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Direito a comer bem

Sociedade e poder público se articulam e defendem alimentação sadia

GUSTAVO PRUDENTE


Refeição no Fundo Cristão para Crianças 
Foto: divulgação

Numa cidade qualquer, uma criança se aproxima de um adulto e lhe pede comida. Para satisfazê-la, ele vai ao bar mais próximo e lhe compra hambúrguer, batatas fritas e um refrigerante. A criança agradece e se põe a comer o lanche avidamente. Orgulhoso de seu feito, o sujeito segue adiante.

A situação parece corriqueira, mas pode ser usada para ilustrar uma extensa cadeia de conflitos sociais que têm sido cada vez mais discutidos pela sociedade civil e pelo poder público, um conjunto de fatores que se convencionou designar como segurança alimentar e nutricional (SAN) - conceito que engloba os direitos da população a uma alimentação saudável, de qualidade, em quantidade suficiente, que respeite os valores culturais de quem a consome e que possa ser produzida e comercializada de forma ecológica, econômica e socialmente sustentável.

Pode parecer que são muitos ingredientes numa única panela, mas, para facilitar a compreensão, imaginemos o seguinte quadro: a criança é desnutrida e mora em condições insalubres. Vítima de verminoses, tem dificuldades para absorver os nutrientes da pouca comida que ingere. Seus pais, migrantes da zona rural, possuem baixa escolaridade e parcos recursos financeiros. Deixaram o campo por não conseguir produzir alimentos, seja para consumo próprio, seja para comercializar e gerar renda. Ou, como ocorre com um número crescente de jovens de áreas rurais, o casal simplesmente imaginou que a vida na cidade teria mais atrativos.

O adulto que ajudou a criança, baseado em seus próprios hábitos alimentares ou no que ele pensa ser o sonho de consumo do público infantil, escolheu um cardápio bem pouco nutritivo. Para piorar, é possível que o bar em que ele comprou o lanche não siga as regras de conservação e manipulação dos alimentos, deixando as portas abertas para que a criança se contamine com uma série de doenças.

O próprio lanche pode dar origem a determinadas indagações. Talvez a alface e o tomate do hambúrguer sejam cultivados com doses generosas de agrotóxicos, ou haja nos alimentos algum ingrediente geneticamente modificado. É possível imaginar que a matéria-prima com que foi feito - do trigo do pão à carne bovina - seja importada ou produzida por grandes empresas que detêm o monopólio de sementes, rações e outros insumos agrícolas e que fecham o mercado para o pequeno agricultor. A disposição de matar a fome de uma criança desfavorecida, por sua vez, sugere uma questão importante: o equilíbrio entre a preocupação com o emergencial - atender a necessidade da criança, ainda que com um alimento pouco nutritivo - e o estrutural - resolver os problemas que levam o indivíduo a se encontrar naquela situação.

Esses são apenas alguns dos temas da área de SAN levantados pelo exemplo acima. Existem outros, o que torna o assunto complexo não só para quem tenta compreendê-lo, mas também para os que trabalham diretamente com ele. Não é à toa que diferentes especialistas acreditam que o grande debate, hoje, é a criação de uma lei orgânica para reger e organizar todas as políticas da área. "O objetivo é instituir um sistema nacional de SAN que contemple a intersetorialidade, a descentralização das ações e a participação social", afirma Renato Maluf, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e um dos membros do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão criado em 2003 para servir de referência para as políticas do governo federal nessa área. Atualmente, o Consea conta com 59 conselheiros, dos quais 47 representam a sociedade civil. A meta é buscar a melhoria da qualidade de vida do ser humano, principalmente nas situações de maior vulnerabilidade, como as de populações de comunidades rurais carentes, indígenas, quilombolas e moradores das periferias das grandes cidades.

Participação social

"A sociedade civil foi a responsável por encaminhar essas questões ao poder público", afirma Christiane Costa, membro do Consea e coordenadora da área de SAN do Instituto Pólis, organização não-governamental (ONG) com sede em São Paulo que oferece assessoria em políticas sociais para outras instituições. A Pastoral da Criança, por exemplo, está presente em 3.549 municípios do país, capacita líderes locais de diversas comunidades para monitorar a desnutrição infantil, pesando mensalmente as crianças e dando orientações às famílias sobre alimentação saudável e nutritiva. "Ensinamos as mães a aproveitar recursos locais - por exemplo, a jaca verde e o cacho da bananeira - para fazer pratos tradicionais como a moqueca", explica Maria Amélia dos Santos Ramos, coordenadora da Pastoral de Japaratuba, no interior de Sergipe.

No vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais, um bom exemplo de participação social vem do trabalho realizado pelo Fundo Cristão para Crianças (FCC), ONG internacional que desenvolve projetos sociais por meio de parcerias com entidades locais. "Fizemos uma pesquisa para entender o conceito de pobreza a partir do referencial da criança e descobrimos que a alimentação era a questão central", afirma José Luiz Estevez, diretor nacional do FCC. Desde então, o fundo tem desenvolvido tanto ações emergenciais, como a distribuição de cestas básicas, quanto estruturantes, a exemplo do Programa de Desenvolvimento Humano Sustentável (PDHS), que busca a melhoria da qualidade de vida da família como forma de combater a desnutrição infantil.

