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Desafios do combate à decadência do centro da capital paulista

ALBERTO MAWAKDIYE


Teatro Municipal de São Paulo / Foto: Gabriel Cabral

Tudo indica que o centro de São Paulo irá demorar ainda um bom tempo para recuperar - se é que um dia o conseguirá - o esplendor dos anos 1930 e 40, quando era o coração cultural e financeiro da cidade, com seus prédios art nouveau, cinemas luxuosos, lojas de grife e sofisticados bares e restaurantes. Vários edifícios históricos foram restaurados pela prefeitura e pelo governo estadual, eventos culturais importantes estão sendo levados para a região, e o comércio e os serviços estão um pouco mais pujantes - houve um crescimento de 20% no número de lojas no ano passado. O fato, no entanto, é que nada disso foi suficiente, até agora, para devolver ao local o papel de centralidade que desempenhou até mais ou menos o final dos anos 1960.

Um certo ar de decadência impregna ainda a área, e as dezenas de prédios comerciais vazios - sem contar os milhares de salas e escritórios - comprovam que o mundo dos negócios continua dando as costas para o lugar. A multidão de camelôs espalhada pelos calçadões faz sorrir da pretensão da prefeitura de permitir a presença ali de apenas 1,5 mil ambulantes cadastrados. Caminhar pela região à noite continua sendo prerrogativa de alguns poucos corajosos. O centro é tão desprovido de gente depois das 20 horas que apresenta um dos menores índices de violência da cidade.

Isso não significa que a criminalidade não exista. No conjunto de quarteirões apropriadamente apelidado de "Cracolândia", próximo das estações ferroviárias Luz e Júlio Prestes, o tráfico e o consumo de drogas são tão ostensivos que lembram aquelas praças suíças onde a polícia autorizava os dependentes a cultivarem seu vício. De pouco adiantam as ruidosas blitze realizadas de quando em quando pela prefeitura e pela polícia. Os viciados - e seus patronos traficantes - acabam sempre voltando.

"Talvez a época do centro tenha realmente passado", lamenta o arquiteto Fábio Penteado, que chegou a conhecer o lugar em seu apogeu e o viu desmanchar-se com a migração implacável dos bancos e escritórios para áreas mais afluentes na zona sul, a partir do começo dos anos 1970, deixando a região como um mero local de passagem e tipicamente de comércio popular - até que a crise econômica e o desemprego dos anos 1990 comprometessem também essa atividade. "Sem dúvida muita coisa está sendo feita, mas a verdade é que o centro não está conseguindo concorrer com os novos pólos comerciais e de serviços da zona sul. É hoje um centro apenas no sentido geográfico."

Indução

A ironia é que a decadência do centro de São Paulo - assim como o despertar econômico e urbanístico das regiões paulistanas localizadas nas porções sul e sudoeste - foi estimulada pela própria prefeitura que hoje se empenha em resgatá-lo. Sob aplausos de uma já bastante influente indústria imobiliária, avenidas importantes - como 23 de Maio, Brigadeiro Faria Lima e Marginal Pinheiros - foram abertas na direção sul-sudoeste da cidade entre o final dos anos 1960 e começo dos 70, de modo a induzir a criação de novos pólos de comércio e serviços naquelas áreas.

Na época, a idéia - cujo defensor mais entusiasta era o então prefeito Faria Lima, que tirou ele próprio várias dessas avenidas do papel - pareceu excelente. De fato, São Paulo já tinha então mais de 5 milhões de habitantes e sofria os efeitos do crescimento populacional e econômico. Por concentrar praticamente tudo o que havia na cidade nas áreas bancária, comercial e de serviços, o centro vivia tão abarrotado de ônibus e automóveis que, na comparação, os engarrafamentos de tráfego registrados hoje parecem corridas de Fórmula 1. Os congestionamentos estendiam-se aos pedestres. Era praticamente impossível caminhar nas calçadas, quase todas estreitas, de tão apinhadas que ficavam durante o dia. E o metrô ainda não tinha sido implantado.

