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Arte nas ruas

Por Miguel de Almeida e Julio Cesar Caldeira

Paisagens bucólicas, ruas pacatas, casas com vasos de flores na janela, cavalos em disparada. Os temas dos quadros expostos nas feiras ao ar livre movimentam um mercado alheio ao tradicional circuito das artes.

Em livro lançado originalmente em 1964, o fotógrafo húngaro Brassaï revelou ao mundo algumas das particularidades da personalidade do pintor espanhol Pablo Picasso. Entre discussões conceituais e diálogos acerca da situação mundial na década de 40 (época em que foi colhido o material), Conversas com Picasso descreve em um de seus capítulos a opinião do mestre sobre os chamados "pintores amadores": "(...) olhando a vitrina de um vendedor de quadros de poentes, luares, vaquinhas ou bosquezinhos refletidos no espelho de um lago, Picasso exclama: 'como me divertiria pintando algo assim! Não podes imaginar o que isso me divertiria!'".
Pois bem, logo de saída, então, saibamos que tais artistas têm em sua história um mérito que já os faz merecedores de atenção e respeito: a "inveja" de Picasso. Em contraposição ao atormentado autor de Guernica, eles são donos de uma técnica que ignora o sofrimento e de uma temática que não comporta crises existenciais. Realizam portanto um trabalho que em geral não produz tensões - no espectador ou no seu criador -, ao contrário da arte, digamos, profissional, comprometida sempre com buscar inovações de estilo e se portar como espelho do tempo da humanidade.
Justamente por sua intrínseca relação com a cidade, ao terem-na como palco para a mostra de seus trabalhos, os artistas de rua são, na maioria dos casos, testemunhas vivas das transformações de uma metrópole. Muitos deles estão há mais de quarenta anos em locais como a Praça da República, por exemplo, e em ruas como a Marquês de Itú, onde são comercializados os materiais de pintura utilizados por esses artistas. São tintas, telas e livros vendidos a preços atraentes nas calçadas, dentro de estacionamentos e sob as marquises dos prédios. São ruas que compõem, junto com os locais onde as telas são exibidas, uma espécie de quadrilátero dedicado à arte de rua.

Aspecto narrativo
O mais interessante sobre esses artistas é que quase nunca seus discursos têm o intuito de explicar seus impulsos criativos. É raro parar em frente a alguma obra e ouvir de seu autor considerações subjetivas que na maioria das vezes somente visam colocar o artista num misterioso patamar de sensibilidade superaguçada (figura que Picasso definia como "artista-pintor"). Conversando com eles ou observando a relação deles com os compradores, o que se percebe é que pintam porque gostam ou porque apresentam uma espécie de domínio sobre o traço e a lida com as tintas que está acima da média da maioria das pessoas, que têm dificuldade em desenhar até uma casinha para seus filhos. Eles sabem, e bem, desenhar casas, mostrar o reflexo do sol na água e reproduzir barcos com velas ao vento - temas, aliás, constantes nesste universo pictórico. Visivelmente não há preocupação, ou inquietação, de propor algo ou de desconstruir formas. É a arte da figura fiel ao objeto, e o aprimoramento desse fazer é o que eles chamam de evolução. "São sempre coisas muito tradicionais", começa analisando o artista plástico Luiz Aquila, um observador dessa produção. "Mais para o artesanato no que diz respeito àquilo que vem da tradição de um fazer repetido." Aquila observa também que muito do que é feito por esses artistas é um reflexo do que as pessoas gostam de levar para casa. Uma comunicação clara entre obra e platéia. Diferente do que acontece no ambiente das sofisticadas galerias de arte, onde as relações observador/obra tendem a passar por meandros mais complexos de percepção. "São públicos paralelos", prossegue. "Assim como você tem um mercado ou uma audiência paralela para os leilões, existe um público e espaços mainstream, como se diz, que seriam as galerias principais onde eu e outros artistas expomos e existem esses dois outros mercados: um deles é o de rua e o outro é o dos leilões. Esses dois, eu creio, cumprem a mesma função, que é uma função meramente decorativa e tradicional, no sentido de pessoas que procuram assuntos. O público que compra essas obras deve dizer 'ah, eu gostaria de comprar um casario, uma jangada, um pôr-do-sol'. Ou seja, ele está pensando no que a pintura representa no seu sentido narrativo", explica Aquila.
De fato, nesse sentido, todos os desejos são satisfeitos. As obras são variadas e as 'tendências' muitas. "São tantas que eu não me vejo em condições de sintetizar uma produção dessa natureza", confessa o gravador e professor de história da arte, Evandro Carlos Jardim. Aliás, para Jardim, avaliar essa produção no sentido da estética não é uma coisa simples. "O produto, por assim dizer, é muito variado. O que nós aprendemos, ou percebemos, é que a arte, o domínio do fazer, parece ter uma finalidade. São regras e valores que não são do homem propriamente, mas sim da obra de arte a ser feita", pondera. "Entre diversas questões de natureza inclusive sociocultural, acho que essas exposições nos despertam, sem dúvida, para questões relacionadas à arte e ao artesanato. Dessa maneira se opera essa produção e os limites desse conhecimento." Para Jardim, o acervo variado desperta a atenção para a presença e a consideração do ser humano diante da liberdade com a qual ele pode expressar suas intenções, sonhos e projetos. "Eu me colocaria dessa forma em princípio", afirma.

