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Economia x política

Um poder cada vez mais irrelevante

FRANCISCO DE OLIVEIRA


Francisco de Oliveira 
Foto: Gabriel Cabral

O professor e cientista social Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira esteve presente no dia 14 de abril de 2005 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra com o tema "Análise do Quadro Político Brasileiro".
Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate pode ser lido na edição impressa da revista.

A política econômica do governo Luiz Inácio Lula da Silva é de uma notável estabilidade, em contraste com a política propriamente dita, que sofre de permanente instabilidade. Qual é a chave para entender a relação entre as duas? A meu ver, o que une e explica as duas coisas é a irrelevância da política. Ela vem se tornando irrelevante em todo o mundo, e num país como o Brasil isso adquire especial significado e contundência. O que é a irrelevância da política?

Em primeiro lugar, a excessiva institucionalização de regras de comportamento torna os governos quase desnecessários. Essas regras são fortes sobretudo na economia. Um governo que se elege não pode mudar quase nada, praticamente. No Brasil, por exemplo, é fácil ver que os acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) impunham uma trajetória conservadora, não no sentido ideológico, mas no de conservar a política que já está prevalecendo.

A Lei de Responsabilidade Fiscal, outro exemplo, impõe limites muito rígidos à atuação dos governantes. Mais: embora não legalizada, existe na prática a autonomia do Banco Central (BC). Essa institucionalização é responsável por uma tendência, que é mundial, de quase instaurar automatismos no comportamento sobretudo da economia. Isso é interessante observar, porque o primeiro efeito é despolitizar a economia.

Na opinião do sociólogo mais eminente dos últimos cem anos, Max Weber, a política e a economia são esferas autônomas e se guiam por pressupostos e paradigmas que lhes são próprios. Essa é a tradição liberal mais nobre. Na linha marxista, a política é inteiramente subordinada à economia, e não passaria de uma espécie de fenômeno de superfície, que reflete processos estruturais mais profundos. Na verdade, nem uma coisa nem outra. As relações entre política e economia são demasiado complexas para ser reduzidas a esses dois extremos. Mas alguma coisa das duas tradições existe nessa relação.

É, portanto, algo muito complicado. No Brasil dos últimos 15 anos, observamos uma enorme transformação no que se pode chamar de estrutura real de poder e suas relações com a política. Indico, de uma forma mais ou menos esquemática, as mudanças havidas na economia e sobretudo na propriedade. Esse é um ponto importante, porque foi uma das áreas em que a percepção do Partido dos Trabalhadores (PT) foi mais frágil. De fato, nesse período houve transformações relevantes, exatamente naqueles pontos que fazem o contato e a passagem para a política. Houve uma enorme transferência de propriedade, através das privatizações. A estrutura anterior continha um Estado com largo setor produtivo e capaz, portanto, de operar certas variáveis da economia. Esse setor sofria influências da política em vários estados. Para citar alguns casos, a presença de estatais era mais importante do que os governos estaduais e, em muitas áreas, como a de petróleo e gás, a forte atuação da Petrobras, cujo controle continua estatal, fazia com que alguns ministros quase desempenhassem um papel de... fantoches eu não diria, porque seria muito forte e pejorativo. Mas, na verdade, quem faz a política do Ministério de Minas e Energia é o ministro ou a Petrobras? As coisas estão mais ou menos no meio do caminho.

Esse enorme processo de privatização modificou as relações dentro do Estado brasileiro e com os grupos econômicos e até com setores da classe trabalhadora. Nenhum sistema político fica imune a tais transformações. Há influências e algum grau de determinação que vêm da economia. E de outro lado a mudança na estrutura real do poder afeta a própria capacidade de o Estado fazer política. Não se trata de avaliar se era bom ou ruim, mas de analisar até que ponto havia a possibilidade de manejar a política econômica. Foi aí que o PT subestimou as transformações que aconteceram na sociedade em sua relação com o Estado. Para dizer de uma forma direta, o PT, segundo seu presidente de honra, que é o presidente da República, trabalhou isso no terreno das bravatas. A política econômica do governo Fernando Henrique Cardoso era entendida de uma forma banal. Era uma opção entreguista, dominada por uma postura do próprio presidente. Isso foi uma subestimação grave, que custaria caro no momento seguinte, de mudança de partido na cúpula federal. Houve, portanto, uma transformação importante, e seus reflexos no campo da política foram mal avaliados.

