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Brilho nas montanhas

Reserva do Caraça: história fascinante e natureza incomparável

HERBERT CARVALHO


A igreja e o antigo colégio restaurado / Foto: Paulo A. Mariano

"Só o Caraça paga toda a viagem a Minas." É impossível não partilhar dessa opinião de dom Pedro II após uma estada na Reserva Particular do Patrimônio Natural do Caraça, cuja origem foi uma ermida construída em 1774, onde funcionou por quase 150 anos um famoso colégio interno e que hoje hospeda visitantes do mundo inteiro, atraídos principalmente pelo turismo ecológico. A imperial frase faz justiça ao belíssimo cenário que se abre diante do santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens, a primeira igreja do Brasil em estilo neogótico. Ladeado por duas edificações horizontais de igual tamanho, que no passado abrigavam o claustro dos padres e hoje acolhem os turistas em confortáveis apartamentos, o templo se encontra no coração de uma área preservada de 11 mil hectares, no contraforte da serra do Espinhaço, a 1,3 mil metros de altitude e a apenas 120 quilômetros de Belo Horizonte.

Louvado também por viajantes estrangeiros do início do século 19, como o naturalista francês Saint-Hilaire ou os alemães Spix e Von Martius, o santuário do Caraça oferece há mais de 200 anos uma natureza exuberante, com uma vegetação que ora é de mata atlântica e ora é de cerrado, pois está localizado justamente na área de transição entre os dois biomas.

O visitante previamente munido de um par de botas (para evitar as cobras) e repelente contra insetos pode desfrutar, num raio de 6 quilômetros da sede do parque, de cascatinhas e cascatonas, grutas, piscinas naturais, tanques e banhos de rio. Por trilhas mais longas, que requerem guias especializados, pode-se chegar aos picos mais próximos, como o do Sol e o do Inficionado, que ultrapassam os 2 mil metros. Há ainda o Gigante do Caraça, cujo contorno contra o horizonte faz lembrar, em especial ao pôr-do-sol, um enorme rosto deitado de perfil, o que inspirou os primeiros bandeirantes ali chegados a designar o lugar pelo nome que até hoje tem.

Entretanto, mesmo acrescentando animais raros como o lobo-guará e o macaco sauá, e dezenas de espécies de pássaros como o beija-flor-de-gravatinha (um dos menores do mundo), a natureza é apenas uma das atrações do Caraça. A outra é sem dúvida a história fascinante do colégio construído de pedra que ali funcionou de 1820 a 1968, quando pegou fogo, e que hoje, restaurado, abriga um museu e uma biblioteca de fazer inveja àquela de que fala Umberto Eco em O Nome da Rosa. Porém, antes de descrever esse tesouro cultural que inclui quadros do barroco mineiro, convém saber quem são os religiosos que, numa saga de dois séculos, criaram e até hoje mantêm esse santuário nas montanhas.

Fundador misterioso

Há pouca informação e muita lenda sobre o fundador do Caraça. Os fatos: nunca revelou seu nome civil; em testamento afirmou apenas ser natural de Nagozelo, diocese de Lamego, em Portugal. No Brasil, o primeiro vestígio de sua presença é de 1763, na Capela de Santo Antônio, no Arraial do Tijuco (atual Diamantina), onde recebe o hábito da Ordem Terceira de São Francisco e jura defender a Imaculada Conceição da Virgem Maria. A partir daí adota o nome pelo qual ficou conhecido: irmão Lourenço de Nossa Senhora.

A lenda: irmão Lourenço pertencia à família Távora, responsabilizada pelo marquês de Pombal por uma tentativa de regicídio contra el-rei dom José I, em 1758. Todos os membros dessa família foram torturados e queimados, à exceção de um deles, o jovem Carlos Mendonça Távora, que fugiu e teve queimada apenas a sua efígie. Teria vindo ocultar-se em Minas Gerais, onde passou despercebido entre tantos aventureiros à procura de ouro e pedras preciosas.

