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Falta de apetite

Iniciativas públicas e privadas tentam despertar gosto pela leitura

DENISE NATALE e CECÍLIA ZIONI


Megastore: exceção à regra / Foto: Paulo Pita

No Brasil dos contrastes, o desempenho do mercado editorial não foge à regra. Best-sellers, como O Código Da Vinci, de Dan Brown, publicado pela Editora Sextante, com mais de meio milhão de exemplares vendidos somente em 2004, ou o lançamento cercado de agressivas estratégias de marketing de O Zahir, de Paulo Coelho, pela Editora Rocco, no começo deste ano, com tiragem inicial de 320 mil exemplares, fazem o contraponto num setor ainda marcado pelos piores índices de desempenho da economia nacional.

De acordo com o Indicador de Analfabetismo Funcional, de 2003, elaborado pelo Instituto Paulo Montenegro em conjunto com a organização não-governamental (ONG) Ação Educativa, apenas 25% dos brasileiros têm capacidade plena de leitura. Esse levantamento, realizado entre uma população de 15 a 64 anos de idade, mostra que 8% são totalmente analfabetos, outros 37% conseguem ler frases e enunciados curtos e 30% estão limitados a entender apenas informações simples.

Em um ranking sobre nível da educação em 127 países, divulgado em 2004 pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), o Brasil se situa em 72º lugar. É por isso que qualquer iniciativa que vise incentivar a leitura, na opinião de Frederico Barbosa, pesquisador de Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), deve priorizar a questão da educação. "Não adianta contar com uma política de oferta de livros a custo baixo, se não for desenvolvido o gosto pela leitura", diz ele.

Por enquanto, essa não é uma atividade que empolgue muito o brasileiro. O país apresenta uma baixíssima média de leitura: 1,8 livro por habitante ao ano, o mesmo patamar de Rússia, Argentina e México. Fica bem atrás dos Estados Unidos, onde esse índice é de 11 livros, ou da França, com 7, e até da Colômbia, com 2,4, segundo dados divulgados pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) e pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel).

O mercado editorial vem registrando quedas sucessivas de receita desde 1991, quando vendia 290 milhões de exemplares. Em 2003, o total não passou de 255 milhões. Na maior parte das 3 mil editoras brasileiras - que empregam cerca de 20 mil funcionários - o faturamento não chega a R$ 1 milhão por ano, e apenas 5% delas superam os R$ 50 milhões. Dentre todas elas, não mais de 500 conseguem publicar pelo menos cinco títulos por ano - e o governo é o principal cliente. Dados de 2004 sobre produção e vendas do setor ainda não foram consolidados, mas Paulo Rocco, presidente do Snel, adianta que a tendência de queda se mantém.

"Dos mais de 180 milhões de brasileiros, nosso público consumidor resume-se a cerca de 26 milhões, ou seja, as vendas são absolutamente insignificantes", lamenta-se Oswaldo Siciliano, presidente da CBL e que está há 54 anos nesse ramo. Em sua opinião, o desenvolvimento econômico e social está diretamente ligado a essa questão. "Enquanto o mais simples agricultor não tiver acesso ao livro, o crescimento do país ficará comprometido."

Reação

O mercado nacional registra tiragens médias de 3 mil exemplares, e as vendas ainda estão longe de acompanhar a expansão do PIB. Por esse motivo, a questão merece ser tratada como prioridade, alertam lideranças envolvidas na cadeia de produção do livro - editores, livreiros, gráficos, etc. Nos últimos tempos, foram surgindo ações importantes para tentar reverter esse quadro de crise, como uma mobilização mais efetiva nas três esferas de governo - federal, estadual e municipal -, além de se multiplicarem iniciativas do setor privado e de organizações não-governamentais, cujos primeiros resultados começam a aparecer. A partir do consenso de que o país precisa incentivar a leitura, ficou claro que a solução passa, pelo menos, por equipar cada município com uma biblioteca pública.

