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Angolanos que fugiram da guerra enfrentam fogo cruzado

Eles fugiram da guerra. Mas o Brasil é diferente das novelas

MAURÍCIO MONTEIRO FILHO


Grupo de dança Kina Mutembua: cultura angolana no Brasil / Foto: Maurício Monteiro Filho

Como acontece habitualmente, naquele sábado à tarde, véspera do Dia das Mães, um grupo está reunido ao redor do bar Adega, ponto de encontro quase diário dos imigrantes de Angola que moram no Complexo da Maré, bairro da zona norte da cidade do Rio de Janeiro. De repente, os tiros esporádicos que eram ouvidos a distância passam a zunir a 10 metros da esquina onde eles se encontram. Um camburão da polícia militar chega em alta velocidade, pára com um cavalo-de-pau e dele descem quatro kabombas - como os angolanos chamam os policiais - fortemente armados, atirando contra os traficantes que realizam o "plantão", do lado oposto da rua. Manoel Filipe, que há nove anos está no Brasil, tem motivos de sobra para se preocupar. Vinte dias após sua chegada ao país, foi atingido por uma bala perdida que quase o matou.

O ruído dos disparos se dispersa pela favela. Minutos mais tarde chega a ordem para que os comerciantes baixem as portas a meia altura em sinal de luto pela morte de mais um membro da "malandragem", como é conhecido o tráfico. Qualquer semelhança entre o cotidiano na Maré e a realidade sangrenta que marcou as últimas décadas em Angola, país situado no sudoeste da África, é uma trágica coincidência para os imigrantes que de lá vieram - a esmagadora maioria constituída por homens jovens.

Fugidos da guerra, muitos como refugiados, eles vieram encontrar uma vida muito diferente daquela retratada pelas novelas brasileiras que são transmitidas em sua terra. Praticamente, trocaram uma guerra civil por outra, que, segundo a maioria deles, é muito mais violenta. Ainda assim, a Maré se transformou num local de identidade para aqueles que deixaram família e amigos do outro lado do oceano Atlântico. "O que me faz ficar é a união entre os angolanos. Aqui é a nossa embaixada", declara Moraes Domingos.

Os números comprovam o que Maninho, como ele é chamado, diz. Segundo a Divisão de Cadastro e Registro de Estrangeiros da polícia federal, dos 5.539 imigrantes angolanos no Brasil, 2.766 deles estão no Rio de Janeiro, a maior parte deles na Maré.

Guerra civil

Angola comemora, em 2005, 30 anos de sua independência de Portugal. O processo de libertação, no entanto, teve como resultado uma guerra que durou cerca de 14 anos, cujo final não foi seguido por um período de paz. Vencido o combate contra os colonizadores, iniciou-se um conflito civil pelo poder, em que eram protagonistas o partido governista Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de inspiração marxista e auxiliado pela União Soviética, e o rebelde União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita), apoiado pelos Estados Unidos.

O conflito só se encerrou oficialmente com a morte do líder da Unita, Jonas Savimbi, em fevereiro de 2002. Sem lideranças fortes o suficiente para substituí-lo, os guerrilheiros entregaram as armas em abril do mesmo ano.

Esse histórico de guerras estimulou fortemente a emigração. Os principais destinos foram países vizinhos, como a República Democrática do Congo (antigo Zaire), além de Portugal e Brasil, que foi a primeira nação a reconhecer a independência angolana.

Segundo o professor José Maria Nunes Pereira, co-fundador do Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Candido Mendes, na cidade do Rio de Janeiro, não é de hoje que o Brasil é o destino preferencial dos que emigram de Angola. "Não começou com a luta pela independência, mas sim com a guerra civil que se confundiu com ela", afirma.

Em 1992, foram realizadas eleições presidenciais em Angola. José Eduardo dos Santos, do MPLA, que está no poder desde 1979, disputou o cargo com Savimbi. Com a derrota nas urnas, os rebeldes se revoltaram, acusando o governo de fraude, e pela primeira vez a guerra chegou a Luanda, capital do país.