Novamente os fatos: em 1770 o irmão Lourenço doa seus bens e sai de Diamantina para a região do Caraça, onde em 1774 ergue "em distância de três léguas da matriz de Catas Altas uma capela da invocação de Nossa Senhora Mãe dos Homens ", como diz o requerimento que encaminhou ao príncipe regente.

A capela transforma-se em pouco tempo numa igreja, pintada e dourada por Manoel da Costa Ataíde (1762-1837), artista barroco que fez em pintura aquilo que o Aleijadinho nos legou em escultura, inclusive um quadro da Santa Ceia que se conserva no local até hoje, assim como dois dos altares originais, com imagens de Nossa Senhora da Piedade e do Sagrado Coração. À direita e à esquerda da igreja se constroem duas alas de dois andares, cada uma com seis janelas, para a hospedagem dos irmãos, peregrinos e escravos.

Em 1819 o irmão Lourenço morre com idade avançada, sem, entretanto, ter realizado o sonho de ver sua casa transformada em residência de missionários e escola de meninos.

"Mando-te para o Caraça!"

Em 1820, carta régia de dom João VI faz a doação do Caraça à Congregação da Missão, de origem francesa, cujos padres são conhecidos também como vicentinos ou lazaristas. A primeira designação refere-se ao fundador São Vicente de Paulo (o "Apóstolo da Caridade"), e a segunda ao bairro de Saint-Lazare, em Paris, onde funcionou o primeiro orfanato dessa ordem religiosa.

Quem recebe a doação com a incumbência de cumprir o testamento do irmão Lourenço e fundar o colégio em nome da Congregação da Missão - que até hoje comanda o Caraça - são dois missionários portugueses chamados de Lisboa no ano anterior, Leandro Rebelo Peixoto e Castro e Antônio Ferreira Viçoso. Este último, além de criador do colégio, foi bispo da diocese de Mariana durante 31 anos. Seu retrato pintado a óleo se destaca no refeitório ao lado de outro do irmão Lourenço e de uma imensa paisagem do Caraça, encomendada por dom Pedro II.

Em 1821 o colégio abre as portas para 14 alunos, mas em 1824, quando dom Pedro I confere o título de Imperial à Casa do Caraça, já são 85, e chegam a 150 nos anos seguintes. Em quase um século e meio de funcionamento, até 1968, quando foi consumido por um incêndio, passaram pelo Caraça mais de 10 mil alunos internos, dos quais cerca de 7 mil colegiais e 3 mil seminaristas.

Como os lazaristas usavam, em seus colégios, os mesmos métodos dos jesuítas, a formação cultural e religiosa dada aos alunos era sólida e de caráter humanista, centrada no estudo do latim, do grego, da língua pátria e da geografia. Em 1854, quando além de colégio se transformou em seminário para os que seguiriam a carreira eclesiástica, agregaram-se matérias como filosofia escolástica, teologia dogmática e moral, direito canônico, hermenêutica, liturgia e eloqüência sagrada. Vestígios desses ensinamentos, em grego e latim, podem ser encontrados entre os 40 mil volumes que atualmente compõem a biblioteca.

Além da qualidade do ensino, imperava a rigorosa disciplina da palmatória, utilizada também pelos pais de diferentes partes do Brasil para intimidar os filhos indisciplinados e sintetizada em um bordão que se tornou célebre (consta até da obra infanto-juvenil de Monteiro Lobato): "Mando-te para o Caraça".

No século 19, o Caraça foi mais colégio do que seminário, e no século 20 o contrário, mas tanto numa função como na outra seus resultados foram expressivos, principalmente em contraste com a crise educacional que o país vive neste início de século 21.

Ali foram formados 500 sacerdotes e 18 bispos, mas também 114 deputados e senadores, dois presidentes da República - Afonso Pena e Artur Bernardes -, dois vice-presidentes, 15 governadores, como o mineiro Olegário Maciel e outros de estados tão díspares como o Amazonas e o Rio Grande do Sul, passando pelas regiões nordeste e sudeste. Dessa vertente educacional diria o ex-presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, que não estudou lá e sim no seminário de Diamantina, que ao lado do seminário de Mariana completa a tríade religiosa e pedagógica comandada pelos lazaristas em Minas: "Caraça, Mariana e Diamantina foram os marcos definidores de uma civilização".