Empresas privadas, como as Organizações Globo, decidiram fazer do livro parte integrante da vida do cidadão. Com esse objetivo, mais do que apenas produzir novelas baseadas em romances, introduziu-se a prática do merchandising social: em determinados capítulos, por exemplo, aparece um ator lendo um livro ou uma cena se desenrola numa livraria. Além disso, no intervalo das partidas transmitidas pela TV Globo, jogadores e técnicos de futebol passaram a dar dicas de leitura.

Novas campanhas estão previstas para este ano, a exemplo da estrelada pela cantora Vanessa Camargo, como parte do programa São Paulo - Um Estado de Leitores, da Secretaria de Estado da Cultura, em que ela aparece em 44 outdoors espalhados pela cidade dizendo-se apaixonada por leitura e declarando que lê um livro por semana. De olho no público jovem, o canal Music Television (MTV) desde 2003 insere em sua programação mensagens rápidas de incentivo à leitura. Numa tela preta, em tom imperativo, surge a mensagem: "Desliga [sic] a televisão e vá ler um livro". Até o final do semestre, o Grupo Abril e a Associação Brasileira de Editores de Livros (Abrelivros) devem definir o cronograma de projetos conjuntos de incentivo à leitura em escolas.

Entidades de classe, num reflexo do que ocorre nas empresas, desenvolvem programas que vão desde a alfabetização à educação continuada, para aumentar tanto o hábito de leitura como o nível de escolaridade de seus associados. Ações como essa já são tradicionais no chamado Sistema "S" - Sesc, Senac, Sesi e Senai.

No âmbito federal, o projeto maior é o Plano Nacional do Livro e da Leitura, conhecido por Fome de Livro, do Ministério da Cultura, que pretende elevar em 50% o índice de leitura do brasileiro nos próximos três anos. Para tanto, está prevista a instalação de mil bibliotecas, cada qual com acervo de 2 mil obras selecionadas por 50 especialistas, até o final de 2006, informa o coordenador do plano, Galeno Amorim.

Menos impostos

Em dezembro de 2004, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto que elimina a incidência de PIS e Cofins sobre a comercialização de livros, o que terá como resultado, já em 2005, uma injeção de R$ 168 milhões no setor, calcula Amorim. A redução de custo começará a ser sentida gradualmente pelo consumidor ao longo deste ano, diz ele. Animadas pelo incentivo, as editoras Companhia das Letras e Record já anunciaram o lançamento de séries de livros de bolso, que terão preço entre R$ 5 e R$ 15.

Com base num estudo encomendado aos economistas Fábio Sá Earp, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e George Kornis, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ver texto abaixo), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em conjunto com o Ministério da Cultura, divulgou, em maio, um pacote de medidas para facilitar a concessão de recursos ao mercado editorial. Baixou de R$ 10 milhões para R$ 1 milhão o valor mínimo a ser captado pelas empresas, o que permite acesso ao crédito a um número maior de editoras. Também foi expandida para até 80% a participação do BNDES nos projetos, além de ter sido elevado o teto de uso do Cartão BNDES-PróLivro (cartão de crédito para micro, pequenas e médias empresas, que financia, em condições especiais, a compra de papel de impressão) de R$ 50 mil para R$ 100 mil.

Mesmo sem atender integralmente toda a demanda, o novo plano começa a arejar o setor, em especial os pequenos editores, os mais ignorados na cadeia da economia do livro. Oswaldo Siciliano, da CBL, considera positivo o impacto dessas medidas, embora saliente a necessidade do estabelecimento de uma política efetiva para o livro.

Outros importantes passos estão sendo dados, como a Lei do Livro, que desde outubro de 2003 tramita no Congresso Nacional e cuja finalidade é nortear ações oficiais de fomento. A Câmara Setorial do Livro e Leitura, criada no ano passado com a missão de traçar políticas para a área editorial, já organiza e mantém encontros regulares com representantes das cinco macrorregiões do país.

O estudo "Perspectivas do Mercado Editorial e Livreiro", do Ministério da Cultura, revela que as editoras brasileiras planejam investir até o final deste ano R$ 239 milhões - 48% mais que em 2004 - no lançamento de títulos, em modernização tecnológica, na ampliação do negócio e na criação de novos selos editoriais. O varejo - as livrarias - também reflete algum otimismo. O setor prevê destinar R$ 4,7 milhões neste ano, mais que o dobro de 2004, à ampliação de pontos-de-venda e à oferta de livros. "É ainda muito pouco para a realidade brasileira", queixa-se Eduardo Yasuda, presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), que estima crescimento médio de 5% para 2005.