Esse momento corresponde ao marco inicial da vinda de refugiados angolanos para o Brasil. "Quando a Unita entrou na capital, chegou aqui uma grande leva de imigrantes", explica Nunes. De acordo com dados do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), entre 1992 e 93, ocorreu o pico histórico de solicitações de refúgio. "Até então, não existiam angolanos nessa situação no Brasil. Em 1994, já havia por volta de 800", estima Cândido Feliciano da Ponte, diretor da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, entidade religiosa que atua em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, no Brasil. Segundo ele, atualmente, dos 3 mil refugiados de todas as nações que vivem no país, cerca de 1,6 mil são provenientes de Angola.

Ao mesmo tempo aumentava também a chegada de imigrantes não-refugiados, além dos muitos que entravam no país de forma ilegal. É justamente a partir dessa época que a maioria dos primeiros angolanos que acabaram por se radicar na Maré partiram de Angola.

Manoel Filipe foi um deles. Permaneceu dois anos como clandestino, até conseguir a legalização por meio da anistia concedida pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1998. "A melhor forma de não servir o exército era sair do país", conta ele. Filipe lembra que, quando a Unita perdeu as eleições e marchou para Luanda, o MPLA enchia caminhões com armas e munições e os distribuía para que a população atacasse os rebeldes.

Angola no Brasil

"Essa revista vai para Angola? Tem de ir, para o pessoal ver que aqui não é como nas novelas." Assim Emanoel Catela expressa sua desilusão com a realidade que encontrou no Brasil. Após seis anos vivendo no país, ele já se conformou com a miséria e só pretende voltar para a terra natal a passeio.

Como ele, muitos imigrantes sofreram para se adaptar à vida na comunidade. E não é para menos. Segundo o Censo Maré 2000, realizado pela organização não-governamental (ONG) Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, o complexo, composto por 16 comunidades, com seus mais de 132 mil habitantes, é a maior concentração de população de baixa renda do estado do Rio de Janeiro e uma das maiores do país. Fisicamente, a gigantesca favela está encravada no meio de um triângulo formado pela Avenida Brasil e pelas Linhas Vermelha e Amarela.

Porém, além da pobreza, o que mais cerceia a vida de seus moradores são as fronteiras impostas pela guerra do tráfico. Dentro do complexo e nas suas imediações, revezam-se no poder as três grandes facções do crime organizado do Rio de Janeiro: Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos.

Foi justamente nessa região, nas comunidades de Vila do João e Vila Pinheiros, que se fixou a maior parte desses imigrantes.

Segundo afirma a geógrafa Regina Petrus, em sua dissertação de mestrado sobre os angolanos no Rio de Janeiro, apresentada em 2001 ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, "por ser a principal referência para os que chegam pelo aeroporto internacional, torna-se mais fácil conseguir alojamento e encontrar conhecidos e amigos de Angola nas favelas do Complexo [da Maré]".

Para piorar o quadro, como a grande maioria veio de Luanda, poucos chegaram a vivenciar a guerra civil, que foi muito mais intensa nas províncias do interior. Assim, como se estivessem predestinados à violência, fugiram da que - literalmente - minava seu país para conhecê-la de perto nas favelas do Rio de Janeiro.

Dessa forma, na Maré eles passaram a ter certeza de algo que os próprios números dos confrontos angolanos desmentem. "Durante toda a guerra em Angola, não morreu gente como aqui", garante Filipe. Contrariando o que ele diz, porém, as vítimas da violência causada pelo tráfico são poucas perto das atingidas pelo conflito naquele país, que tem a maior população de mutilados do mundo. Entre 1975 e 2002, estima-se entre 500 mil e 1 milhão o número de angolanos mortos, além de mais de 200 mil feridos gravemente.

Antonio Kennedy, que está no Brasil há nove anos, é fã de Bob Marley. Dedilhando em seu violão Redemption Song ("Canção da Redenção"), sucesso do cantor de reggae jamaicano, ele improvisa em português sobre a letra em inglês: "Já há paz em Angola. Agora, ela tem que existir no Brasil".