A posterior proibição de construção de novas garagens (para inibir o tráfego de automóveis), a instalação de um quilométrico viaduto de contorno, o hoje execrado Elevado Presidente Costa e Silva, mais conhecido como Minhocão, pelo ex-prefeito Paulo Maluf - que desviou "para cima" o fluxo de veículos que passavam pelo centro no sentido leste-oeste, ao preço de destruir a belíssima Avenida São João, então um bulevar em estilo europeu - e a implantação dos calçadões por outro prefeito, Olavo Setúbal, no final dos anos 1970, completariam o trabalho de "desmotorização" do centro e contribuiriam para seu posterior engessamento econômico e populacional. O lugar começou não só a perder empresas, mas também moradias.

Por conta dessa sangria, a região responde, hoje, por somente 8% dos empregos da cidade e restam, nos 4,4 quilômetros quadrados do núcleo histórico original (os distritos Sé e República), não mais de 65 mil moradores.

Competitividade

O pior é que a capital está precisando, e muito, de um núcleo com características de "centro histórico" para potencializar sua competitividade, que já não está resistindo como antes ao avanço das economias de alguns outros estados e do próprio interior paulista. São Paulo não está exatamente decadente em termos industriais, já que é responsável ainda por 28,6% da produção do estado, e por pouco mais de 10% da brasileira, segundo pesquisa da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade). O setor em que a cidade mais cresce atualmente, porém, já não é o industrial, mas o de serviços - e parece mostrar uma forte vocação para se tornar um centro de negócios.

É consenso entre especialistas e empresários que o atual modelo de urbanização - baseado em grandes avenidas e no uso intensivo do automóvel - não ajuda muito essa vocação. "Na verdade, a moderna urbanização paulistana tem ainda um fundo tipicamente industrial, com fábricas e bairros-dormitório nas periferias e torres de escritórios em suas imediações", explica Miguel Matteo, chefe da Divisão de Estudos Econômicos da Fundação Seade. "Só que o perfil econômico da cidade mudou, e já está exigindo uma maior compactação e ao mesmo tempo uma melhor distribuição das atividades e das moradias."

De acordo com Matteo, as indústrias mais vinculadas ao agronegócio, aquelas que precisam de mão-de-obra intensiva ou são dependentes de recursos naturais, já deixaram a cidade. Ficaram na capital as mais leves ou sofisticadas, e foi criada uma infinidade de empresas prestadoras de serviços para dar suporte ao setor produtivo. "São Paulo está migrando para um misto de economia secundária com terciária", afirma Matteo. O município já responde por nada menos do que 53% do valor gerado pelo setor de serviços no estado de São Paulo, quase tudo - 49% - constituído por atividades de alguma forma ligadas à indústria. É também a principal sede de multinacionais e de instituições financeiras do país.

Para continuar avançando nessa direção, contudo, a cidade precisaria de algum tipo de diferencial "cultural", em sentido amplo, que teria de passar pelo próprio tipo de vida levada dentro de seu perímetro. E a imagem urbana de São Paulo não é das melhores, por causa do trânsito caótico, da violência, da fragmentação excessiva dos equipamentos culturais e da ausência de lugares públicos aprazíveis - que se resumem a uns poucos parques, como o do Ibirapuera, na zona sul. E, diferentemente da maioria das metrópoles brasileiras, é uma cidade de planalto - ou seja, não tem praia.

"A requalificação do centro poderia dar à cidade essa imagem positiva, concedendo-lhe ainda uma espécie de identidade que hoje também lhe falta, como o Pão de Açúcar faz com o Rio de Janeiro e a Torre Eiffel com Paris", acredita Marco Antonio Ramos de Almeida, presidente da Associação Viva o Centro, que reúne empresas e entidades da região e é a mais atuante dentre as organizações não-governamentais (ONGs) que lutam pela recuperação da área. Segundo Almeida, o local, com suas construções da primeira metade do século 20 (há cerca de mil edifícios tombados pelo patrimônio histórico) e seu arruamento em estilo europeu, tem condições de cumprir esse papel, mesmo porque já fez isso até os anos 1960.

