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Sangue estatal

Governo planeja instalar empresa para produzir hemoderivados

OSWALDO RIBAS


Arte PB

Os hemoderivados - produtos extraídos do sangue -, essenciais para a produção de vacinas e o tratamento de doenças como hemofilia, são tão importantes para a economia nacional quanto os softwares ou os bens de capital. Tanto é assim que o governo, por meio do Ministério da Saúde, decidiu incluir os fármacos e medicamentos na lista prioritária da política industrial do país e instalar a primeira empresa estatal, em mais de uma década de privatizações e de redução do Estado, para lidar exclusivamente com os produtos que têm o plasma sangüíneo humano como matéria-prima.

Após uma tramitação considerada rápida no Congresso Nacional, o governo, agora, começa a dar forma à Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), cuja meta é buscar a auto-suficiência na produção de hemoderivados, como os fatores 8 e 9, utilizados em larga escala no tratamento dos cerca de 10 mil hemofílicos espalhados pelo Brasil e de outros milhares de pacientes com doenças hepáticas ou provocadas pela Aids. De quebra, a nova estatal também terá a importante missão de aliviar a balança comercial brasileira em US$ 100 milhões anuais, gastos com a importação desses produtos.

"A Hemobrás deverá estar funcionando a todo o vapor em três anos", afirma o coordenador da Política Nacional de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde, João Paulo Baccara, também mencionado para vir a ocupar a presidência da nova estatal. "A empresa vai trazer autonomia para o Brasil numa área estratégica, considerada de segurança nacional", acrescenta ele, que estima o custo de implantação da fábrica em US$ 60 milhões, com boa parte dos recursos provenientes do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outra parcela vinda do Orçamento da União, já prevista no Plano Plurianual (PPA) 2004-2007. Quanto à meta de auto-suficiência, ele acredita que, por volta de 2010, o Brasil poderia entrar no seleto grupo de países que dominam a tecnologia dos hemoderivados e teria condições até de exportar os produtos para o mercado mundial, que movimenta vários bilhões de dólares anualmente, em especial nos Estados Unidos e na Europa.

Há, atualmente, 20 indústrias de hemoderivados no mundo, e apenas cinco fornecem ao Brasil. Essas empresas, bem como os próprios produtos, ganharam espaço na mídia depois que a Polícia Federal, em maio de 2004, prendeu funcionários da cúpula do Ministério da Saúde acusados de formar a "máfia do sangue". Utilizando um esquema de licitações dirigidas, eles superfaturavam preços nas compras de hemoderivados, desviando cerca de R$ 360 milhões dos cofres públicos (ver texto abaixo).

"O Brasil produz anualmente 100 mil litros de plasma, a matéria-prima para os hemoderivados, mas a Hemobrás terá de se associar a alguma companhia estrangeira se quiser trazer a tecnologia necessária para gerar produtos como a albumina e a imunoglobulina, que atendem, respectivamente, a pacientes com problemas renais crônicos e deficiências do sistema imunológico", explica Baccara. Ele lembra que há uma licitação internacional em curso para a transferência de tecnologia e, em breve, outra concorrência, desta vez para a construção da fábrica, deverá ser anunciada.

Apesar da ampla produção de plasma fresco congelado (PFC), matéria-prima para a obtenção de todos os hemoderivados, o Brasil ainda não dispõe de capacidade industrial suficiente para elaborar todos os tipos de derivados de sangue que supram a necessidade de consumo. Mais de 90% dos produtos, usados em diversas modalidades, são importados. Existem três fábricas em funcionamento no país que fracionam apenas a albumina proveniente do plasma, das quais duas são públicas: uma fica em Pernambuco e outra, no Distrito Federal. A empresa privada está instalada no Rio Grande do Sul.

A indústria pernambucana processa 20 mil litros de plasma por ano, a gaúcha, 12 mil litros, e a do Distrito Federal, 10 mil litros. A albumina resultante desses fracionamentos representa apenas 8,5% das necessidades do país.

Depois de uma intensa guerra fiscal entre vários estados brasileiros, o governo acabou optando por instalar a Hemobrás em Pernambuco, mais precisamente no município de Goiana, que fica ao norte do Recife. Pernambuco venceu a concorrência com Rio de Janeiro e São Paulo, sob o argumento de que a empresa poderia garantir ainda mais desenvolvimento à região. "A implantação da fábrica de hemoderivados em Goiana possibilita o surgimento de um pólo de biotecnologia no estado", diz o secretário de Desenvolvimento Econômico, Turismo e Esportes pernambucano, Alexandre Valença. O início das obras dessa unidade está previsto para o segundo semestre deste ano e deverá movimentar o setor da construção civil no estado, abrindo novos postos de trabalho. A previsão é que, após entrar em funcionamento, o que deve acontecer em 2007, a empresa gere 150 empregos diretos e cerca de mil indiretos.