Os artistas
Conhecer um pouco mais a fundo esses artistas e suas obras significa, antes de tudo, penetrar em seus universos de idéias e "inspirações", e a praça da República é um bom local para essa tarefa. Além de ser a mais tradicional - esteve desativada por curto período, mas alguns de seus expositores estão lá há mais de quarenta anos - a República é uma das maiores em tamanho, portanto uma das mais variadas. A atual gestão da Prefeitura de São Paulo oficializou a situação dos expositores. São 680 no total. Mesmo separando a parte destinada aos vendedores de comida, roupas e peças mais artesanais - luminárias, bibelôs etc. - é grande o número de artistas plásticos.
Um dos mais bem-sucedidos é, sem dúvida, Celso de Castro. Paulista, 47 anos, filho de artista plástico, o pintor consegue viver exclusivamente de sua arte, já há trinta anos. Durante a entrevista, não foram poucas as vezes em que foi interrompido por pessoas interessadas em seus quadros - que variam de 80 a 280 reais, dependendo do tamanho e se emoldurados ou não. Celso é um sujeito de aparência calma, e com paciência: "já cansaram de querer dar palpite nos meus quadros ou mesmo dizer que não gostaram, mas eu encaro numa boa", conta. O artista comenta que já existiram épocas melhores na praça - "tempo de muitos estrangeiros, já vendi muito quadro em dólar", brinca -, mas ele é otimista ao ressaltar que "num país de muitos analfabetos" ele consegue viver de sua arte. Mas vive bem? "Tenho minha casa, troco de carro com freqüência e sustentei meus filhos", conta. Celso confessa que consegue fazer uma média de mil reais por semana, principalmente quando negocia com lojas de móveis e decoração que arrematam lotes de seus quadros. Conta que desde que começou a pintar 'aprimorou muito' sua técnica. "Melhorei meu desenho e estou cada vez mais exigente com meus quadros. Muitas vezes eu os trago para cá e aqui na praça percebo que falta alguma coisa; então volto a trabalhar neles até que fiquem prontos." Os temas são muito parecidos. Pacatas ruas com casas antigas que lembram esquinas de cidades históricas mineiras. O céu sempre ameno, árvores, às vezes lagos, janelas... No meio da entrevista, Celso vendeu dois deles. O artista plástico Luiz Aquila acredita que o sucesso desse tipo de trabalho se dá justamente em virtude de sua temática: "É sempre o casario antigo, a praça, o mar que não está poluído. É como se fosse uma janela sempre voltada para o passado ou para situações idílicas".