Não é fácil calcular o que as mudanças na estrutura da propriedade industrial, na de serviços e no campo significam em termos do Produto Interno Bruto (PIB). Uma metodologia para conseguir a tradução disso é muito complicada. Estimativas bastante toscas diziam que algo como 15% do PIB trocou de mãos em pouco mais de 8 anos, porque o grosso das privatizações foi realizado no governo Fernando Henrique, mais alguma coisa, muito pouca, no de Itamar Franco e algo ainda mais irrelevante no período anterior, com Fernando Collor e José Sarney. Na verdade, nesses casos tratava-se apenas de tirar da UTI do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) algumas empresas que lá foram parar para não abrir falência.

Não há caso parecido, salvo o da Argentina, cujo sistema político também se desestruturou completamente, e o da antiga União Soviética, embora lá não tenha ocorrido uma desestatização, mas uma mudança total de sistema em que as privatizações foram um elemento. Mesmo na Inglaterra, que começou um longo processo de privatizações, as proporções de mudança na propriedade, na estrutura, não chegaram nem próximas às do Brasil. Isso foi um terremoto de cerca de 8 graus na escala Richter. Não há sistema político e sobretudo partidário que resista a uma mudança como essa. É isso o que afeta basicamente a estrutura política nacional e em especial o sistema partidário. Este tornou-se sem significação, não quer dizer nada e não representa nada. Mesmo no reduto do PT, que se assume como representante de largas faixas das classes trabalhadoras, o fenômeno da privatização, junto com a reestruturação produtiva que vem se processando no mínimo há uns 15 anos, erodiu fortemente a base social.

Categorias inteiras foram quase varridas do mapa, outras, importantíssimas, sofreram um forte enxugamento, como a dos bancários, que tiveram um papel muito significativo na estruturação do novo sindicalismo brasileiro. Eles foram reduzidos a quase um terço do que eram há 15 anos. Os metalúrgicos também experimentaram sensível encolhimento na sua base. E o PT chega ao poder exatamente quando sua base social diminui. Essa redução significa que o poder político real das formações partidárias mudou muito e na maior parte das vezes se enfraqueceu, mesmo no caso do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que ao lado do PT é a outra metade da laranja. Em entrevista recente o ex-presidente Fernando Henrique confessou exatamente isto: nossa única diferença é quem chega ao poder e quem controla o atraso. Por atraso, ele nomeia as agremiações partidárias, que são regionais ou simplesmente reunião de caciques políticos. Mesmo o PSDB não sabe exatamente a quem representa. Tem relações muito mais ostensivamente com uma certa faixa do empresariado, e também com alguns grupos das classes médias, mas seria um exagero dizer que é um representante do empresariado.

Em resumo, esse longo processo, localizado mais precisamente nos dois mandatos de Fernando Henrique, abalou o sistema político. Por exemplo, a imprensa dizia com uma certa reiteração que parecia bastante óbvio que na aliança PSDB-Partido da Frente Liberal (PFL) quem dava as cartas era o ex-governador Antonio Carlos Magalhães, de quem FHC era refém. Bastou uma crise na Bahia para mostrar que era o contrário.

Quando Lula conquistou o Poder Executivo, o sistema partidário estava praticamente em frangalhos, por uma quase total esquizofrenia entre representantes e representados. Salvo algumas bancadas muito específicas, como a dos ruralistas, ou a dos evangélicos, é muito difícil identificar no Congresso quem é quem e que interesse representa. Isso mostra que as siglas partidárias não querem dizer muita coisa do ponto de vista dos reais desejos da sociedade.