O fato é que, dos mais de 5,5 mil municípios brasileiros, apenas 1,5 mil têm livrarias ou pontos-de-venda de livros, dos quais 50% localizam-se na região sudeste. Não têm acesso a livros 14 milhões de brasileiros apenas porque moram em cidades onde não existe sequer uma banca de jornal.

Em contrapartida, grandes redes de livrarias - num total de 350 - aproveitam a desoneração fiscal e programam investimentos para expansão, apostando no aquecimento de um mercado que já contabilizou boas vendas no Natal de 2004. A rede Siciliano, a maior do país, com 53 unidades, espera crescer 10% este ano, além de incrementar suas vendas pela Internet. A paulista Livraria Cultura, que desde 2000 vem penetrando em outros estados, abre sua quinta filial, desta vez em Brasília. A rede Saraiva, satisfeita com o lucro recorde de R$ 18,2 milhões em 2004, prevê crescimento de 18% para 2005. Livros, ao lado dos discos, já são o produto mais vendido pela Internet.

Há ainda uma série de outras promoções do setor privado - feiras do livro em Porto Alegre, Ribeirão Preto (SP), Passo Fundo (RS), que existe há 30 anos, e a mais nova, de Paraty (RJ), além das bienais de São Paulo e do Rio de Janeiro -, que atraem público variado e cujo principal efeito tem sido colocar o assunto em evidência na mídia. No geral, os resultados econômicos, ante os custos, não são relevantes para as grandes editoras e livrarias, e as pequenas e médias têm pouco acesso a essas promoções comerciais.

Até mesmo a indústria gráfica, que já viveu momentos melhores, espera aumentar em 11% seu faturamento deste ano. O setor, que conta com 15 mil estabelecimentos, dos quais 13,5 mil de pequeno porte, com menos de 20 funcionários, obtém 25% de seu faturamento da produção de livros e revistas, mas o mercado se retraiu em mais de 30% entre 1997 e 2004.

Mário César de Camargo, presidente nacional da Associação Brasileira da Indústria Gráfica (Abigraf), lembra que a crise começou quando o mercado editorial passou a imprimir seus livros no exterior, devido aos custos mais baixos. Hoje ocorre o inverso, e o setor até produz ou exporta livros para países como Argentina e Chile. Com as compras do governo, que representam 45% do faturamento, foi possível sobreviver à crise, acrescenta Camargo, em cuja opinião a recente desoneração fiscal e a maior oferta de crédito possibilitarão a renovação de parques gráficos e ganhos de produtividade.


Ribeirão das Letras

De 2001 para cá, muita coisa mudou em Ribeirão Preto (SP), cidade de pouco mais de 500 mil habitantes, desde o lançamento do Programa Ribeirão das Letras, uma espécie de lei do livro que prevê verbas orçamentárias para ações e projetos de incentivo à leitura, além da promoção de atividades integradas que envolvam poder público, escolas, universidades, bibliotecas, escritores, entidades literárias, empresas privadas e organizações não-governamentais. Como resultado, houve um crescimento espetacular no índice de leitura por habitante, que passou de 1,8 exemplar lido por ano em 2001 para 9 atualmente.

Não há registro de nada semelhante no país. Antes, a cidade dispunha de três bibliotecas municipais. Hoje, são 80, instaladas em escolas, centros culturais, clubes, sindicatos, ONGs, presídios, unidades para menores infratores, e há até ônibus-biblioteca, que visitam a zona rural. O acervo médio é de 3 mil exemplares e, o que é importante, renovado todos os anos, conforme prevê a legislação. O programa foi inaugurado pelo ministro Antonio Palocci, quando era prefeito da cidade, e colocado em prática por Galeno Amorim, então secretário municipal de Cultura.