Mas, por mais que essa seja a esperança de Kennedy e dos angolanos da Maré, não foram poucas as vezes em que a mídia fez alusão a pretensas ligações entre eles e o tráfico de drogas. As especulações chegavam ao ponto de acusá-los de virem para o Rio de Janeiro para transmitir aos soldados do pó os conhecimentos militares que teriam adquirido em Angola. Contra isso, defendem-se em uníssono: "Quando nós chegamos, a guerra do tráfico já existia havia muito tempo".

Outra forma quase diária de violência com que convivem os angolanos na Maré é a policial. Moraes Domingos é um dos vários que a sentiram na pele. Ele voltava da escola, à noite, quando foi abordado por dois kabombas. "Queriam saber se eu estava legalizado, se tinha dinheiro. O mais revoltante foi que o policial branco não fez nada, mas o negro me deu um tapa. Esse ódio ficou marcado dentro de mim", diz, indignado.

A discriminação é uma constante também na vida de José Mario de Andrade, o Zeca, no Brasil desde 2001. Ele já desistiu de ir para o centro da cidade, pois era sempre parado pela polícia, que tomava todo o seu dinheiro. A dificuldade de sair da Maré também significa para Zeca ficar distante de sua religião, o islamismo, uma vez que não há mesquitas próximas.

Seu gosto musical lhe rendeu outro apelido - Caneta Cheia de Idéia -, pelas letras de rap que costuma escrever. Nelas, desfia críticas contra a falta de liberdade de expressão que imperava em Angola e contra a desigualdade no Brasil. "Lá, não era permitido falar a verdade. Mas também há muita injustiça aqui, só que mais obscura. Não me conformo com o estado como vivo neste país", confessa ele.

A brutalidade policial contra os angolanos inspirou a criação de uma entidade que defendesse os imigrantes e mesmo os negros brasileiros vitimados por essas práticas. Assim, foi fundado no ano passado o Núcleo de Apoio aos Angolanos e Negros do Complexo da Maré. "Queremos inibir o preconceito e nos articularmos para manter o respeito", explica Manoel Filipe, coordenador-geral da entidade.

Hoje, o núcleo realiza eventos em datas significativas, como o Dia das Crianças, que ocorre a 1º de junho em Angola. Outra comemoração importante celebra conjuntamente a data da independência, em 11 de novembro, e o Dia Nacional da Consciência Negra, no dia 20 do mesmo mês.

Ainda assim, em relação à grande concentração de angolanos na Maré, a representatividade do núcleo ainda é muito pequena e pouco reconhecida. "Eu já não tenho fé na entidade", desabafa Moraes Domingos, que é um de seus membros fundadores.

Mukunzeiros

No sábado à tarde, a atividade é intensa ao redor do bar Adega. Nem a kizomba - estilo musical típico de Angola - no último volume é capaz de atrapalhar o funcionamento de um verdadeiro conjunto de escritórios a céu aberto.

Em frente ao bar, um posto telefônico improvisado é um dos pontos mais concorridos. Por meio de um celular, ligado a um carregador portátil conectado diretamente ao poste de eletricidade, pode-se falar com parentes e amigos em Angola ao custo de R$ 1 por minuto.

O motivo das ligações, contudo, é estritamente comercial. É dia da partida do vôo semanal Luanda-Rio de Janeiro, da empresa de aviação Taag - Linhas Aéreas de Angola. E nele estarão os artigos que sustentam os "mukunzeiros", angolanos que realizam o comércio de mercadorias entre seu país e o Brasil. Para a esmagadora maioria desses imigrantes, essa é a única forma de geração de renda.

Pedro Martins veio para cá com o sonho de se tornar jogador profissional de futebol. Lateral-esquerdo, seus ídolos eram Bebeto e Romário. "Achei que aqui conseguiria trabalhar e jogar. Queria aprender para voltar e defender a seleção angolana. Mas só conseguir emprego já foi muito difícil", conta. Assim, ele abandonou as esperanças no esporte e fixou-se no Brás, bairro da cidade de São Paulo, tornando-se mais um mukunzeiro. Acabou indo morar na Maré quando foi ao Rio de Janeiro para servir de guia a alguns amigos que chegavam de Angola.

