Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Em pauta
Semana de Arte Moderna

Oitenta anos depois, escritores, antropólogos e críticos literários analisam a importância do evento que mudou o rumo das artes no país

Gerardo Mello Mourão é escritor e poeta

A memória literária superficial, na verdade uma espécie de memória curta, esponjosa, e por isso mesmo acadêmica, registra como ocorrência mais ou menos polêmica, em 1922, a Semana de Arte Moderna. Para alguns, o episódio agora celebrado em jubileu, neste ano palindrômico de 2002, foi o ovo de onde saiu a serpente de toda a escritura contemporânea deste país. Para outros, como o saudoso Franklin de Oliveira, testemunha insuspeita da nossa vida cultural, a Semana de Arte Moderna simplesmente não existiu.
Afinal, a Semana de 22 existiu ou não? Contaminado talvez por sua assídua convivência com Franklin Oliveira, o erudito Otto Maria Carpeaux disse que sabia, "apenas por ouvir dizer', da festa - ou da batalha desencadeada em São Paulo no ano do centenário da independência do Brasil, que teria sido o grito de uma outra independência - a das letras e das artes da pobre colônia cultural.
A octogenária vedete continua a ser questionada, o que é bom para ela. Melhor do que as peregrinas louvações de acadêmicos e professores que exibem a cultura miúda, de Segundo Caderno dos suplementos literários, com a crônica fútil, já mil vezes repetida, da promoção de 22 e de seus protagonistas. Parece, assim, que já não cabe indagar se aconteceu ou não a chamada Semana de Arte Moderna. Entre a decisão dialética e aristotélica pelo sim ou pelo não, parece mais correto contemplar o caso à luz da mágica ambigüidade platônica e concluir que, feitas as contas, a Semana de Arte Moderna aconteceu e não aconteceu.
Ela não foi a causa causarum da renovação das letras e das artes. Essa renovação teve momentos espermáticos antes e depois da corajosa reunião no Teatro Municipal de São Paulo, com apupos e aplausos - não tão ruidosos, é certo, como os da famosa apresentação do Hernani, de Victor Hugo, em Paris, mas com propósitos semelhantes: virar uma página já ensebada da literatura e das artes e partir para a aventura de uma reinauguração da beleza.
A Semana paulista vinha de mais longe: suas raízes brotam do chão do simbolismo de Cruz e Souza e mesmo do romantismo de Álvares de Azevedo, coisas assim. Seu grande crédito foi promover a mobilização corporativa dos escritores e artistas inquietos e inconformados diante do esgotamento a que a mediocridade acadêmica levara o espírito criador. É certo que essa mobilização pagou atributos ao oportunismo, misturando alho com bugalhos, até a pomposa entronização do acadêmico Graça Aranha como condottiere de uma guerrilha com milicianos de gênio, como Oswald de Andrade. Mas isso não importa muito: todos sabem que a história começou com a volta de Oswald de Paris, em 1912, trazendo debaixo do braço o manifesto futurista de Marinetti, pai e avô de todo o modernismo do século 20.
Genealogia é um negócio difícil, mesmo na linhagem das famílias mais conservadoras. Na linhagem da ópera literária é ainda mais complicado. Mas, de modo geral, pode-se dizer que os escritores têm seus ascendentes e seus descendentes. A poesia moderna da França data de Baudelaire, de suas Fleurs du Mal e de seu brado de guerra: "il faut être absolument moderne" (é preciso ser absolutamente moderno). Baudelaire, quem os catalogadores acadêmicos e os professores de literatura dizem que foi um parnasiano, assim como dizem que Mallarmé foi um simbolista, é certamente o fundador da linhagem moderna na Itália, como Kavafis na Grécia - o que não quer dizer que sejam ancestrais dos futuristas, dos dadaístas e de outros, matriculados em escolas literárias. Estes são, de modo geral, mais modernistas do que modernos.
A Semana de 22 foi uma abertura válida para o moderno. Não criou uma escola, apesar de algumas terem se gerado em seus quadros, com Oswald, Plínio Salgado, a Antropofagia, o Verdeamarelismo, a Anta e o Curupira. Mas também, é bom dizer nesta conversa - que é apenas uma conversa mesmo, e não um ensaio - que a Semana pode ter parido muitos escritores, mas não gerou as obras fundamentais da literatura brasileira. Talvez seu inventário não registre mais do que duas ou três obras significativas, notadamente alguns dos vários textos de Oswald e um romance de Plínio Salgado, O Estrangeiro. Os romances subseqüentes de Plínio, a serviço de um ideário político, não têm o vigor e a consistência de O Estrangeiro. Fora isso, a Semana, em vez de produzir obras modernas, passou a gerar modernistas - o que é outra coisa.
É certo que houve a figura do ativista prodigioso que foi Mário de Andrade. Mas como algumas figuras de nossa obra literária, Mário é maior do que sua própria obra. Deixou a Paulicéia Desvairada, título que é uma trouvaille feliz para um projeto de poema, no qual não se encontra nenhuma Paulicéia, nenhuma desvairada e nenhuma poesia moderna. Bem, há o Macunaíma que, sem chegar a ser um romance, é, sem dúvida, um belo recit - para usar a dislexia de André Gide. Isso não diminui a importância de Mário, o mais polivalente promotor de letras e artes deste país. Sua obra maior talvez seja a chuva de cartas derramadas com uma fúria epistolar sem precedentes. Um escritor paulista chegou a dizer que Mário construía deliberadamente sua própria fama, redigindo cartas incessantes a todo tipo de destinatário, desde o impúbere poeta municipal que lhe escrevia do Arraial de Macuco, pedindo uma palavra sobre seus duvidosos versos, até os escritores e outros que, sem ser escritores, eram donos da mídia publicitária, como o jornalista Prudente de Moraes Neto. Seja como for, não se pode falar da Semana sem lembrar o nome de Mário, apesar de sua irritante auto-suficiência e de suas deficiências culturais, que geraram conflitos com Oswald e o levaram a julgamentos injuriosos e incompetentes contra a música de Villa-Lobos, que até emprestara seu prestígio à Semana de 22. Mas tudo isso sai na urina diante da grandeza do apóstolo maior do nosso modernismo, que não chega a ser um grande escritor moderno, mas apenas um modernista. A linguagem de seus textos está hoje mais envelhecida que os versos da Prosopopéia. Mas essa é outra história.
É certo que a Semana de Arte Moderna não produziu um Graciliano Ramos, nem um José Lins do Rego, nem um Jorge de Lima, nem um Guimarães Rosa, nem um Gilberto Freyre - presença seminal ao Norte -, nem um Manuel Bandeira, nem um Carlos Drummond, em que pese o tardio aliciamento destes dois últimos por Mário de Andrade. Mas isso também não quer dizer grande coisa, pois as letras e as artes são como seu inventor, o sagrado Orfeu. Não guardamos nenhuma obra de Orfeu, guardamos o seu mito, que é mais importante do que a obra. Com obras ou sem obras, a Semana de Arte Moderna é um dos mitos da nossa aventura na selva das letras e das artes.