Curiosamente, está implícita na proposta de revitalização do centro a constatação - talvez tardia - de que as novas regiões que têm, desde os anos 1970, desempenhado a função de centralidade em São Paulo, todas elas implantadas em torno de grandes avenidas como Paulista, Brigadeiro Faria Lima, Luís Carlos Berrini e Marginal Pinheiros, não conseguiram ocupar nenhum espaço cultural importante. A razão parece óbvia mesmo para um observador desatento. São, de fato, locais caracterizados basicamente por edifícios de escritórios (muitos deles construídos no pouco cativante estilo pós-moderno) e por shopping centers, iguais a centenas de pólos comerciais do planeta. Não há uma mísera praça digna desse nome em nenhuma dessas regiões.

"Hoje, as pessoas não vêm a São Paulo para passear, mas, sim, para trabalhar", adverte Toni Sando, diretor do São Paulo Convention & Visitors Bureau, que representa a rede hoteleira e de centros de convenções da cidade, assim como as de bares e restaurantes. "Passam pela cidade cerca de 7,5 milhões de visitantes por ano, mas só 20% têm como objetivo o turismo de lazer. Ou seja, essas pessoas ficam pouco tempo por aqui."

Insistência

Pelo menos desde a gestão da ex-prefeita Luiza Erundina (1989-92), tenta-se requalificar a região central de São Paulo a partir de suas duas vocações consagradas, a comercial e de serviços e a cultural. Diferentemente de outras capitais brasileiras - que recuperaram o centro histórico para efeitos econômicos e turísticos, como Salvador, na Bahia, e Recife, em Pernambuco -, a cidade parece não saber como lidar urbanisticamente com a enorme área que constitui seu centro histórico, nem que destinação dar à economia da região.

O porquê dessa abulia é óbvio para os urbanistas. Para sofrer uma intervenção radical, a região precisaria estar mais deteriorada do que está - como não é esse o caso, seria indispensável uma energia política muito maior do que tem sido empregada no processo de revitalização. "É difícil mexer profundamente em uma área que não está decadente por completo", reconhece o arquiteto e escritor Hugo Segawa. Segundo ele, o Pelourinho, em Salvador, estava em situação muito ruim, por isso foi relativamente fácil transformá-lo em pólo turístico e de lazer, assim como a zona portuária do Recife, que acabaria se tornando o Porto Digital, direcionado para empresas de alta tecnologia.

Além de ter um espaço imensamente maior do que o daquelas áreas das capitais nordestinas, o centro de São Paulo está vivo tanto do ponto de vista urbanístico como econômico - qualquer intervenção mais abrangente provocaria conflitos com moradores ou comerciantes. "A prefeitura tem dificuldade até de negociar com moradores de rua", afirma o arquiteto Ary Albano, diretor da ONG preservacionista Defenda São Paulo.

Por causa desse cenário, todas as intervenções realizadas no centro desde o final dos anos 1980 ajudaram a revitalizá-lo, mas deixando-o sempre mais ou menos como estava - como se aquela área pudesse absorver as iniciativas municipais sem precisar mudar sua essência. Muito dinheiro já foi investido em melhoramentos urbanos, na recuperação de edifícios históricos para finalidades culturais e em benefícios indiretos à indústria imobiliária, de modo a tornar a região novamente atrativa para os empresários e a classe média consumidora. Alguns empreendimentos habitacionais para as pessoas de baixa e média renda também foram implementados - mas sem a determinação necessária - na tentativa de atrair a população para aquela região.

Apenas a ex-prefeita Marta Suplicy (2001-04) destinou R$ 92 milhões em obras e ações diversas entre 2001 e 2003 e embutiu nada menos do que 130 projetos de revitalização urbanística ou socioeconômica dentro de um programa maior batizado de Ação Centro, que conta com verba de US$ 168 milhões assegurada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O BID já emprestou para a prefeitura paulistana, no ano passado, US$ 100,4 milhões para o projeto.