Ao assumir nessas condições, Lula, em vez de avançar para tentar recompor o governo, faz a operação contrária. Tenta governar entendendo que as siglas partidárias significam alguma coisa, daí o enorme arco de alianças aberto pelo PT no poder e o paradoxo que se produziu: quanto mais amplia esse arco, menos governabilidade tem. Exatamente porque introduz siglas que têm muito pouco a ver com a formação da nova estrutura social brasileira, com as novas relações de poder no campo econômico e sua transposição para o político. Foi o que se viu na última tentativa de reforma ministerial, que terminou em nada e também não alterou o comportamento da trajetória principal do governo. Pouco importa que se mude o titular da Previdência ou do Trabalho, desde que, como disse o ministro da Casa Civil, não se mexa no Ministério da Fazenda e no Banco Central. No mais, tudo é permitido. Então uma reforma ministerial teria pouco efeito em termos de melhoria da performance governamental, e a não-reforma também tem o mesmo resultado. Essa é uma chave para entender os dilemas que estão aí.

Outra chave seria decifrar qual a orientação de política econômica deste governo. Sem ter entendido o caráter real das transformações na estrutura do poder econômico, a política econômica refugia-se em repetir a mesma coisa. Isso significa que a política social do governo Lula se ancorava exatamente naquilo que desapareceu, ou seja, na esperança de que o forte poder estatal do aparelho produtivo fosse a base para promover alguma política social. Isso se encolheu, e a política social ficou pendurada no vazio. O único setor em que isso ainda funciona, paradoxalmente, é a cultura, em que duas poderosas instituições estatais, o Banco do Brasil e a Petrobras, fazem as vezes de mecenas da arte e da cultura. Qualquer anúncio de peça de teatro, show ou filme produzidos nos últimos dez anos leva os dois logotipos. Nos outros setores esse apoio desapareceu. Muitos dos que fazem oposição à política econômica do PT preferem dizer de uma forma simples que, segundo o velho estilo da esquerda, o governo se vendeu ao empresariado, foi cooptado por ele e, portanto, obedece ao que ele determina.

Certamente há algo de verdade, no sentido de que a influência do empresariado sobre a administração Lula é maior do que se esperava. Mas seria reducionismo vulgar pensar que as projeções do empresariado vão diretamente ao coração da política econômica que o governo pratica. Em primeiro lugar, porque há evidentes contradições entre certos aspectos da política econômica e alguns interesses do empresariado. Numa área como o comércio, extremamente sensível à política de juros, é evidente que a praticada pelo governo não faz muito afago ao empresário.

De outro lado, parece também que boa parte do empresariado industrial não se encontra reconhecido nessa política. Restaria dizer que os interesses do capital financeiro determinam a política do governo Lula. Ainda que haja algum grau de verdade nisso, é preciso saber por quê. De fato, aparentemente existe, em primeiro lugar, um conjunto de constrangimentos externos muito fortes, que anulam a política, mas não só isso. Desde a crise da dívida no começo dos anos 1980, o processo de acumulação de capital no Brasil se extroverteu quase inteiramente. Em outras palavras, não pode haver mais acumulação de capital no país, a não ser passando pelo mercado internacional. Nosso capitalismo periférico é obrigado a seguir quase compulsoriamente todos os avanços técnico-científicos que são introduzidos na produção. Um exemplo simples: toda a indústria de telecomunicações está correndo atrás do prejuízo, porque alguma transformação tecnológica está sendo implantada, ao passo que os investimentos feitos anteriormente estão condenados à obsolescência acelerada. Portanto, exige-se uma taxa de investimento altíssima para ficar no nada. Isso é um constrangimento estrutural do qual dificilmente se pode fugir, a não ser que tivéssemos praticado, há 20 anos, uma política parecida com a da Coréia do Sul, partindo até de pontos muito mais baixos do processo de inovação técnico-científica.

