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Ficção Inédita
Os casulos

Eustáquio Gomes

Crédito: Marcos Garuti

1

À noite, no seu quartinho de pensão, Nico sentou-se à escrivaninha diante do espelho para escrever uma carta de amor. Tinha a firme intenção de declarar-se, mas deu tantas voltas que, no fim, a intenção se dissipou em confidências inócuas e na descrição de um sonho. No objeto de sua paixão propriamente não tocava. Esperava que Letícia soubesse ler nas entrelinhas e aduzisse o resto.

2

A essência da carta era um sonho. Não explicava quando o tinha sonhado, se antes ou depois do passeio de bicicleta. Na verdade isso importava pouco, pois tudo não passava do produto de sua fantasia e de um estratagema para impressioná-la. Assim, nesse sonho inventado ele estava em companhia de Letícia na cidade de Praga. Passeavam pela cidade. Num pequeno bosque à margem do Graben estalava o canto das cigarras. Centenas, talvez milhares de cigarras. Caminhavam por entre choupos e cedros velhos, sob intenso zumbido metálico, como se uma velha orquestra medieval afinasse ali o seu naipe de trombetinhas rachadas. Mais adiante pararam para contemplar um tronco nodoso coalhado de casulos translúcidos. Apresentavam patas, cabeças e barbatanas, essas roupagens transparentes e belas onde antes haviam estado as cigarras em trabalho de metamorfose. As cigarras tinham migrado para as altas ramagens e cantavam, mas sua pele enrijecida continuava aderida aos nódulos do tronco como corpos libertos de suas almas (ou almas cujos corpos houvessem batido em retirada). No sonho, Nico estava explicando a Letícia essa delicada idéia quando um homem se deslocou entre as árvores. Alto e magro, usava chapéu e tinha orelhas de abano. Recolhia casulos do tronco de uma outra árvore. Quando se aproximaram dele para observá-lo melhor, o homem disse: "Sou Franz Kafka e estou recolhendo casulos para minha noiva de Berlim". "Quem é ela?", perguntou Nico. Ao que Kafka respondeu: "Felice Bauer".

3

O ardil de Nico era simples. Na manhã seguinte foi ao Bosque dos Italianos, recolheu alguns casulos e levou-os para Letícia numa caixa de cigarros vazia. Seu plano era revelar o conteúdo da caixa somente depois que ela lesse a carta, para tirar proveito de sua matéria onírica e assim criar um clima de emulação. Ele seria Franz, ela Felice. Mas perturbou-se tanto no momento de começar a falar que, incapaz de controlar os movimentos das mãos, viu-se espalhando os casulos todos sobre a mesa da cozinha onde ela apoiava o braço direito.
Viu-a recuar o braço horrorizada e contrair o rosto numa expressão de nojo:
- O que é isso? Insetos secos?
Rindo nervosamente, Nico ergueu um dos casulos entre o polegar e o indicador.
- São só uns casulos de cigarra. Trouxe para você. Não são bonitos?
Ela não achava. Tinha pavor de insetos. E aqueles estavam mortos, eram como cadáveres mumificados.

4

Sem esperança de fazê-la gostar dos casulos, Nico estendeu-lhe a carta que trazia dobrada no bolso. Ela o encarou desconfiada, apanhou a carta e disse:
- Meu poeta anda cheio de surpresas, hein.
Leu a carta sem fazer nenhum comentário. Mas os movimentos dos músculos de seu rosto prestavam-se a uma leitura tão transparente quanto os casulos. Não se fixavam. Ora o lábio inferior se mantinha abaixo da linha dos dentes, num sinal de perplexidade, ora se colava ao lábio superior ou então se abria num sorriso lisonjeado. Era como se intercalasse a leitura com expressões que avivavam o receio ou a expectativa de Nico, mesmo porque, sentado à frente dela, ele não podia saber em que ponto ela estava. Também às vezes sacudia os ombros ou arqueava as sobrancelhas como se dissesse: "ah, sim?", "ora veja!", "é mesmo?", "não diga!".
Terminou de ler a carta e dobrou-a. Ficou um tempo imóvel na cadeira, olhando para ele em silêncio. Incomodado, Nico se pôs a juntar os casulos espalhados sobre o tampo da mesa. Agia como alguém que recolhesse uma mercadoria recusada pelo cliente, depois de um dia estafante sob o sol forte. Receava agora que ela não tivesse entendido o bastante da carta para dizer o que ele esperava que dissesse. Mas o que é que ele esperava? Letícia não pertencia àquele mundo que ele havia engendrado para seu uso pessoal, como alguém que constrói uma casa no topo de uma árvore e imagina que todos desejariam viver no topo de árvores.