Fábio Lucas é professor, escritor, crítico literário e ex-presidente da União Brasileira de Escritores

Maria Eugênia Boaventura, ao organizar, com a sua costumeira competência, 22 por 22 - A Semana de Arte Moderna Vista pelos seus Contemporâneos (São Paulo, Edusp, 2000), de certa forma fechou o ciclo de estudos sobre o Movimento Modernista desencadeado simbolicamente a partir da Semana de Arte Moderna. Só que a palavra que domina a obra e os seus colaboradores é futurismo.
Foi o futuro da Semana que fixou a data - 1922 - e o nome, Movimento Modernista. O que se tinha na ocasião eram audácia e insegurança misturadas. A Semana de Arte Moderna, que nem sequer chegou a durar uma semana, não guarda relação de causa e efeito com o modernismo. Um e outro são frutos de uma insatisfação de época e, por isso mesmo, reúnem insatisfeitos de variada procedência. Foi uma "barafunda de estardalhaço" no dizer de Mário de Andrade, pois "ninguém se entendia".
Sabe-se que, ao longo da história, sempre há arte de adoração e acatamento assim como arte de repulsa. A arte "moderna" de 1922 se caracterizou por ser uma arte de repulsa. Tínhamos um ambiente saturado de produção literária acadêmica, de baixo teor informativo. Do mesmo modo, chegava-se a uma exaustão dos métodos políticos da classe dominante.
A supremacia da personalidade de Mário de Andrade naquele ambiente tumultuado vem de seu esforço de dar rumo ao caos de manifestações novidadeiras e definir pontos básicos da luta renovadora, acima das divergências estéticas e ideológicas. Tratava-se de dessacralizar o passado, num movimento de valorização do cotidiano. A radicalização do espírito de época levou muitos à visão utópica do futuro. Daí ao futurismo foi um passo. Na década de 1920, entre nós, vivia-se uma "boemia da vanguarda, o pior dos romantismos", no dizer de Blaise Cendrars, um dos participantes e estimuladores da renovação literária do Brasil.
Tínhamos um olho no passado, para garantir a fidelidade às raízes; outro na cena internacional, para não perder o espetáculo do progresso. Uma consciência profunda da entidade nacional? Longe disso. Às vezes essa consciência esteve nas mãos de adversários do modernismo: Monteiro Lobato, por exemplo.
Como quer que seja, 1922 simboliza, ainda hoje, entre nós, a aspiração de mudança. Ganhou-se uma liberdade de linguagem mais ágil e coloquial. A imprensa, o rádio, o telégrafo, a velocidade dos novos meios de comunicação contribuíram para degelar o absurdo formalismo em que tínhamos caído, expressão da burocracia plutocrática da época. O verso se liberta de imposições formais, a prosa se torna telegráfica, dá-se a fragmentação do discurso, a montagem e o imagismo cinematográfico penetram nas letras, impõe-se a hegemonia do coloquial e via-se a ruptura do distanciamento entre a linguagem oral e a escrita.
De qualquer forma, 1922 ritualiza a passagem da inteligência brasileira para a modernidade, fixa um marco histórico.