Todo o serviço da dívida externa e interna apresenta-se com muita força e, portanto, não é satisfatório simplesmente dizer que a política obedece a determinações que vêm do empresariado. Pode haver algum grau de verdade nisso, mas a questão é muito mais complicada. E essa situação ocorre precisamente quando a base social, que sustentou o PT durante todo o seu processo ascensional, encolhe e retira a força política do governo. As formações partidárias, portanto, têm pouco a ver com esse quadro, e a tentativa de refazê-las leva a menos representatividade com menos governabilidade. Ao contrário do que se pensa, ampliando-se o arco de alianças, encolhe-se a governabilidade.

Quais são, então, as forças sociais que podem se transformar em forças políticas e, portanto, caucionar um novo processo de desenvolvimento? Evidentemente, a esperança do governo FHC em seus dois mandatos era que a desregulamentação de atividades econômicas, a tentativa de tirar o Estado de setores produtivos importantes e a suposição, essa ficção que percorre vários setores, de que existe um enorme excedente de capital no mundo fariam com que políticas audaciosas pudessem resolver o crônico problema brasileiro da incapacidade da poupança em financiar o investimento. Foi um equívoco pelo qual pagamos caro. A resposta neoliberal, pelo que se vê até aqui, fracassou. Ela não tem essa capacidade, mesmo porque estamos em presença de competidores poderosos no mundo. A resposta desenvolvimentista, cuja expressão mais estruturada e consistente foi Carlos Lessa no BNDES até algum tempo atrás, apesar de bem-intencionada, é insuficiente. Todas as grandes políticas desenvolvimentistas que tivemos, para falar só das de Getúlio Vargas e de Juscelino Kubitschek, foram fortemente discriminatórias. Na verdade, na Avenida Paulista deveria haver duas estátuas, a de Vargas e a de Kubitschek.

Onde fazer a discriminação agora, de um grupo para outro, de uma região para outra? A falta de percepção da estrutura real de interesses no Brasil cobra um preço muito alto. Mesmo a dicotomia capital financeiro e capital produtivo é de difícil reconhecimento na prática, todos os grandes grupos econômicos também têm seu banco e aparece às vezes o paradoxo de que, enquanto a Volkswagen pode perder na venda, pode ganhar no financiamento. Em outras palavras, o quadro é muito complexo para comportar políticas fáceis de discriminação.

Sem poder discriminar, o governo recua e adota a posição que vem dando certo do ponto de vista da condução da política econômica. Existem setores importantes que continuam com desempenho muito bom, como o agronegócio, como algumas exportações de bens até altamente complexos, Embraer, automóveis, mas, em geral, as vendas externas brasileiras repousam em bens de baixo valor agregado, minério de ferro e toda a pauta do agronegócio, que aliás tem um forte componente predatório em que seria preciso prestar atenção. Nessa indefinição, os automatismos institucionalizados conduzem a economia e dispensam a política.

Isso é grave porque o cidadão comum só influi na economia através da política. Os cidadãos não têm poder sobre as empresas, não só porque o sistema é de livre iniciativa, mas sobretudo devido à enorme dimensão delas no mundo contemporâneo. Como influir nesse sistema econômico de livre iniciativa e de um grau de concentração muito alto? Através da política, que é a lição dos últimos 80 anos no Ocidente, sobretudo no que se chamou de "os 30 anos gloriosos". O Estado de bem-estar social não foi outra coisa senão uma equação em que a política influía fortemente na economia. A situação não é mais a mesma, essas relações foram sensivelmente deterioradas e o que fica é certa irrelevância da política e inutilidade de nosso voto. Não votei em Henrique Meirelles, e ele tem mais poder do que todos os deputados e senadores juntos para influir no orçamento da União e na vida cotidiana. Esse é um dilema moderno de todas as democracias no mundo, principalmente na periferia capitalista, e no Brasil é especialmente grave. A única possibilidade que tenho de influir é através da política, mas ela está se tornando irrelevante.

 

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