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A luta de duas escritoras para vencer o preconceito

Adalgisa Nery e Gilka Machado, talento e beleza contra o preconceito

CECÍLIA PRADA


Adalgisa Nery (à esquerda) e Gilka Machado

Este ano de 2005 marca os 25 anos da morte de duas mulheres notáveis, representantes da geração que nas décadas de 1920 a 40 iniciou o caminho para uma mais ampla participação feminina no cenário político, social e cultural do país. São elas Adalgisa Nery (1905-1980), cujo centenário de nascimento também comemoramos em 2005, e Gilka Machado (1893-1980), ambas cariocas e escritoras - caracterizadas tanto pelo fulgor de uma personalidade marcante como pela verdadeira luta que tiveram de travar, em um meio intelectual preconceituoso, atrasado e machista, para se fazerem reconhecidas e aceitas.

Adalgisa Maria Feliciana Noel Cancela Ferreira, com esse nome todo, era uma menina pobre, filha de um modesto funcionário da prefeitura do Rio de Janeiro. Perdeu a mãe aos 8 anos e teve uma infância triste, revoltada - interna em um colégio de freiras, já era vista como "subversiva" por defender as "órfãs" - categoria comum nos colégios religiosos da época -, consideradas subalternas e maltratadas. Acabou sendo expulsa.

Assim, a única educação formal que recebeu na vida foi a do curso primário, feito dos 9 aos 12 anos. Aos 15 anos apaixonou-se por um rapaz vizinho - o pintor e poeta Ismael Nery (1900-1934), um dos precursores do modernismo no Brasil. Contrariando sua família, aos 16 anos Adalgisa casou-se com Ismael. Nos 12 anos seguintes, a adolescente mergulhou em uma vida trepidante, nunca monótona por certo, que lhe proporcionou a entrada em um sofisticado circuito intelectual graças a freqüentes reuniões em sua casa, uma estada de dois anos na Europa com o marido, e a conseqüente aquisição de cultura. Dizia dela o crítico Mário Pedrosa: "A jovem mulher, bela como um jarro de flores, dava, com sua presença, o toque de graça terrena e feminina àquelas reuniões, por vezes perdidas em especulações abstrusas".

Mas a vida de Adalgisa foi também muito marcada pelo sofrimento e pela relação conflituosa, muitas vezes violenta, com o marido. O casal teve sete filhos, todos homens, mas somente o mais velho, Ivan, e o caçula, Emmanuel, vingariam - os outros (inclusive um par de gêmeos) não sobreviveram além de um ano de idade. Sobre esse fundo de tragédia, o brilhantismo proporcionado pelo talento ímpar de Ismael, filho de família rica e muito católica - mas assombrado pela sinistra figura de sua mãe, que era uma fanática religiosa, paranóica.

No romance autobiográfico que publicaria em 1959, A Imaginária, que constituiu seu maior sucesso editorial, Adalgisa (usando como alter ego a personagem Berenice) descreve como o fascínio que sentia pelo marido no início do casamento foi substituído por um verdadeiro sentimento de terror pela violência que ele podia assumir, na vida cotidiana. Assim fala, de sua morte: "Aquele homem tão amado por mim, a quem eu havia dado toda a frescura e beleza do meu primeiro amor, partia, desatando a vida dos sofrimentos físicos e morais (...) Mas havia deixado sobre o meu corpo todos os desabamentos, todas as ruínas, todos os desesperos e todos os desencantos. Era um amontoado de misérias e desgostos difíceis de serem depurados pela minha idade".

O testemunho de uma vizinha do casal Nery, colhido pela melhor biógrafa de Adalgisa, Ana Arruda Callado, abre uma brecha para a sua sinistra intimidade: conta como Ismael, já tuberculoso, obrigava a mulher a beber os restos da gemada que tomava para se fortalecer; e como se abraçava a ela nos acessos de hemoptise, encharcando de sangue seu vestido. É bem o que diz, analisando A Imaginária, Affonso Romano de Sant’Anna em um ensaio sobre o "vampirismo masculino", aquele que "sobre a alma da mulher (...) os homens têm realizado através dos séculos, com naturalidade, como se toda mulher fosse uma planta ou seiva que o homem devesse sorver".

Adalgisa, a bela

Ao escrever o necrológio da escritora em sua coluna do "Jornal do Brasil", em 14 de junho de 1980, diria Carlos Drummond de Andrade: "Se tivesse de escolher uma palavra para definir Adalgisa Nery, eu hesitaria entre ‘Adalgisa, a bela’ e ‘Adalgisa, a valente’. O certo seria reunir as duas classificações, mesmo porque sua valentia era ainda uma espécie de beleza".