Celso Favaretto é doutor em filosofia e professor da Faculdade
de Educação da USP

A Semana de Arte Moderna de 1922 permanece um acontecimento marcante, rememorado a cada década, não só porque constituiu ruptura com a arte do passado mas por ter sido a primeira estratégia cultural moderna brasileira. Das comemorações, emblemáticas foram as de 1942 e 1972. Voltar a elas é um modo de tentar estabelecer algum parâmetro para pensar o sentido das comemorações deste ano. A de 1942 ficou marcada pela famosa conferência com que Mário de Andrade fixou a imagem mais consistente do modernismo: "o que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional".
A operação modernista articulou o imperativo moderno de renovação artística e o interesse de conhecimento do Brasil, ou seja, vanguarda e nacionalismo. Configurou uma espécie de projeto moderno brasileiro, cujo efeito foi imediato e cuja potência inovadora irradiou-se, seguramente, pelo menos até o final dos anos de 1960 e início dos de 1970, quando esses princípios se realizaram na criação e na crítica. Entretanto, considerando que os modernistas não manifestaram empenho político-social, Mário disse que eles não deveriam "servir de exemplo a ninguém", mas que poderiam "servir de lição". E essa lição permaneceu viva por muito tempo, embora seja questionável que ela ainda destile seus efeitos.
Em 1972, a comemoração dos cinqüenta anos de modernismo foi muito especial. Com a inviabilização, ou o fracasso, dos projetos culturais e políticos radicalizantes dos anos de 1960 - do rico experimentalismo artístico que rearticulou temas e processos modernistas, principalmente a relação entre experimentação artística e nacionalismo, com o alinhamento institucional do país às diretrizes do capitalismo avançado e, portanto, à cultura de mercado, cuja contrapartida foi o surgimento das inúmeras experiências alternativas e marginais -, o modernismo foi reinterpretado sob o signo da necessidade de luta pela independência cultural. A estratégia crítica do momento foi justificar a importância da Semana de 22 como um exemplo de atuação a ser adequado à situação histórica do país, às limitações institucionais e às aberturas produzidas pela atividade artístico-cultural dos anos anteriores. A vertente oswaldiana, na criação e na crítica, já tinha mostrado sua propriedade para repensar o projeto modernista. Em 1972, ainda havia um campo aberto de possibilidades, explicitado com brilho e vigor pela atividade tropicalista, que repropôs e ultrapassou as proposições modernistas com a reatualização da simbólica antropofágica.
Trinta anos depois, apesar de as comemorações não terem sido esquecidas nas décadas intermediárias, ensaia-se uma comemoração com outros horizontes, longe da positividade atribuída anteriormente às promessas e apostas modernas, especialmente ao imperativo de atualização, supostos realizados na atividade artística e na reflexão estética, aí se incluindo a questão espinhosa da significação social dessas práticas. O modernismo não mais ressurge como lição: ele é um passado, ruína de uma história ainda ativa. Se a revista Visão, de fevereiro de 1972, em ampla e significativa matéria sobre o modernismo podia reunir artigos e depoimentos de intelectuais de renome sob a rubrica "luta pela independência", hoje tal enfoque é simplesmente descabido.
De lá para cá o país ficou crítica e criativamente atualizado, embora seja necessário fazer-se a devida avaliação desse processo de modernização. De qualquer modo, o moderno e o novo são operantes, não necessitando de qualquer vanguarda para ativá-los. Tudo ficou mais rápido em todo lugar, tudo é contemporâneo. Sem ilusões sobre o moderno, trabalha-se crítica e criativamente efetivando não os ideais da modernidade mas as questões imanentes colocadas pelas obras, pelos trabalhos, pelos problemas pragmaticamente colocados pela realidade. Mas sente-se que alguma coisa muito importante se perdeu, algo como aquela força primitiva de resistência à colonização e a capacidade de devorar, propugnadas pela antropofagia oswaldiana, reatualizadas pelo tropicalismo. Falta-nos um princípio que force a explicitação e a exploração do mal-estar na cultura, evidenciando os conflitos e as tensões provocadas pela incorporação da alteridade sob a forma de simples justaposição de influências e valores das outras culturas à experiência brasileira. Neste sentido, o que nos serve de lição são as propostas e as ações de ruptura dos projetos artístico-culturais da segunda metade da década de 1960, e não tanto as dos anos 1920.