Para o ministro da Saúde, Humberto Costa, a favor de Pernambuco também pesou o fato de o estado ter sido o primeiro a se candidatar a sede da Hemobrás e de a região já dispor de tradição em hemoderivados, com a atuação da Fundação Hemocentro de Pernambuco (Hemope), tida como uma das pioneiras no fracionamento do sangue para a obtenção da albumina. Ele destacou ainda que, com a iniciativa, o ministério contribui para a descentralização da produção técnica e científica brasileira, uma vez que a fábrica ficará fora do eixo Rio-São Paulo.

Críticas

Apesar da aparente boa vontade do Ministério da Saúde, as explicações quanto à escolha de Pernambuco para sediar a nova estatal não agradaram nem a São Paulo, nem ao Rio de Janeiro. Centros de pesquisa tecnológica nos dois estados apressaram-se a levantar questões como a capacidade pernambucana de produzir hemoderivados com os padrões internacionais de qualidade e, igualmente oportuno, o problema da logística. Como é o centro-sul que concentra a maioria dos hemofílicos do país, os técnicos viram com estranheza a opção por fabricar os produtos tão longe, elevando os custos de transporte e armazenagem. Também não passou despercebido dos críticos o fato de o ministro Humberto Costa não esconder de ninguém suas intenções de concorrer ao governo de Pernambuco nas eleições de 2006.

De todas as críticas, contudo, a que foi considerada mais pesada é a que pôs em dúvida a atualidade do empreendimento. Eduardo Cruz, presidente da Associação das Empresas do Pólo Bio-Rio, de biotecnologia, acha que, por definição, obter hemoderivados a partir do plasma humano é de um tempo que já passou. "Essas substâncias", diz ele, "podem hoje ser conseguidas, e de forma mais segura, através de uma tecnologia genericamente denominada DNA-recombinante ou r-DNA, que nada mais é do que a promoção de uma alteração na estrutura fundamental do DNA de determinadas linhagens celulares que, em laboratório ou em escala industrial, passam a produzir substâncias com interesse terapêutico, analítico ou industrial." Cruz, que abertamente vem se opondo ao formato atual da Hemobrás, esclarece que alguns medicamentos, antes obtidos somente da extração química de tecidos humanos ou animais, são hoje disponibilizados a partir do cultivo celular. Um exemplo concreto é a insulina humana recombinante, idêntica àquela que o organismo humano produz, um medicamento mais seguro e eficiente. Cético, ele menciona os riscos dos fatores de origem plasmática - as viroses conhecidas e as desconhecidas -, além dos erros humanos na manipulação, e assegura que não há viabilidade financeira e econômica de uma planta industrial de produção de hemoderivados oriundos do plasma humano.

Para fortalecer suas opiniões, um estudo recente de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) indica que com pouco mais de 20% dos US$ 60 milhões gastos todo ano para importar só o fator 8 é possível erguer uma fábrica de proteína recombinante, considerado um produto mais moderno e seguro que o plasma humano e capaz de dar a auto-suficiência ao Brasil. Com base no processo produtivo das três multinacionais que vendem o fator 8 recombinante no mundo, os pesquisadores da UFRJ divulgaram dados que mostram a possibilidade de instalar uma linha de produção no país com investimento total de US$ 12,7 milhões. Os números surpreenderam os especialistas, porque atestam que é possível comercializar o fator 8 recombinante por preço bem mais baixo do que o praticado pela indústria.

João Paulo Baccara reconhece que o governo ainda não tem estudos sobre a viabilidade de produção de fatores recombinantes, mas garantiu que essa será uma das prioridades da Hemobrás. Ele aventou, contudo, que os preços dos produtos obtidos via engenharia genética são ainda muito altos e "impraticáveis para políticas públicas de saúde". Quanto à segurança dos processos, ele assegurou que o Brasil está bastante adiantado na área de hemoderivados e hemoterapia e, como prova, afirma que ocorreu uma queda drástica, nos últimos dez anos, de contaminações pelo uso de derivados.

Voz dos hemofílicos

Integrante do grupo mais interessado no equacionamento, pelo governo, do problema dos hemoderivados, Luis Felipe Machado Barzocchini, ex-presidente da Associação dos Hemofílicos do Rio de Janeiro (AHRJ), afirma que o sentimento em relação à Hemobrás é, ao mesmo tempo, de felicidade e preocupação: "De um lado, a expectativa com uma linha de montagem nacional desses produtos, sem mais a necessidade de importação especialmente dos fatores 8 e 9, é de o governo conseguir acabar de vez com a escassez dos hemoderivados e, o que é melhor, reduzir o preço unitário, tornando-os ainda mais acessíveis aos hemofílicos que se tratam nos hemocentros do Sistema Único de Saúde (SUS)", diz. "De outro lado, receamos pela qualidade dos produtos e falhas na distribuição que, hoje, impedem o hemofílico de buscar um atendimento mais amplo que envolva também prevenção."

Ele próprio um hemofílico, Barzocchini, no entanto, prefere dar um voto de confiança à iniciativa do governo: "Certamente, a criação da Hemobrás indica que o Ministério da Saúde está finalmente entendendo a gravidade da situação, não apenas nas grandes capitais, mas nas várias regiões do país, já que hemofílicos existem em todos os lugares". Como sugestão, ele defende uma maior integração entre as secretarias de saúde, com mais canais de comunicação, para que as informações fluam com maior rapidez e, com elas, cresça a eficiência do sistema.