Viúva aos 29 anos, sem muitos recursos e com dois filhos para criar, a "bela Adalgisa" foi trabalhar primeiro na Caixa Econômica, mas depois conseguiu arranjar um cargo no Conselho do Comércio Exterior do Itamaraty. Vestia-se sempre com muita elegância e bom gosto e chamava a atenção pelo corpo esguio, pelo porte, pelo sorriso simpático. Seus chapéus, um tanto extravagantes e confeccionados por ela própria, tornaram-se uma espécie de marca registrada.

Lançou em 1937 um primeiro livro de poesia, singelamente intitulado Poemas. Em 1940 casou-se, por amor, com o jornalista e advogado Lourival Fontes, que era o diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda (o famigerado DIP), criado por Getúlio Vargas em 1939 para difundir a ideologia do Estado Novo. Quando Getúlio voltou ao poder, em 1951, ele seria chefe do Gabinete Civil da Presidência.

Seguindo o marido em funções diplomáticas (em Nova York de 1943 a 45 e como embaixador no México em 1945), não era Adalgisa mulher que se contentasse em ser embaixatriz. Desenvolveu uma sólida amizade com os pintores Diego Rivera, José Orozco (os dois a retrataram), Frida Kahlo, David Siqueiros e Rufino Tamayo. E teve tempo para merecer do governo do México a condecoração mais elevada, a Águia Asteca, por conferências e artigos que fez sobre a grande mexicana sóror Juana de la Cruz. Foi a primeira mulher a receber essa honraria. Em 1952, viajaria novamente àquele país, como embaixadora plenipotenciária, para representar o Brasil na posse do presidente Adolfo Ruiz Cortines.

O casamento com Lourival durou 13 anos - a separação foi inevitável e imensamente sofrida para Adalgisa, quando ele se apaixonou por outra mulher. Provocou nela "uma crise moral espantosa", conforme dizia, em carta ao presidente Vargas - era íntima da família dele. Mas "Adalgisa, a valente", logo se reergueria para aparecer em sua derradeira e mais madura personagem - como jornalista e política. Foi eleita deputada três vezes, primeiro pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e depois, no tempo do bipartidarismo, pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Em 1969 teve seu mandato e seus direitos políticos cassados.

"Nascida para o pecado"

Assim se definia outra mulher, grande poetisa, considerada hoje figura importante do nosso simbolismo literário e uma precursora do modernismo, e sobre a qual já se multiplicam teses universitárias, no Brasil e no exterior - mas cuja poesia, embora popular, foi em sua época tida por muitos somente como "uma maratona imoral": Gilka da Costa de Melo Machado, nascida no Rio de Janeiro em 12 de março de 1893.

Gilka começou a escrever aos 13 anos, estimulada principalmente pela mãe, que foi uma artista de teatro e do rádio. Em 1910 casou-se com outro poeta, Rodolfo de Melo Machado, que faleceria em 1923, deixando-a com dois filhos, Hélios e Eros - esta se tornaria famosa como Eros Volúsia, bailarina que misturava a tradição clássica com ritmos afro-brasileiros. Eros chegou a fazer um filme em Hollywood, Rio Rita, com os cômicos Abbott & Costello, e foi capa da revista "Life" em 1941.

De 1915 a 1968 Gilka lançou 11 livros de poesias, incluída uma edição feita na Bolívia. Sua obra completa foi publicada em 1978 - dois anos antes de sua morte - e reeditada postumamente, em 1991. Em 1933, em um concurso promovido entre os leitores da revista "O Malho", do Rio de Janeiro, foi eleita "a maior poetisa do Brasil". Em 1977, um grupo de intelectuais, liderado por Jorge Amado, propôs sua candidatura à Academia Brasileira de Letras (ABL), onde seria a primeira mulher a entrar - mas ela não aceitou. Em 1979, a ABL lhe daria o Prêmio Machado de Assis. No mesmo ano, a Assembléia Legislativa do Rio prestou uma homenagem à mulher brasileira, na pessoa de Gilka Machado.

Apesar disso tudo, a grande maioria das histórias literárias brasileiras, até hoje, nem sequer menciona seu nome - ou então contentam-se seus autores em incluí-la nas chamadas "listas de cortesia", ou em "também escreveram".

Tragédia feminina

Na vida e na obra dessas duas mulheres, aparentemente bastante diferenciadas, há algumas constantes: a consciência de uma "tragédia feminina", uma sensação de luta prolongada e inútil - porque, mesmo nos momentos de maior triunfo, elas sabem que são "transgressoras" e que, cedo ou tarde, serão punidas. Introjetam uma "obrigação de fracasso" e, por assim dizer, resignam-se com a "punição" social, sabendo que ela assumirá a feição do silenciamento, do ostracismo, da solidão e da pobreza.