Elizabeth Travassos é antropóloga e professora do Instituto Villa-Lobos da Universidade do Rio de Janeiro - Uni-Rio

Em fevereiro de 1922, o Teatro Municipal de São Paulo abrigou a Semana de Arte Moderna, que entraria para a história da cultura como o ano zero do modernismo brasileiro. Concertos antecedidos por conferências e leituras de poesia, pinturas e esculturas expostas no saguão foram saudados com aplausos, vaias e risos.
As conferências do escritor Graça Aranha e do jornalista Menotti del Picchia falavam de "poesia liberta", "música extravagante" e "bolchevistas da estética". Escrevendo para revistas e jornais, os participantes da Semana colocaram em circulação a oposição sistemática entre velho (o século 19, o sentimentalismo romântico, a poesia parnasiana, a Europa decadente) e novo (o século 20, a sensibilidade moderna, a poesia moderna, o Novo Mundo). Também ajudaram a popularizar as palavras futurismo e vanguarda. Suas carreiras foram marcadas pelo evento, mesmo que algumas tenham tomado um rumo imprevisível naquele momento. Villa-Lobos, quinze anos depois, iria reger uma ambiciosa política nacional de educação artística. Graça Aranha, que chegara de Paris pouco antes da Semana disposto a arregimentar artistas em torno de uma estética moderna, viu-se sobrepujado pelos acontecimentos. A inclinação primitivista dos modernistas nos anos de 1920 não poupou seu discurso filosófico grave, que soava fin-de-siècle para os mais jovens, nem sua ambição de liderança do movimento.
Em fevereiro deste ano, o Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro abriu o Panorama de Arte Brasileira, que promove um reconhecimento de terreno, um mapa da situação atual da produção plástica - não tem a pretensão de sacudir o meio intelectual. No Jornal do Brasil de 6 de fevereiro, uma matéria extensa acolhe a exposição com certo enfado e ceticismo, dando voz, provavelmente, aos sentimentos de parte dos visitantes da mostra (refiro-me ao artigo "Perdidos no espaço", de Joaquim Ferreira dos Santos). Vídeo, performance e instalações, coisas tão distantes das tradicionais telas, esculturas, desenhos e maquetes exibidos há oitenta anos na Semana de Arte Moderna, não causam mais assombro. Podem não chocar, mas os espectadores não têm as certezas daquela época, no aplauso ou na condenação.
Nada do que ocorre na mostra do MAM teria sido possível sem o modernismo, a começar pela existência de um museu dedicado à arte moderna. No balanço dos oitenta anos decorridos desde a Semana contabilizam-se a institucionalização do cinema e do vídeo como artes, a explosão do objeto artístico, os novos usos do corpo em atuações e as intervenções na sensibilidade rotineira do espectador. Todos frutos do "direito à pesquisa estética", que Mário de Andrade reconheceu como conquista da Semana.
O jornalista frustra-se, hoje, com a falta de novidade e reclama, ao mesmo tempo, da obscuridade de sentido reinante no Panorama de Arte. Mas essas reações fazem parte da herança do modernismo. O prestígio do novo - entendido como aquilo que nega o que o antecede, ultrapassa um limite, vai um passo à frente - foi abalado pela própria mania do novo, um "paradoxo do modernismo", segundo Antoine Compagnon. A renúncia à transparência de sentido em benefício do trabalho concentrado sobre os próprios meios de expressão desestabilizou as relações entre artistas e público. Vaias e outros indícios de hostilidade deixaram de prenunciar o fracasso da obra e começaram a contar como atestados de seu caráter vanguardista.
Contudo, o estado de espírito contemporâneo difere do de 1922. Artistas e pelo menos parte do público estavam em alerta na ocasião da Semana, propensos a identificar os ataques à tradição artística. Conta-se que houve burburinho quando Villa-Lobos pisou o palco calçando chinelos (tinha o pé machucado). O evento estava sobrecarregado de sentido. Desde então, as alternativas de expressão multiplicaram-se para os artistas e o problema do sentido, revirado de todos os lados, permanece em discussão. Se a dificuldade de atinar com os significados da produção contemporânea é herança da Semana, a atitude blasé diante da "tradição de ruptura" é um fruto indireto do modernismo.