Outra iniciativa importante na cidade é a Feira Nacional do Livro, que reúne 300 mil visitantes no mês de setembro e se tornou a segunda maior feira a céu aberto do país, atrás apenas da que acontece em Porto Alegre. Para o evento são convidados escritores de destaque nacionais e internacionais, mas não se deixam de lado os autores regionais.

Para o superintendente da Fundação Instituto do Livro de Ribeirão Preto, Edvaldo Arantes, essas ações deixaram claro que é possível estimular o gosto pela leitura e colher bons resultados. "Tudo isso foi alcançado em curto espaço de tempo", ressalta.


Artigo de primeira necessidade

Ao longo de 18 meses e com base em detalhada pesquisa, os economistas Fábio Sá Earp, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e George Kornis, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, realizaram a mais completa radiografia do mercado editorial brasileiro feita até hoje. O estudo, encomendado pelo BNDES, revela a real dimensão da crise do setor e mostra que o crescimento do PIB não implica, necessariamente, aumento de vendas.

Segundo Sá Earp, o trabalho sugere tratar o livro como artigo de primeira necessidade, por meio de um conjunto de políticas capazes de atuar sobre a demanda no país. Uma das metas propostas é aumentar para até 5 a taxa de consumo de livros por habitante em uma década. Para isso, fazem-se necessárias novas linhas de crédito, com prazos de pagamento mais longos, além de recursos para financiamento da produção e comercialização de livros brasileiros, inclusive para exportação, da criação de um Fundo Nacional do Livro e da definição de uma política clara para orientar as compras feitas pelo governo.

O investimento público em bibliotecas é um ponto crucial nesse quadro. O estudo sugere que o governo destine o mesmo valor gasto atualmente com a compra de livros didáticos, que é de R$ 450 milhões por ano, ao aumento do acervo de bibliotecas. Essa verba seria usada não apenas para atender as duas maiores bibliotecas públicas do país - Nacional, no Rio de Janeiro, e Mário de Andrade, em São Paulo -, além das universitárias, mas também para aumentar as compras destinadas às menores, muitas delas mal administradas e de acervo precário. Parte das aquisições poderia ser feita nas próprias livrarias das cidades onde se localizam as bibliotecas, estimulando, indiretamente, também esse outro ramo de atividade.

Produzir mais e baixar os preços, criar o vale-livro para estudantes universitários de baixa renda e diminuir o encalhe do que é produzido - que em 2003 foi de 44 milhões de unidades, ou seja, 15% da produção - são algumas outras providências recomendadas no estudo.

 


Próxima estação: leitura

Desde setembro de 2004 funciona na Estação Paraíso do metrô paulistano o Embarque na Leitura, parte do programa São Paulo - Um Estado de Leitores, criado em 2003 pelo governo estadual para incentivar a leitura e facilitar o acesso aos livros a qualquer cidadão. Ali já foram cadastrados 7 mil leitores, que retiraram mais de 23 mil exemplares para ler em casa. Com um acervo de 4 mil títulos, a biblioteca oferece também volumes em braile.

Os livros retirados devem ser devolvidos dentro de dez dias. É um prazo razoável, segundo se apurou entre o público feminino, que representa dois terços do total de leitores. A maioria dessas mulheres tem escolaridade de nível médio completo ou superior.

O objetivo do Embarque na Leitura, em sua primeira etapa, é montar nove bibliotecas em estações do metrô. A próxima será instalada, ainda este ano, no ramal da zona leste, contando com parceria de empresas privadas, informa José Luis Goldfarb, coordenador do programa.

Segundo ele, graças ao trabalho do governo estadual, em conjunto com a iniciativa privada, os 84 municípios paulistas que há três anos não contavam com bibliotecas públicas agora dispõem de uma unidade. Hoje, há salas de leitura instaladas inclusive em locais como conjuntos habitacionais, hospitais públicos, presídios, escolas de samba e favelas, cada uma das quais com acervo de cerca de mil livros. "Há ainda muito a ser feito", afirma Goldfarb. "Se não existem mais municípios sem bibliotecas, a tarefa agora é equipar, recuperar e melhorar o acervo de muitas delas."

 

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