Gilka, a moça casada e mãe que não hesitava em se assumir como sujeito (e não mais mero objeto) do desejo sexual (o poema "Particularidades" é um exemplo de sua "imoralidade"), retraiu-se logo após as violentas críticas aos seus primeiros livros. Dali por diante, embora nunca desistisse de escrever e publicar, viveu mais ou menos como uma reclusa, recusando sempre dar entrevistas e falar de si. Teve inclusive de enfrentar os que gritavam desaforos na rua a seus filhos, pela "mãe imoral" que tinham. Quando ficou viúva, ninguém queria lhe dar emprego. E como nunca recebera uma educação formal, foi apenas uma modesta funcionária da Estrada de Ferro Central do Brasil e também dona de pensão. No dizer da crítica Nádia Battella Gotlib, "a mulher que cozinhava para tantos poetas de sua época, como Tasso da Silveira e Andrade Muricy (...) já fizera emergir dos porões um dos ‘monstros’ proibidos: o modo de representação da ansiedade erótica que delineia um projeto novo ou um novo jeito de querer ser mais mulher".

Mas Gilka Machado não é somente uma precursora da livre expressão erótica feminina. Sua poesia incomodava também por outros motivos: em uma época em que se iniciava no Brasil o debate sobre os temas feministas, ela retratava a situação desfavorecida da mulher na sociedade brasileira. Falou em pobreza, em injustiça, em desigualdade social, como se pode ver em um fragmento da poesia "Falando aos Anjos", em que, dirigindo-se às "crianças pobres, irmãs e filhas minhas", termina por questionar a própria maternidade:

"Como vossa mãe, errei, na flor da idade,
dando filhos à luz, sem pão, sem lar;
a elas, a mim, de onde virá piedade?!...
Mulheres pobres de viçosa idade,
deveis os ventres esterilizar".

Alguns críticos da época, reconhecendo suas qualidades literárias, sentiam-se na obrigação de defendê-la moralmente. Agrippino Grieco estabelecia uma distinção entre o que Gilka fazia "nos domínios da arte" e a realidade de sua existência "modesta e altiva". E Humberto de Campos assegurava que "suas rimas cheirando a pecado" não "subiam dos subterrâneos escuros de um temperamento", mas somente "provinham de uma bizarra imaginação".

Colhida ex officio na dicotomia santa/pecadora, a escritora manteve-se na sombra, na marginalidade. Chegou a pedir que não se falasse mais de sua obra e recusou-se a promovê-la - atitude que favoreceu alguns editores espertos, que foram esgotando edições, sem mais considerações pelos seus direitos autorais. Em uma rara entrevista concedida em 1978 a Nádia Gotlib, Gilka relutantemente foi levada (por obrigação contratual, dizia) a falar sobre "os acontecimentos mais importantes de minha vida sem importância" e muito pouco falou - mostrava assim como o ciclo da "punição" (auto-imposta) se fechava. Desvalorizava a sua luta e cumpria, mais uma vez, a sentença multissecular de silenciamento da voz feminina.

A inexorável aceitação desse silenciamento também atingiria a obra de Adalgisa Nery. Seus livros de poesia foram sempre elogiados. Nada havia de "escandaloso" neles; falavam, sim, de um grande sofrimento íntimo, de uma dilaceração. Seu valor literário era reconhecido não só no Brasil como na França. Quando, em 1952, o editor francês Pierre Seghers lançou um volume de poesias suas em Paris, Au-delà de toi (na época, Adalgisa já tinha seis livros publicados no Brasil), ninguém menos do que o filósofo e escritor Gaston Bachelard mandava dizer à autora, por intermédio de um amigo comum: "Em que hemisfério vive ela, em que país pode ela cantar o amor com liras de mil cordas?... Diga-lhe que amei seus versos".

Mas o lançamento de seu romance autobiográfico A Imaginária, em 1959, muito embora fosse seu maior sucesso editorial, marcaria uma reviravolta em sua brilhante carreira. Quando já se preparava a edição francesa do livro, de repente Adalgisa resolve destruir a própria fama, renegar a obra - silenciar (ou aceitar o silenciamento). Em março de 1960, ela escreve ao editor Seghers, suspendendo a edição parisiense, e justifica: "Não vou jamais escrever coisa alguma e mesmo não vou continuar como figura no plano literário do meu país. Estou passando por fortes e inúmeros desgostos vindos de uma campanha dos meus colegas de letras". E acrescenta que preferirá o silêncio: "De hoje para a frente deixo de escrever poesia e outro qualquer gênero de literatura. Sepulto dentro de mim mesma toda a minha sensibilidade".

