso da noite para o dia", pondera Mário Oliveira, da Seprof.

Enquanto aguarda suporte do poder público para aproveitar todas as potencialidades que a mata oferece, a maioria dos seringueiros vai driblando suas privações com muito trabalho e contando com a generosidade da Amazônia. "Muita coisa já melhorou. Mas o Estado precisa ter uma presença mais efetiva, principalmente nas áreas mais isoladas", reconhece Raimundo Souza. Ele, assim como outros representantes do governo estadual e federal, sabe que é impossível contornar em poucos anos a marginalização histórica a que foram submetidas as populações tradicionais da região norte. Mas os povos da floresta têm pressa. E a própria floresta também.


Dicionário seringueiro

Colocação: área que cabe a cada família. A casa do extrativista e as plantações de subsistência ficam no centro, rodeadas pela floresta. Cada colocação é formada por no mínimo três estradas de seringa.

Empate: manifestação pacífica organizada por seringueiros para convencer os peões, contratados por latifundiários, a não derrubar a floresta para a formação de pastos.

Estrada: trilha circular de seringueiras, que começa e termina no mesmo ponto, onde se extrai o látex. Cada estrada tem em média 160 dessas árvores e circunscreve uma área aproximada de 100 hectares, com diversas outras espécies de plantas e animais.

Inverno/verão: os extrativistas associam o inverno ao período de chuvas, que vai de dezembro a meados de abril. O verão corresponde à época de estio, que começa logo após o inverno.

Ramal: varadouros alargados para possibilitar o trânsito de carros, caminhões e tratores ao longo da reserva. Em geral, não são asfaltados, e no período chuvoso ficam praticamente intrafegáveis.

Seringal nativo/seringal de cultivo: diversas colocações compõem um seringal. No Acre, como as árvores que fornecem a borracha são naturais da própria floresta, fala-se de seringal nativo, explorado por populações tradicionais. Já os seringais de cultivo são empreendimentos empresariais, de plantio intensivo, formados em regiões que importaram sementes da Amazônia, como a Malásia.

Varadouro: pequeno caminho aberto na mata por onde circulam apenas homens e animais.


Um visionário indignado

Francisco Alves Mendes Filho é de longe o ambientalista mais importante da história do Brasil. Além disso, foi um visionário: já defendia o hoje tão alardeado desenvolvimento sustentável numa época em que a floresta era considerada inimiga do progresso, associado a políticas oficiais de expansão da fronteira agrícola amazônica.

Nascido e criado em seringais do Acre, Chico Mendes foi alfabetizado pelo próprio pai, de quem herdou o nome e os genes da indignação que o transformariam em um dos mais destacados líderes sindicais do país, ao lado do presidente Lula, com quem ajudou a dar corpo ao então jovem Partido dos Trabalhadores (PT). Em 1987, foi convidado a participar de uma reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), nos Estados Unidos, onde denunciou a derrubada predatória da floresta para a construção da BR-364, que ligava o centro-oeste do Brasil à região norte. Depois do alerta, o BID suspendeu o financiamento para a expansão da rodovia. Naquele mesmo ano, Chico Mendes recebeu da Organização das Nações Unidas (ONU) o Prêmio Global 500, em homenagem ao seu empenho pela preservação da natureza.

Apesar do reconhecimento internacional, Chico Mendes não tinha o mesmo prestígio perante fazendeiros que, de olho nas terras dos seringueiros, resolveram calar de vez sua voz. O sindicalista foi assassinado na noite de 22 de dezembro de 1988, em sua própria casa, no centro de Xapuri. Dois anos depois, em um julgamento que chamou a atenção do mundo inteiro, o fazendeiro Darly Alves e seu filho Darcy foram condenados pelo crime. "Os Alves eram fogo, matavam mais que meningite", brinca Sebastião Mendes. Chico sabia que ia morrer, tanto que havia encaminhado uma lista com os nomes de seus possíveis algozes para o governador, a polícia federal e o Ministério da Justiça. Esforço em vão para se manter vivo. Hoje, Darcy cumpre pena em regime semi-aberto, e seu pai está em liberdade condicional. Em abril passado, Darly causou a morte por atropelamento de uma aposentada, em Brasiléia. Acidentalmente.

 

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