O incêndio

Às 3 horas da madrugada do dia 28 de maio de 1968 - no mesmo mês e ano em que as labaredas da rebeldia juvenil se alastraram por Paris e outras capitais - um incêndio põe fim à epopéia educacional do Caraça. Dormitórios, salas de aula, o teatro, gabinetes de física e química, farmácia, a oficina de encadernação onde um aluno esquecera ligado o fogareiro elétrico e parte da biblioteca são implacavelmente consumidos pelas chamas.

A rápida ação dos padres garante a retirada dos 90 alunos que dormiam, e estes ajudam os religiosos a salvar, no espaço de uma hora, 14 mil dos 30 mil volumes da biblioteca. Escapam do fogo 1,5 mil obras raras dos séculos 15 a 18 - inclusive uma História Natural de 1489, um dos primeiros livros impressos no mundo -, que permaneceram como as jóias de um acervo que pode ser consultado, e manuseado, livremente por hóspedes e visitantes. Também é resgatada, por meio de cordas, uma imagem de Nossa Senhora que ficava no dormitório situado no patamar mais elevado do edifício de três andares.

O fogo ficou confinado ao grande quadrilátero de pedra, sem passar para a igreja e as demais dependências do santuário. Sem alunos e professores, nem planos ou recursos para recuperar o edifício sinistrado, o Caraça entra em decadência até redescobrir, na segunda metade dos anos 80, sua inclinação para o turismo ecológico.

A ressurreição

Depois do incêndio, alunos e professores se foram, deixando para trás alguns poucos religiosos e empregados que, entretanto, se recusavam a permitir que o Caraça morresse. Em 1976, a inauguração da estrada asfaltada acende a esperança de ressurreição, que começa a ocorrer no final da década seguinte, quando a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) e a Companhia Vale do Rio do Doce liberam as verbas necessárias para recuperar as ruínas do colégio e transformar o antigo claustro dos padres na atual pousada, com capacidade para acolher até 160 turistas em confortáveis apartamentos.

Em 1994, um decreto do governo federal declara a área total do Caraça - inclusive uma fazenda encarregada de abastecer a pousada de todos os alimentos in natura que fazem a glória da culinária local - reserva particular do patrimônio natural. Para o padre Wilson Bellone, um mineiro neto de italianos, de 71 anos, que em 1958 estudou no próprio Caraça antes de se ordenar e hoje dirige o empreendimento turístico em nome da Província Brasileira da Congregação da Missão, essa proteção não é suficiente.

"Queremos que o Caraça seja declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Porque, além da natureza, aqui estão em jogo bens que também são religiosos, históricos, culturais e artísticos", diz o padre, que considera insuficiente até mesmo para a preservação ecológica o status atual do parque. "Estamos cercados de mineradoras que já devastaram as áreas verdes dos municípios de Santa Bárbara, Barão de Cocais e também de Catas Altas, do qual o Caraça faz parte. O apetite dessas empresas foi refreado pelo decreto que instituiu nossa reserva, mas preferimos ter um reconhecimento internacional para prevenir futuras investidas", conclui o religioso.

Diariamente, às 19 horas, o padre Wilson reza a missa, que em alguns domingos especiais tem o acompanhamento musical do imponente órgão de 700 tubos e fole elétrico, instrumento que em versão rudimentar existe ali desde os tempos de irmão Lourenço.

Depois da missa, fecham-se as portas da igreja, e os hóspedes se ajeitam nos bancos e degraus disponíveis do lado de fora, à espera do grande momento: a chegada do lobo-guará. Uma bandeja de metal com carne crua é colocada no pátio externo em frente à igreja, e um dos padres faz longa dissertação sobre os hábitos desse canídeo ameaçado de extinção. Às vezes ele vem, outras (raras) não, mas quem ficar no Caraça ao menos uma semana desfrutará com certeza de um espetáculo que recorda as cenas do filme Dança com Lobos. Quando o guará chega, exibindo seu belíssimo pêlo dourado, sem se impressionar com os flashes que espoucam, materializa-se a esperança de uma convivência harmoniosa dos homens com as demais espécies vivas do planeta.