Não se sabe bem o que se passou na época, é escassa a documentação de seus biógrafos nesse sentido. O que é certo é que já muito antes havia nela esse desejo de autonegação. Como mostrava no "Poema ao Silêncio", de 1940. É uma sombra permanente de morte que constitui o duplo, o avesso, da brilhante personalidade da bela mulher, muito adulada e louvada. É a contradição fundamental feminina: o sucesso parece contrariar uma condição irremediável de sofrimento e de fracasso, inculcada desde muito cedo em todas as meninas.

No caso de Adalgisa, no mesmo ano em que resolve desertar das letras, ela abraça a carreira política, transforma-se na destemida jornalista da "Última Hora" que não hesita em atacar os mais temidos figurões e denunciar os erros e as injustiças sociais. Mas, no plano pessoal, temos mais um inevitável "erro", comum a quase todas as mulheres - o que chamaríamos de contaminação dos projetos racionais da vida com os resíduos da afetividade. Ou seja, a não-diferenciação dos planos privado e público.

É assim que ela vai aos poucos se tornando pobre, amarga e desamparada. Quando o ex-marido Lourival Fontes corta-lhe a mesada estabelecida no desquite, ela aceita a situação, porque podia ganhar a vida como deputada e jornalista. Mais tarde, os filhos lhe pedem que venda seu único bem, o apartamento grande e confortável onde morava, e ela também concorda, com desprendimento (o dinheiro é dividido entre os dois irmãos). Os acontecimentos posteriores, sua cassação em 1969, a perda do emprego como jornalista, colocam-na porém em situação de desamparo. É obrigada a recorrer a amigos, não tem onde morar - parte dos anos de 1974/75 passa em uma casa de Flávio Cavalcanti, em Petrópolis, onde vive como uma reclusa. Desistida, parecia, de qualquer comunicação. Mas, contrariando seu propósito de nunca mais dedicar-se à literatura, escreveu e publicou ainda dois livros de poesia, dois de contos, um de artigos e um romance, Neblina (1972) - que conta, justamente, a história de uma mulher que não pode mais falar, depois de uma operação.

Com esta última obra, novo confronto com o mundo intelectual: para escândalo de todos, o romance fora dedicado a Flávio Cavalcanti (reconhecido como "dedo-duro"), em gratidão pelo acolhimento que lhe dera. No conflito entre o que seria "politicamente correto" e a lealdade a um amigo, Adalgisa escolhera, sem hesitar, o caminho suicida. O caminho do afeto. Não é preciso acrescentar que o livro foi ignorado pela crítica.

Desgostosa com tudo e todos, em maio de 1976, sem ter doença alguma, ela resolve internar-se em uma casa de repouso de idosos, em Jacarepaguá. Um ano mais tarde, sofre um acidente vascular cerebral e fica afásica e hemiplégica - seu corpo parece executar à perfeição o programa que o inconsciente lhe impusera, o da negação da fala e do movimento. Três anos mais tarde, Adalgisa, a "bela valente", também chamada de Adalgisa, a indômita, falece.



Particularidades

Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,
os meus gostos crimino e busco, em vão, torcê-los;
é incrível a paixão que me absorve por tudo
quanto é sedoso, suave ao tato: a coma... os pêlos...

Amo as noites de luar porque são de veludo,
delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo
em carícias sutis, rolarem-me os cabelos.

Pela fria estação, que aos mais seres eriça,
andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
às luvas de camurça, aos boás, à pelica...

O meu tato se estende a todos os sentidos;
sou toda languidez, sonolência, preguiça,
se me quedo a fitar tapetes estendidos.

Gilka Machado


Poema ao Silêncio

Silêncio, cobre o meu pensamento e o meu coração.
Cobre o meu corpo do desejo dos homens
E a minha sombra da luz do sol.
Cobre até a lembrança dos meus passos
E o som da minha voz.
Cobre a minha caridade e a minha fé,
A vontade de morrer e também a de viver.
Estende-te sobre o colorido das paisagens,
Interpõe-te na minha respiração e no meu pestanejar,
Cobre-me desde o início da minha concepção,
Enrola-te no duplo de mim mesma,
Transforma-me em fragmento de ti próprio,
Penetra no meu princípio e no meu fim,
Cobre-me bem, com tanta amplitude e intensidade
Que possa eu ser esquecida
E me esquecer por toda a eternidade!

Adalgisa Nery


 

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