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Um circo singular

Em depoimento exclusivo, Hugo Possolo, do grupo Parlapatões, Patifes e Paspalhões, fala das riquezas e particularidades do circo brasileiro que influenciaram a arte do país no decorrer do último século

O circo nasceu como um híbrido de esporte e arte. E assim permanece. Para quem o realiza, ele tem a mesma característica de desafio às leis da natureza que o esporte. Passa pela necessidade que o ser humano tem de enfrentar a natureza através do seu corpo e do seu intelecto. O circo cria uma sensação de desafio constante. Ao unir diversos elementos, atinge um grau de abstração muito forte. O público é envolvido por diversas manifestações, como as artes plásticas, o teatro, a música, inseridos no contexto circense. Esse ecletismo, que não se deve apenas à variedade de números, está ligado à maneira como o circo se comunica com o público; na verdade, ele é muito mais arte por essa capacidade de comunicação. Ele atinge um grau de comunicação tão extenso e abrangente que consegue ser universal. E essa universalidade é ainda mais acentuada porque o circo não depende da palavra; por isso ele consegue atingir, com tanta força, gente do mundo inteiro.

Genuinamente brasileiro
O humor e a comédia no Brasil são muito diferentes daqueles encontrados em outros países, em grande parte por influência do nosso circo. Há muita qualidade e riqueza porque temos muitas fontes de influência. A nossa cultura é muito mesclada - não tivemos uma colonização única e específica, como no caso do resto da América Latina. A nossa colonização, por exemplo, que foi extremamente predadora, trouxe a África para dentro do Brasil. E toda essa mistura se refletiu também no circo.
Talvez a maior particularidade do circo no Brasil seja o trabalho dos palhaços. Até por questões econômicas, aqui se construiu uma maneira muito específica de criá-los. Do arquétipo clássico do circo, herdamos dois tipos principais: o clown e o excêntrico. Só que quando o circo chegou no Brasil, não havia dinheiro nem qualidade de tecidos, com arabescos, para compor a roupa do clown. Dentro do circo tradicional brasileiro, ainda existe a divisão entre clown e excêntrico, só que os dois usam praticamente a mesma roupa. As diferenças são muito sutis. E isso permitiu uma certa liberdade para que os clowns se tornassem um pouco mais excêntricos e para que buscassem outras características para seus personagens.
Outra criação brasileira, vinda do Nordeste, é o circo de pau fincado, que só tem o contorno do circo, não tem a lona. Esse é um tipo de representação completamente diferente daquele visto no resto do mundo: uma família, de cinco ou seis pessoas, que faz de tudo em um circo sem lona, apenas cercado com lençóis para cobrar ingresso. E assim se estabelece outro tipo de linguagem e de comunicação.

Todos os circos
O circo no Brasil sempre foi um grande difusor de outras manifestações artísticas. A música, quando o rádio estava em seu apogeu, era difundida dentro das lonas de circo. Os grandes shows eram abrigados pelo circo. Quando fiz a pesquisa para um CD de circo dos Parlapatões, fiz muitas entrevistas querendo saber das pessoas o que era, para elas, a música de circo. E qualquer música era música de circo. No imaginário dos entrevistados, isso estava claro. Entrevistei um taxista que disse que a primeira vez que viu a Elizeth Cardoso foi dentro de um circo. Então a música popular brasileira e a bossa nova têm, também, a imagem do circo. As duplas caipiras, que se institucionalizaram posteriormente como duplas sertanejas, também fizeram parte do espetáculo circense. Muitas das representações de televisão na década de 1970 eram reproduzidas dentro do circo, como o telecatch, que é uma representação extremamente farsesca de uma luta que é muito mais engraçada do que violenta. O circo estabeleceu uma troca muito grande com diversas manifestações.
Outra particularidade do circo brasileiro foi a criação do melodrama como segundo ato - uma representação teatral dentro do circo. E isso foi um forte atrativo nas décadas de 1940 e 1950 e influenciou muito o rádio, o melodrama do rádio e, conseqüentemente, a telenovela. As famosas "comedinhas" do Piolim - comédias de costumes de característica teatral - também influenciaram tudo o que o rádio e a televisão fizeram e ainda fazem como humor.
O cinema no Brasil, em seu apogeu, bebeu muito do circo. Grande Otelo largou tudo no interior para viver no picadeiro. Oscarito nasceu e trabalhou no circo. Eles foram os grandes signos da Atlântida e da Vera Cruz e tiveram mais do que o pé dentro do circo, tiveram toda a vida.

Vamos comer o Piolim
Quando os modernistas viram o Piolim, na década de 1920, enxergaram a possibilidade de não reproduzir o modelo europeu. O que mais os impressionava era a capacidade de comunicação que o circo dele estabelecia com o público. Os modernistas queriam popularizar a arte, coisa que de fato não conseguiram a princípio, mas conseguiram mudar o paradigma da arte no Brasil. Enquanto Maiakovski, Meyerhold e os futuristas faziam uma leitura sobre o futurismo e o dadaísmo em que o circo influenciava por uma questão de ótica, no Brasil o que aconteceu foi diferente. Eles puderam enxergar mais o chão, o que era palpável. Não é à toa que Abapuru tem um pé tão grande. Ele é tão firmado na Terra Brasilis como o circo se firma no chão.
Acho que essa foi a influência mais acentuada que os modernistas extraíram do circo: a maneira como se estabelece a comunicação direta com o público, que estava ávido por isso e que não encontrava correspondência em um modelo elitizado europeu. Essa foi a grande contribuição que o circo e o Piolim deram de tabela para Oswald de Andrade. E esse foi um processo que chegou até a década de 1960, mas que, infelizmente, foi abafado pela ditadura militar.
Do modernismo até os anos de 1960, conseguíamos pensar e sonhar o país do futuro; até esse sonho ser ceifado pela ditadura, conseguíamos entender o sentido de brasilidade. Hoje tentamos recuperá-lo. Minha missão como artista é essa: fazer as pessoas entenderem que esse Brasil, hoje homogeneizado pela pata de uma cultura imperialista, é muito mais rico, temos muita diversidade, muitas possibilidades e muitas riquezas.

Em fevereiro, Hugo Possolo e os Parlapatões, Patifes e Paspalhões se apresentaram no projeto Circo Cine Teatro do Sesc Belenzinho.