"Muita coisa que a gente não tinha agora tem", conta Augusto Feliciano, de 29 anos, morador da região rural de Berilo, uma das cidades do vale. Pai de três crianças, uma das quais, Letícia Maria, de 3 anos, tem desnutrição leve, Augusto é um dos beneficiados pelo PDHS. Em sua cidade, o programa é tocado pela Associação Rural de Assistência à Infância (Arai), uma das parceiras do FCC. Dentre as benfeitorias de que Augusto agora dispõe está um reservatório para coleta e tratamento da água da chuva, cuja finalidade é tanto o consumo quanto a irrigação, uma vez que a seca é um dos principais problemas da região.

O objetivo do programa é dar condições para que a família alcance, por conta própria, padrões dignos de alimentação para a criança. Isso significa que ela deve ter um mínimo de infra-estrutura, incluindo trabalho, renda e saneamento, e também discernimento do que é uma nutrição saudável. "Compreendemos que, onde há uma criança desnutrida, a família não vai bem. Por isso, investimos numa abordagem holística", explica Marcos Aurélio Macedo de Sousa, assessor de programas sociais e de nutrição do FCC. Um dos projetos do PDHS desenvolvidos atualmente na região do vale visa estimular a apicultura como forma de gerar renda para evitar a forte migração de trabalhadores na época do corte da cana e da colheita do café.

Em São Paulo, o Instituto Pólis criou uma proposta ainda mais abrangente para incentivar a participação da sociedade. O Centro de Referência Local em Segurança Alimentar e Nutricional, um projeto piloto implantado no Jardim Jaqueline, bairro periférico da cidade, reúne representantes das entidades sociais locais e do poder público para avaliar os problemas e os potenciais da região. Fazem parte da iniciativa, por exemplo, membros da Secretaria Municipal de Abastecimento e da Unidade Básica de Saúde da área. Além de debater a realidade do bairro, os integrantes das entidades locais recebem cursos de nutrição e de aproveitamento integral dos alimentos. "Montamos uma cooperativa de lanches ecológicos, e vendemos bolo de casca de mamão, de banana e de laranja", diz Ana Cristina Barros de Souza, voluntária de duas instituições envolvidas no projeto - a Associação Assistencial Comunitária Jardim Jaqueline e a Associação das Mulheres do Jardim Jaqueline do Estado de São Paulo.

Intersetorialidade

A idéia da criação do centro de referência é um desdobramento de um estudo feito por Renato Maluf e Christiane Costa, que estabeleceu diretrizes para promover políticas de SAN nos municípios brasileiros. "Investimos em três tipos de atuação: diagnóstico da região; identificação das iniciativas que já existem no local e que podem ser requalificadas para se adequar à SAN; e promoção de ações inovadoras", explica Christiane. Esse procedimento busca evitar o acúmulo ou a sobreposição de projetos, limitando-se a aperfeiçoar o que já existe e incluir propostas do grande leque da SAN que estiverem faltando - por exemplo, o estímulo à agricultura familiar, além de discussões sobre uso de agrotóxicos ou palestras sobre educação alimentar. Essa é uma maneira de promover a intersetorialidade, porque implica a união de indivíduos de áreas tão diferentes quanto agentes de saúde e donos de supermercados para debater o tema.

O que tem favorecido a discussão intersetorial das questões de SAN, no entanto, é o aumento do número dos Conseas estaduais e municipais. Abertos à participação de todos os segmentos da sociedade, esses conselhos têm servido como fonte de informações e de formulação de diretrizes políticas tanto para o poder público quanto para organizações sociais e empresas que investem na área de alimentação e nutrição. "Aqui, dois terços dos representantes são da sociedade civil", afirma Gilma Sturion, presidente do Consea de Piracicaba (SP) e professora de ciência dos alimentos da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP). "A maior vantagem dos conselhos é o acesso aos secretários, que têm poder de decisão na gestão pública e podem apoiar nossas ações", diz.

Esse, entretanto, é o ponto nevrálgico da intersetorialidade. Para muitos representantes da sociedade civil, o relacionamento com os órgãos governamentais é em geral problemático, especialmente com o gestor municipal. "O que mais acontece é o poder público não colocar as determinações em prática, sejam elas leis municipais ou deliberações de um conselho", afirma Gilma.

Entre os motivos, estão a falta de recursos financeiros para atender todas as demandas, o desinteresse de muitos gestores pelo tema da segurança alimentar e nutricional e a tentativa de alguns deles de trocar o cumprimento das propostas por favores políticos. "Em algumas cidades, não conseguimos apoio do poder público porque seus representantes queriam usar nossa entidade parceira para fazer propaganda política, com o que não concordamos", afirma Macedo de Sousa, do FCC. Daniela Souzalima Campos, nutricionista da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, conta que no estado apenas cerca de 450 municípios, de um total de 853, enviam informações para o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvam), criado para monitorar essa situação em âmbito nacional.