Newton Cunha é jornalista e técnico da Gerência de Estudos e Desenvolvimento do Sesc

Assim como a literatura brasileira aproxima-se mais da configuração de um arquipélago do que de um só continente (como a entendeu Viana Moog), o nosso modernismo não se caracterizou pela uniformidade. Ao contrário, comportou distinções formais e intencionais ao longo das gerações (de 20 a 50), ao mesmo tempo que transitou por influências contraditórias entre si. Vejamos como essas marcas se manifestam apenas no âmbito da literatura, pois o espaço disponível é curto em demasia.
Os revolucionários do Sudeste, os da primeira leva, promoveram sobretudo uma quebra radical com o passado romântico-parnasiano-simbolista, de origem européia, baseando-se, entretanto, em princípios das vanguardas igualmente européias (do futurismo ao expressionismo). Por esse motivo, a bandeira do nacionalismo continuava a carregar cores estrangeiras, ainda que renovadas. Como percebeu Cassiano Ricardo (A Invenção de Orfeu), a Semana de 22 teimava em descobrir o Brasil na Europa. Se buscaram popularizar as linguagens artísticas, absorver os "erros milionários" do povo e sondar com rigor o folclore, acabaram por obter resultados altamente elitizados, em decorrência de valores muito mais racionalizantes e experimentais do que sensíveis. Daí as primeiras diferenças com os modernistas nordestinos, contidos, documentais e realistas, os quais poderíamos incluir numa segunda geração, a da década de 30. Já por não serem tão semelhantes, escreveu José Lins do Rego, em 1935: "Para nós do Recife, essa Semana de Arte Moderna não existiu, simplesmente porque, chegando da Europa, Gilberto Freyre nos advertia da fraqueza e do postiço do movimento... a agitação modernista é um desfrute que o gênio de Oswald de Andrade inventou para divertir seus ócios de milionário". Em 1942, a conferência de avaliação de Mário foi dura, sem deixar de ser comovente: "Pelo seu caráter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro ao extremo, pelo seu internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo embrutecido, pela sua gratuidade antipopular, pelo seu dogmatismo prepotente, era uma aristocracia do espírito".
Observando-se o movimento de outros postos, percebe-se que à fase dos romances sociais e regionalistas (José Américo, Lins do Rego, Graciliano), seguiu-se posteriormente algo bem distinto, em que a psicologia interior e individualista das personagens afirmou-se como valor típico da vida metropolitana e urbano-mercantil (Cyro dos Anjos, Lúcio Cardoso, Clarice Lispector, por exemplo). Na poesia, sobretudo com a "geração de 45", afastou-se do experimentalismo juvenil, retornando a influências históricas consagradas. A esse respeito, disse Domingos Carvalho da Silva: "... ser da geração de 45 é isso, exatamente: colocar acima de regionalismos, academismos, versilibrismos, modernismos e outros preconceitos peremptos o clima de objetividade artística, o espírito de pesquisa estética sem desrespeito por nenhuma solução de amplitude literária" (Eros e Orfeu).
E se nos voltarmos para o exame ideológico de seus integrantes, o modernismo ocupou, simultaneamente, todas as posições políticas do período, reafirmando, também nesse aspecto, a sua diversidade. Pôde estender-se de uma antropofagia em parte comunista e em parte anárquica de Oswald, passar pela "social-democracia" de Mário, pelo comunismo partidário de Jorge Amado, pelo getulismo bem comportado de Carlos Drummond e chegar ao fascismo verde-amarelo de Plínio Salgado e de Menotti.
Por essas e outras razões, ambigüidade e pletora, palavras que poderiam soar exageradamente parnasianas, aplicam-se perfeitamente aos nossos sucessivos modernismos.