Coube a Marta também gastar uma pequena fortuna para levar para o centro os órgãos e secretarias municipais que estavam antes espalhados pela cidade, gerando um acréscimo de mais de 10 mil funcionários públicos à região, com impacto positivo sobre o comércio e o lazer locais. O governo estadual seguiu o exemplo da prefeitura e também transferiu alguns órgãos e secretarias para o centro. Mas, aparentemente, tudo o mais continuou como antes.

Obras

Na verdade, houve sempre uma inegável preferência do poder municipal pela recuperação de edifícios históricos degradados em relação às grandes reurbanizações - a exceção foi o Vale do Anhangabaú, espécie de coluna vertebral do núcleo histórico e que foi remodelado por Luiza Erundina e depois recebeu melhoramentos de outros prefeitos. O magnífico Mercado Municipal e outros edifícios públicos da região do Parque Dom Pedro - quase todos construídos antes da 2ª Guerra Mundial - foram revitalizados, assim como o prédio da Pinacoteca do Estado, a centenária Estação da Luz (réplica da estação de Sydney, na Austrália) e a Estação Júlio Prestes, edificação dos anos 1930 projetada pelo arquiteto Cristiano Stockler das Neves e considerada uma das mais belas das Américas.

Da mesma forma, os equipamentos culturais receberam fortes investimentos. A própria Estação Júlio Prestes teve uma ala transformada em um local para a realização de concertos, a Sala São Paulo, e o Centro Cultural Banco do Brasil, próximo à Sé, tornou-se uma referência para estudantes e amantes das artes em geral. O prédio dos Correios também terá espaço para um centro cultural, e o celebrado Museu de Arte de São Paulo (Masp) conta, desde 2000, com uma "subsidiária" no centro. Universidades importantes começam igualmente a abrir extensões na região, como a Pontifícia Universidade Católica (PUC).

Essa preferência pelos projetos pontuais tem também proporcionado, além do inegável embelezamento da região, bastante espaço para que a descontinuidade administrativa impere no centro mais do que em qualquer outro lugar da cidade. É comum um prefeito de partido diferente de seu antecessor mudar inteiramente os projetos herdados, e nada garante que o próprio plano diretor da cidade, estabelecido em 2002 - que prevê a construção maciça de moradias no centro e a revitalização das áreas lindeiras às ferrovias -, vá ser cumprido.

De fato, uma das principais bandeiras do atual prefeito paulistano, José Serra, é a reabertura de alguns calçadões e ainda do Vale do Anhangabaú ao tráfego de veículos - ação que não está prevista no plano diretor e dá calafrios ao principal mentor do projeto, o arquiteto Jorge Wilheim, que foi secretário do Planejamento na gestão Marta Suplicy. "É uma proposta absurda", dispara ele.

O trágico em toda essa história é que São Paulo está desperdiçando um enorme investimento já amortizado em infra-estrutura, quando deixa de dar prioridade a seus projetos de requalificação do centro. A região detém uma infra-estrutura invejável para os padrões brasileiros. É ligada a todos os pontos do município por ônibus, metrô e linhas ferroviárias de subúrbio, e as redes de iluminação e de telefonia são inteiramente subterrâneas, como nas cidades européias. Não há uma única moradia sem água e esgoto.

O centro foi a primeira área paulistana a contar com uma rede de fibra óptica, o que, com o desenvolvimento recente da informática e com o impulso do processo de revitalização, está atraindo empresas de tecnologia. Fraca em outros setores de serviços, a região já concentra, entretanto, o maior número de empresas de call center e de telemarketing da cidade, por exemplo. Esses sinais de recuperação não disfarçam, no entanto, a falta de consistência do todo. "O centro tem grande potencial. Mas é preciso um projeto econômico e urbanístico de porte para amarrar todas as pontas, e que seja decidido pelo conjunto dos paulistanos. Caso contrário a situação continuará como está", afirma João Alfredo Saraiva Delgado, técnico do Departamento de Competitividade da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

 

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