Autonomia

Enquanto alguns ativistas de SAN tentam criar uma estrutura que concilie todos os temas da segurança alimentar, por meio de leis, conselhos e levantamento de dados, a preocupação imediata de muitos projetos sociais é fazer com que a população ganhe autonomia para estabelecer padrões dignos de alimentação. Nesse caso, a atuação é muito diversificada.

"Atualmente, lutamos pela soberania alimentar, que tenta retomar o direito dos países de determinar suas próprias políticas agrícolas", afirma Flávio Valente, coordenador técnico da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (Abrandh). Em sua opinião, os pequenos agricultores devem ser defendidos do monopólio das grandes corporações agrícolas. "O que falta é investimento no processo produtivo. A reforma agrária está capenga, e a retomada do desenvolvimento do país, muito lenta." Para Gilma Sturion, o objetivo é dar assistência técnica e informação ao trabalhador, para que ele possa ser competitivo. "O pequeno produtor tem dificuldade de garantir a qualidade comercial de seus alimentos e de abastecer continuamente programas de porte, como a merenda de escolas públicas", diz.

Em Virgem da Lapa, no vale do Jequitinhonha, a Escola Família Agrícola, mantida por um consórcio de associações comunitárias, tem tratado dessas questões de uma forma criativa. A instituição recebe gratuitamente adolescentes da região para dar-lhes uma educação integral, que inclui o ensino formal, o aprendizado de técnicas agrícolas e a conscientização social e política. "A partir de situações relatadas pelos alunos, montamos nosso programa letivo. Quando a questão envolve alimentação, por exemplo, primeiro pedimos a eles que efetuem um levantamento do problema em sua comunidade - se há desnutrição, que tipos de alimentos são consumidos, etc. Com base nesses dados, elaboramos uma síntese geral, que é usada para discutir o assunto em todas as aulas, de matemática a inglês", afirma Valdira Luiz Nobre, uma das coordenadoras pedagógicas da escola.

"Antes de estudar aqui, eu não sabia que podia fazer rotação de culturas. Agora, em vez de plantar somente arroz, cultivo também feijão", explica Beatriz Maria Jardim Teixeira, aluna do segundo ano e moradora da comunidade do Pega, em Virgem da Lapa. "A gente bebia muita água contaminada, então me ensinaram que precisamos tratar dela primeiro. Aprendi ainda que é melhor comer alimentos sem agrotóxicos", conta José Lucas Pereira Luiz, colega de Beatriz e morador da comunidade de Coqueiros, também em Virgem da Lapa.

Todos os estudantes alternam uma semana de estudos na escola e outra em casa, para onde levam os ensinamentos aprendidos. Isso significa tanto plantar verduras e frutas para consumo da família como organizar mutirões comunitários para a coleta do lixo. Regularmente, um dos instrutores visita a residência dos alunos para checar se as tarefas estão sendo cumpridas - em caso negativo, faz-se um relatório do que precisa ser realizado, e os pais assinam um termo de compromisso. "Nossa meta não é torná-los produtores, embora ofereçamos assistência para os que querem se profissionalizar. Pensamos na qualidade de vida da família e na fixação do homem no campo", diz Valdira.

A autonomia em SAN, no entanto, não diz respeito apenas à capacidade de cultivar o que será levado à mesa. Em médias e grandes cidades, onde há pouco espaço para a produção familiar, a questão é dar alternativas de acesso ao alimento. Não que ele falte nas prateleiras dos mercados e das feiras - é consenso entre os especialistas que o Brasil produz mais que o suficiente para sua população. Muita gente, no entanto, não tem poder aquisitivo para comprar a comida de que precisa, ou não sabe como adquiri-la e nem mesmo como prepará-la.

"Há instituições para as quais doamos alimentos frescos que só costumavam ter acesso a produtos estocáveis, como arroz e feijão. Por isso, havia crianças que nunca tinham comido salada de frutas", afirma Sebastião Martins, gerente do Sesc Piracicaba e responsável por implementar na cidade o programa Mesa Brasil. O projeto, tocado pela entidade em todo o território nacional, recebe alimentos bons para consumo, mas sem valor comercial (frutas amassadas, por exemplo) e os doa a entidades sociais, como a Desafio Jovem Piracicaba (Dejop), que oferece tratamento para pessoas viciadas em drogas ou com antecedentes criminais. "O que a gente come de fruta é o que o Sesc doa", explica Luiz Carlos das Neves Júnior, um dos internos e diretor da Dejop.

Sem a atuação conjunta de empresários doadores, do Sesc como mediador, e da Dejop como receptora e preparadora dos alimentos, é bem possível que Luiz Carlos nunca comesse frutas, o que é absurdo num país que conta com uma imensa variedade e quantidade desse produto. "O que sentimos é que, onde a articulação entre o poder público e a sociedade civil é mais forte, os resultados das ações de SAN são melhores", como explica Macedo de Sousa, do FCC.

 

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