"Não posso descrever tanta beleza"

A vocação do Caraça para encantar visitantes já se manifestava em 1816, quando o francês Auguste de Saint-Hilaire registrou suas impressões na obra "Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais": "No sopé destas montanhas há matos esparsos, mas nos cumes a vegetação é pouco abundante. Quase tudo é rocha nua. O viajante é surpreendido pela súbita e imprevista aparição de um edifício tão vasto, em tal altitude e tão distante de toda habitação. Quem chega se acha num terraço, diante do qual foi plantada uma fila de palmeiras que entrelaçam sua folhagem elegante. É neste terraço que se eleva a ermida ..."

Os alemães Spix e Von Martius, que por ali passaram em 1818, foram além: "A manteiga produzida aqui supera em paladar a dos Alpes suíços. Pesarosos deixamos este sítio paradisíaco". Em fevereiro de 1831, pouco antes de abdicar, dom Pedro I ali esteve em companhia da imperatriz dona Amélia. A visita da qual há marcas até hoje perceptíveis, entretanto, foi a do segundo casal real, dom Pedro II e Teresa Cristina, em 1881. Registrou o imperador em seu diário:

"Desde que se começa a subir a serra do Caraça, cresce a beleza da paisagem e do alto descobre-se vastíssimo horizonte, e depois uma das mais belas cascatas que conheço... Não posso descrever tanta beleza!", afirmou o monarca. O trecho onde se banhou no rio ficou imortalizado como o "Banho do Imperador", o quarto onde se hospedou está assinalado com uma placa e a cama em que dormiu o casal real integra o acervo do museu. Até uma das pedras da ladeira final da antiga estrada de acesso traz uma data e as armas imperiais, para assinalar que ali aterrissou o traseiro real, após um escorregão de Sua Majestade, que literalmente caiu do cavalo na hora da partida.

Apesar do incidente, dom Pedro II não recompensou a hospitalidade só com elogios: doou quadros e o vitral central da igreja, de 5 metros de altura, no valor de 500 mil-réis, além de mandar distribuir mais 400 mil-réis aos pobres dos arredores.


Informações úteis

O acesso a partir de Belo Horizonte se faz pela BR-262 com destino a Vitória, na qual se pega a rodovia estadual para Barão de Cocais. Depois dessa cidade e pouco antes da seguinte, Santa Bárbara, abre-se à direita a estrada para o Caraça. Quem vem de carro de São Paulo ou Rio de Janeiro deve atingir Ouro Preto e em seguida Mariana, de onde sai a estrada (asfaltada, como as demais) para Catas Altas. Uma alternativa é tomar um ônibus até a cidade vizinha de Santa Bárbara, e daí um táxi.

Todas essas cidades estão ao longo da antiga Estrada Real, o caminho que desde a época colonial vinha do Arraial do Tijuco (atual Diamantina) até Vila Rica (Ouro Preto), onde se bifurcava à esquerda para o Rio de Janeiro, passando por Barbacena e Três Rios, e à direita para Parati, passando por São João del Rei e Cunha, esta última já no estado de São Paulo.

A melhor época para caminhadas pelas trilhas é a estação fria, entre maio e setembro, mas convém levar casacos em qualquer período do ano. Se puder, evite feriados: o lugar vazio é ainda mais bonito.

Outras dicas: não se esqueça dos trajes de banho e, nas caminhadas, use botas e calças compridas, para prevenir mordidas de cobras. Para as trilhas mais longas, além de guia, é necessário sair cedo e levar o que comer e beber, pois não será possível voltar antes do almoço.

Quem quiser ler, nem precisa levar livros: os hóspedes podem retirar qualquer obra da biblioteca, à exceção apenas das mais antigas. No refeitório, no bar e na cantina há vinhos importados e nacionais, inclusive um saboroso vinho de jabuticaba, fabricado e engarrafado ali mesmo.

Reservas e mais informações pelo telefone (31) 3837-2698, que será também seu elo de ligação com o mundo, pois no Caraça não há cobertura de celular.

 

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