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Ficção Inédita
Os casulos
Eustáquio Gomes
1 À noite, no seu quartinho de pensão, Nico sentou-se à escrivaninha diante do espelho para escrever uma carta de amor. Tinha a firme intenção de declarar-se, mas deu tantas voltas que, no fim, a intenção se dissipou em confidências inócuas e na descrição de um sonho. No objeto de sua paixão propriamente não tocava. Esperava que Letícia soubesse ler nas entrelinhas e aduzisse o resto. 2 A essência da carta era um sonho. Não explicava quando o tinha sonhado, se antes ou depois do passeio de bicicleta. Na verdade isso importava pouco, pois tudo não passava do produto de sua fantasia e de um estratagema para impressioná-la. Assim, nesse sonho inventado ele estava em companhia de Letícia na cidade de Praga. Passeavam pela cidade. Num pequeno bosque à margem do Graben estalava o canto das cigarras. Centenas, talvez milhares de cigarras. Caminhavam por entre choupos e cedros velhos, sob intenso zumbido metálico, como se uma velha orquestra medieval afinasse ali o seu naipe de trombetinhas rachadas. Mais adiante pararam para contemplar um tronco nodoso coalhado de casulos translúcidos. Apresentavam patas, cabeças e barbatanas, essas roupagens transparentes e belas onde antes haviam estado as cigarras em trabalho de metamorfose. As cigarras tinham migrado para as altas ramagens e cantavam, mas sua pele enrijecida continuava aderida aos nódulos do tronco como corpos libertos de suas almas (ou almas cujos corpos houvessem batido em retirada). No sonho, Nico estava explicando a Letícia essa delicada idéia quando um homem se deslocou entre as árvores. Alto e magro, usava chapéu e tinha orelhas de abano. Recolhia casulos do tronco de uma outra árvore. Quando se aproximaram dele para observá-lo melhor, o homem disse: "Sou Franz Kafka e estou recolhendo casulos para minha noiva de Berlim". "Quem é ela?", perguntou Nico. Ao que Kafka respondeu: "Felice Bauer". 3 O ardil de Nico era simples. Na manhã seguinte foi ao Bosque dos Italianos, recolheu alguns casulos e levou-os para Letícia numa caixa de cigarros vazia. Seu plano era revelar o conteúdo da caixa somente depois que ela lesse a carta, para tirar proveito de sua matéria onírica e assim criar um clima de emulação. Ele seria Franz, ela Felice. Mas perturbou-se tanto no momento de começar a falar que, incapaz de controlar os movimentos das mãos, viu-se espalhando os casulos todos sobre a mesa da cozinha onde ela apoiava o braço direito. 4 Sem esperança de fazê-la gostar dos casulos, Nico estendeu-lhe a carta que trazia dobrada no bolso. Ela o encarou desconfiada, apanhou a carta e disse: 5 Então, de repente, ela quis saber: se era mesmo verdade que ele nunca havia beijado mulher alguma. Nico pensou um pouco e respondeu que, não sendo aquilo propriamente uma mentira, era apenas meia verdade. Letícia sabia alguma coisa sobre Rafaela, mas nada quanto a beijos. 6 Nico empalideceu. Ela não precisava ter lembrado a mancadura. Era como se quisesse torná-lo indigno do amor de alguém que andasse no prumo. Como se o colocasse no seu lugar. Como se também ele fosse manco e, por uma questão de decência, devesse se entender lá com os mancos. 7 Nico achou a pergunta vulgar. Aliás, essa mesma pergunta já lhe tinha sido feita antes, em outra circunstância, por um negro que freqüentava o Zepelim e vinha tentando entrar na sua intimidade. Uma noite, ao deixar o bar, deu com o negro parado na esquina, esperando por ele. O negro o seguiu rua abaixo buscando reatar uma conversa interrompida um dia antes, no bar, em que se falara justamente disso: da abstinência sexual no claustro. Caminhando ao lado do negro na calçada deserta, Nico foi levado a admitir, com a confiança viril que se deve aos homens, que onanismo era sim senhor um preceito bíblico muito apreciado no claustro. "Até mesmo entre os padres?", perguntou o negro. "Ah, com certeza também eles...", disse Nico. "Ah, ah, gostei de ouvir essa", disse o negro, que sibilou a seguir: "Quer dizer que você também cumpria a sua cota de prazer solitário?". Ao que Nico respondeu: "É verdade, não havia outro jeito". O negro tornou a rir para depois ficar calado um instante, amaciar a voz e disparar a pergunta inesperada: se Nico já havia cumprido a cota dele nesse dia. Nico, alarmado, respondeu que nem tinha pensado nisso, mas então o homem já o agarrava pelas mãos, ajoelhava-se diante dele e bloqueava-lhe a passagem. Suplicava: "Deixa a cota por minha conta. Eu faço a cota por você. Ah, por favor!". Nico se lembrava de ter-se livrado dele com dois ou três pontapés, mas nunca soube ao certo onde os tinha acertado. Talvez no rosto. E não uma vez só. Apenas, ao chegar em casa, notou que o bico de seu tênis tinha se transformado numa repugnante placa de sangue. Ainda fresco. 8 Agora era Letícia quem repetia a pergunta ignóbil: como é que ele se virava no claustro. Respondeu o óbvio: "Dava-se um jeito". E imaginou o que viria depois. Ela pareceu ficar satisfeita com a resposta, que nem sequer era uma explicação. Olhava para ele de um modo enternecido. Depois correu-lhe a mão pelo rosto e disse num quase murmúrio: Eustáquio Gomes é escritor e autor de A febre amorosa
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