5

Então, de repente, ela quis saber: se era mesmo verdade que ele nunca havia beijado mulher alguma. Nico pensou um pouco e respondeu que, não sendo aquilo propriamente uma mentira, era apenas meia verdade. Letícia sabia alguma coisa sobre Rafaela, mas nada quanto a beijos.
- Ela estava usando aparelho ortodôntico - explicou Nico - e dizia que não queria que nosso primeiro beijo tivesse gosto de metal.
- Não acredito nisso.
- Pois é a pura verdade.
- Jura?
- Juro.
Seus olhos se apertaram irônicos, a voz se encheu de farpas:
- É porque ela manca de uma perna, não é?

6

Nico empalideceu. Ela não precisava ter lembrado a mancadura. Era como se quisesse torná-lo indigno do amor de alguém que andasse no prumo. Como se o colocasse no seu lugar. Como se também ele fosse manco e, por uma questão de decência, devesse se entender lá com os mancos.
- Pensando bem - disse ela mudando de tom -, acho que não podia mesmo ser diferente. Afinal de contas, você está há apenas seis meses no mundo...
- No mundo profano, você diz - respondeu ele, magoado. - Por que está me tratando como um recém-nascido?
Ela riu. Retirou um casulo da caixinha de cigarros, já sem qualquer sombra de horror ou asco, e se pôs a examiná-lo contra a luz. Nico compreendeu que seu jogo era mais complexo do que parecia a princípio. Teve medo da própria inexperiência.
Ela mordia um lábio.
- Claro, o seminário também é uma espécie de mundo, não é mesmo. Mas não como aqui. Como é que vocês agüentavam?
- Como assim?
- Quero dizer, vocês já eram bem crescidinhos. Como é que faziam?

7

Nico achou a pergunta vulgar. Aliás, essa mesma pergunta já lhe tinha sido feita antes, em outra circunstância, por um negro que freqüentava o Zepelim e vinha tentando entrar na sua intimidade. Uma noite, ao deixar o bar, deu com o negro parado na esquina, esperando por ele. O negro o seguiu rua abaixo buscando reatar uma conversa interrompida um dia antes, no bar, em que se falara justamente disso: da abstinência sexual no claustro. Caminhando ao lado do negro na calçada deserta, Nico foi levado a admitir, com a confiança viril que se deve aos homens, que onanismo era sim senhor um preceito bíblico muito apreciado no claustro. "Até mesmo entre os padres?", perguntou o negro. "Ah, com certeza também eles...", disse Nico. "Ah, ah, gostei de ouvir essa", disse o negro, que sibilou a seguir: "Quer dizer que você também cumpria a sua cota de prazer solitário?". Ao que Nico respondeu: "É verdade, não havia outro jeito". O negro tornou a rir para depois ficar calado um instante, amaciar a voz e disparar a pergunta inesperada: se Nico já havia cumprido a cota dele nesse dia. Nico, alarmado, respondeu que nem tinha pensado nisso, mas então o homem já o agarrava pelas mãos, ajoelhava-se diante dele e bloqueava-lhe a passagem. Suplicava: "Deixa a cota por minha conta. Eu faço a cota por você. Ah, por favor!". Nico se lembrava de ter-se livrado dele com dois ou três pontapés, mas nunca soube ao certo onde os tinha acertado. Talvez no rosto. E não uma vez só. Apenas, ao chegar em casa, notou que o bico de seu tênis tinha se transformado numa repugnante placa de sangue. Ainda fresco.

8

Agora era Letícia quem repetia a pergunta ignóbil: como é que ele se virava no claustro. Respondeu o óbvio: "Dava-se um jeito". E imaginou o que viria depois. Ela pareceu ficar satisfeita com a resposta, que nem sequer era uma explicação. Olhava para ele de um modo enternecido. Depois correu-lhe a mão pelo rosto e disse num quase murmúrio:
- Coitadinho de você, Nico Pereira!
E baixando ainda mais o tom de voz, adoçando-a, modulando-a como fizera o negro naquela noite de humilhação:
- Pois vou mostrar a você como é um beijo de verdade.
E tomando-lhe o rosto entre as mãos, beijou Nico na boca, a princípio suavemente, depois com força e até com violência. Meteu-lhe a língua entre os dentes, correu-lhe o céu da boca como uma enguia desesperada.
Nico demorou um pouco para se recuperar do espanto e poder corresponder. Quando achou que estava preparado, ela soltou-se dele, rindo, e correu para o quintal. Ele seguiu atrás e conseguiu apanhá-la, aprisionando-a pelos quadris. Manteve-a assim junto dele, ofegante, como um animal prestes a ser abatido. Mas ela então girou o corpo, muito feminina, e colou o dedo indicador em seus lábios, como se os lacrasse. Sussurrou:
- Devagar com o andor, coração.

Eustáquio Gomes é escritor e autor de A febre amorosa
(Geração Editorial), entre outros. O texto acima é um fragmento da novela inédita Porcos e Javalis