Casas, paisagens
Em alguns casos, pode-se dizer que o idílico aparece em 'tintas mais fortes'. A mesma situação campestre assume tons surreais. Nessas composições, os animais ganham personalidade humana e o ser humano passa a viver num mundo de realidade fantástica. É o caso dos trabalhos do paraibano David Samuel, de 60 anos. Passando por um dos corredores de quadros da República é impossível não notar suas pinturas. Realizadas em estilo naïf, com figuras desenhadas em proporções desequilibradas - cabeças ou mãos exageradas para o corpo -, as situações são ilustrações de piadas e dizeres populares que chamam muito a atenção. Curiosamente, todos os quadros têm uma inscrição que reforça a piada ou 'explica' a situação. Entre os mais engraçados há o do homem que carrega sozinho um armário nas costas e quando lhe oferecem ajuda, ele responde: "Não é preciso. Meu amigo está levando os cabides". Porém, dentro do armário se pode ver o tal "amigo" com um sorriso cínico, simplesmente segurando os cabides. Num de seus trabalhos mais estranhos vê-se um pescador sendo mortalmente ferido por um tamanduá gigante; em outro, uma mesa de pôquer composta por bizarros cachorros jogadores e trapaceiros sob uma placa de "é proibido animais". De onde vêm essas situações? "Ah... a gente é criativo mesmo, né?", responde simpaticamente o artista, revelando despreocupação quanto à origem das idéias. "Às vezes um amigo conta uma piada, outras a gente fica sabendo de um caso engraçado no Jornal Nacional". David garante que seus quadros vendem bem, mostrando como há também o comprador de obras que tem no humor um tanto bizarro sua principal fonte de contemplação.
Já o pintor Moisés, figura carimbada com 43 anos de República, chama a atenção principalmente por colocar um ponto final na delicada discussão sobre o preço desse tipo de arte. Sem a menor cerimônia, seus quadros, a maioria telas grandes com imagens de cavalos e camelos, chegaram a custar antes de 11 de setembro de 2001 cerca de 50 mil reais. Hoje se encontram em cifras pós-Al Qaeda, mais realistas: "Estou aqui desde que essa feira começou, sou um profissional e sei o preço da minha arte. Só que há todo tipo de artista. Existem muitos jovens que tiveram duas ou três aulas de desenho e já vêm tentar ganhar dinheiro. É preciso que algo diferencie os profissionais dos amadores", analisa, seguro.

Miguel de Almeida e Julio Cesar Caldeira são jornalistas



Espaços Alternativos
Nem só de galerias e museus vive a arte

Um outro fato que se revela ao analisarmos os artistas que expõem seus trabalhos em praças e demais locais abertos é que, independentemente do estilo - engajada, conceitual, meramente figurativa etc. -, é possível um contato com a arte mesmo fora dos espaços das galerias ou museus. É claro que não se trata de substituir a visitação a esses locais por um passeio a uma feira de artes na praça. Mesmo porque são manifestações distintas. Mas, digamos que seja, no mínimo, uma nova alternativa. "Sempre trabalhei em defesa do artista poder expor em todo o tipo de lugar e não depender só da galeria, que é um espaço muito reservado, fechado e íntimo", diz o pintor Antonio Peticov, cujos trabalhos habitualmente foram exibidos em locais fora do circuito tradicional das artes plásticas. "Fui um dos primeiros a expor, por exemplo, em restaurantes e pizzarias", comenta, acrescentando que sua atitude nunca foi bem vista por parte dos agentes do mercado artístico.
No que concerne à qualidade das obras mostradas em ruas e praças, Peticov avalia que a maioria é "muito ruim", mas contrapõe: "Só que não é preciso ir até a praça da República para ver coisas ruins. Há muitas galerias e museus que também não primam pela qualidade dos trabalhos expostos". Complementando o que o também artista plástico Luiz Aquila afirma quanto ao perfil de público que consome a "arte de praça" - quando disse tratar-se de um mercado paralelo que não compete com o grande mercado - , Peticov acredita que a aceitação desse tipo de produção é, na verdade, um reflexo do nível de cultura de quem os compra. "Arte é cultura", começa. "Se você é mais culto, vai procurar uma arte que seja mais refinada e vai se tornar mais exigente". Segundo ele, em alguns casos, a técnica substitui o gênio criativo. "O bom poeta não precisa ter boa caligrafia", compara. "Ou seja, tem muitas pessoas que pintam direitinho mas não estão necessariamente dizendo algo." Na verdade, pareceres dados por pintores profissionais, por assim dizer, servem também como dicas para aqueles que querem se aventurar pelas praças tentando adquirir algo que lhes agrade. "O que é muito redundante comunica muito e mais facilmente", alerta Luiz Aquila. "Se você tem alguma forma de arte com muita novidade, ela traz um repertório que não faz parte do código comum de todo mundo. Logo, comunica menos." Aquila acrescenta ainda que uma obra de arte mais complexa exige do espectador um saudável esforço para que ocorra a aproximação. Ele exemplifica essa relação usando a música. "Muitos grupos musicais comunicam mais que Itamar Assumpção, por exemplo."