O professor Dalton Chamone, presidente da Fundação Pró-Sangue de São Paulo - o principal hemocentro da América Latina - e uma das maiores autoridades no assunto, também é favorável à criação da Hemobrás. "Por questão de coerência, acho oportuna a produção de hemoderivados no Brasil", diz ele. "Historicamente, desde 1992, época em que o doutor Adib Jatene era ministro da Saúde, nos empenhamos para promover a produção de hemoderivados em nosso país e, sinceramente, acho que esse investimento trará benefícios compatíveis com a população hemofílica brasileira."

Para Chamone, não se pode esquecer que quase todo o plasma resultante das doações de sangue é potencialmente descartado, quando não utilizado para a produção de hemoderivados, o que significa uma perda inestimável. Ele, contudo, acha temerário que o centro produtor fique distante das principais áreas consumidoras e de maior coleta de sangue. "O plasma possui proteínas que requerem cuidados especiais de coleta, refrigeração rápida e armazenamento, o que traz o risco iminente de deterioração durante o transporte, além do óbvio aumento de custo, que se refletirá no preço final do produto."

Na opinião de Chamone, os maiores desafios para a criação da Hemobrás residem na escolha da técnica adequada e de um parceiro com larga experiência na produção de hemoderivados. "O controle de qualidade do produto final é crucial; são conhecidos os problemas técnicos, como também os de contaminação, em fábricas nos Estados Unidos e na Europa, inclusive em indústrias tradicionais, com reconhecida competência técnico-científica. Paralelamente à criação da Hemobrás, o governo deveria regulamentar o assunto, estabelecendo normas e estratégias para obtenção adequada do plasma, com vistas à produção industrial apropriada."

Soberania

De acordo com a política industrial em vigor no Brasil desde 2004, baseada na promoção de quatro áreas estratégicas - software, componentes eletrônicos, bens de capital e produtos farmacêuticos -, a Hemobrás está perfeitamente articulada e se insere nas ações de políticas públicas que tratam da modernização industrial, inserção externa e competitividade, incentivo ao investimento, além de inovação tecnológica. No final do ano passado, o governo havia anunciado que canalizaria quase R$ 15 bilhões em créditos - principalmente por meio do BNDES - para fortalecer o desenvolvimento desses setores. Até agora, no entanto, o BNDES concedeu apenas R$ 660 milhões com esse objetivo.

Entre os mais otimistas está Mário Salerno, diretor da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), responsável pela condução da estratégia que visa colocar a indústria nacional no pódio de competitividade global. Entusiasta da Hemobrás, ele acha que estão equivocadas todas as críticas tanto quanto à capacidade de a nova fábrica colocar no mercado hemoderivados de alta qualidade, como no que se refere à logística do empreendimento. "Atualmente", diz ele, "o governo já centraliza a distribuição dos hemoderivados, que são importados, o que, em tese, não mudará com a produção em Pernambuco." No que diz respeito aos cuidados requeridos, ele afirma que o país dispõe da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que tem os recursos necessários para supervisionar a qualidade total dos hemoderivados aqui produzidos.

Salerno explica que o plasma proveniente do sangue coletado entre a população é considerado estratégico para a soberania nacional e, portanto, conforme estabelece a própria Constituição, só pode ser processado, enquanto atividade produtiva, pelo Estado. "Daí a criação de uma estatal; é uma obrigação constitucional", afirma, acrescentando estarem desinformados os que criticam o que poderia ser visto como um retrocesso da abertura econômica. "O Brasil não pode ficar vulnerável à importação de medicamentos como os hemoderivados, e esta área de fármacos, em todo o mundo, é atribuição do Estado."


Sangria de recursos

A Operação Vampiro, como ficou conhecida a ação deflagrada pela Polícia Federal em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, que levou à prisão de 14 pessoas, acusadas de fraude em processo de licitação de hemoderivados no Ministério da Saúde, ainda não chegou a dados conclusivos acerca do volume da sangria de recursos. Algumas versões sugerem que os cofres públicos podem ter sido lesados em até US$ 600 milhões, ou seja, o equivalente a seis anos de importação de hemoderivados ou a construção de dez Hemobrás. As investigações começaram em março do ano passado, a pedido do ministro da Saúde, Humberto Costa. Seis dos presos são funcionários do Ministério da Saúde. Segundo o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem conhecimento dos desdobramentos da operação, que está enquadrada numa política de segurança de Estado. "Desde que assumiu, o presidente determinou que combatêssemos fortemente a corrupção, estivesse onde estivesse, dentro ou fora do governo, implacavelmente, sem contemplação", afirma Bastos. Assim que veio à tona o escândalo do superfaturamento, o Ministério da Saúde aboliu a licitação na compra de medicamentos hemoterápicos e adotou o sistema de pregão presencial, o que resultou numa redução de 39% dos preços. A evolução das investigações, segundo os técnicos, foi um componente essencial para que o projeto da Hemobrás fosse acelerado.

 

 

 

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