Celso Miranda está no Brasil há nove anos. Mais conhecido como Fidel, apelido que ganhou por ter nascido no ano em que o estadista cubano visitou Angola, ele abriu o Adega há cinco meses. Como muitos na Maré, Fidel já trabalhou como servente de pedreiro e chegou a ter carteira assinada quando foi empregado de uma vidraçaria. Mas os salários baixos o forçaram a buscar outra alternativa. "O bar me dá prejuízo. Só o mantenho para os angolanos não ficarem desunidos. É com a mukunza que eu me sustento", relata ele. Vendendo tênis e telefones celulares, que, junto com roupas femininas, são os principais artigos comercializados, ele chega a ganhar R$ 3 mil por mês.

A dinâmica dessa atividade é simples. De Angola, os parceiros, geralmente parentes ou amigos, dos mukunzeiros enviam tênis Nike conhecidos como "12 molas". Lá, esses modelos custam, em média, US$ 50, e são revendidos aqui por cerca de R$ 300 a R$ 350, enquanto as lojas chegam a cobrar mais de R$ 600. Em contrapartida, do Brasil eles enviam celulares e roupas femininas, compradas em geral em São Paulo, a preços muito mais baixos do que em Angola.

Que língua é essa?

Para Stefanie, de 7 anos, Isolino Cassesse fala "angolano". Nascida no Brasil, ela acha estranho o sotaque "embolado" ainda forte de seu pai, apesar de seus dez últimos anos vividos em território brasileiro. Segundo ele, apesar da violência, é melhor criar um filho aqui do que em Angola, onde deixou outros quatro. "Medo eu tenho, mas aqui existem mais oportunidades", garante.

A relação entre Isolino e sua filha representa o choque cultural, inesperado, vivido por todos os angolanos que hoje moram num país que parece ter se esquecido de suas raízes africanas. "Vim para cá pela expressão portuguesa, pelo clima parecido e porque, pelas novelas, a gente via uma afinidade muito grande", justifica Manoel Filipe. "Mas, nelas, só havia o lado bom, sem a miséria e os problemas sociais", complementa.

Ainda assim, por mais frustrante que possa ter sido o encontro com a realidade brasileira que a televisão insiste em não mostrar, a presença dos imigrantes na Maré já está se impondo sobre o sotaque e o modo de vida carioca da comunidade. Vencendo a predominância do funk e do pagode, que ecoam por toda a favela, a influência angolana sobre a cultura local é lembrada quando um dos imigrantes começa a cantarolar: "Eu vou fazer um samba/ Mas sem querer dilema/ Pois o indivíduo tem que saber/ Que o rico samba veio do semba", aludindo ao estilo musical de Angola que inspirou a criação do mais popular dos ritmos brasileiros.

Outro bom exemplo são os grupos de dança tradicional africana, ligados à Ação Comunitária do Brasil (ACB), ONG que atua na Vila do João e na Cidade Alta, no bairro de Cordovil, vizinho da Maré. Inspirado no trabalho desenvolvido pelo Diamante Negro, em que grande parte dos integrantes são angolanos, foi criado o grupo Kina Mutembua, formado apenas por brasileiros, mas que utiliza coreografias e temas da cultura de Angola e da África em geral. Segundo o coordenador do grupo, Romildo Santos, a atuação do Kina Mutembua - que significa "dançando com o vento/tempo" - não se restringe à dança apenas, mas a um extenso trabalho de pesquisa da cultura africana. "No nosso país, as tradições negras estão muito perdidas e sofrem muita discriminação", diz ele.

Atualmente, o Kina Mutembua tem atraído a atenção internacional. Sua dança, criada pelo mesmo coreógrafo do Diamante Negro, já foi levada para o Chile e recentemente recebeu propostas de se apresentar na Itália.

Dessa maneira, a influência angolana mostrou que também é possível transcender as fronteiras criadas pelo tráfico. Hoje, o Kina Mutembua ensaia na sede da ACB na Cidade Alta, onde quem manda é o Comando Vermelho, facção inimiga do Terceiro Comando e dos Amigos dos Amigos, que dominam a Vila do João, onde o Diamante Negro ensaia. Uma demonstração de que a "língua angolana", expressa na sua influência sobre a cultura brasileira, mesmo após décadas de guerra, ainda é capaz de difundir a paz.

 

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