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A solidão solidária do poeta

por Mário Chamie

Sou poeta, faço poemas. O que já é, em si, uma aventura temerária se considerarmos o fato de que a poesia tem perdido visibilidade e presença no horizonte diário dos interesses comuns. No Brasil e fora do Brasil, a poesia parece ausentar-se, cada vez mais, da mídia e de seus processos de comunicação. Certa vez, perguntaram-me se eu não me sentia incomodado por não ser uma pessoa midiática. Sem saber muito bem o que falar, respondi que, àquela altura, eu preferia ser mediúnico. Descontada a respeitosa ironia, minha resposta estava dando este recado: o ofício poético, para mim, é o sacerdócio da solidão. Comparar o reconhecimento público de um poeta com o reconhecimento de um pop star, alimentado pelo poder de padronização dos veículos de massa, é puro equívoco. Embora emblema de liberdade criadora para os outros, o poeta é ícone de si mesmo. Os ícones midiáticos, ao contrário, confundem-se com as imagens digestivas e consumíveis de que a telenovela ou a literatura de auto-ajuda daria bons e visíveis exemplos.

Pessoa
Penso que cabe ao poeta assumir, plenamente, a solidão de seu ato solidário de escrever poemas. Não só assumir como acreditar na força premonitória e eficiência futura de seu trabalho. Acreditar na qualidade daquilo que se propôs a fazer. Sempre que abordo esse assunto, me vem à lembrança uma conversa que tive, em 1987, na cidade do Porto, em Portugal, com o escritor Antônio Quadros, autor, entre outras obras, de uma original biografia de Fernando Pessoa. Quadros, hoje falecido, era filho de Antônio Ferro, que, por sua vez, fora amigo íntimo e companheiro de Pessoa nas lutas literárias da revista Orpheu. Como se sabe, Pessoa publicou, em vida, apenas o pequeno livro de poemas Mensagem, um ano antes de sua morte. Quadros me relatou uma conversa que seu pai tivera com o grande poeta. Nessa conversa, Ferro interpelou Pessoa nos seguintes termos: "Fernando, com o teu livro Mensagem, perdestes um concurso literário. És um anônimo. Não te incomoda esse anonimato? Afinal, aqueles teus poemas que não foram publicados na revista Orpheu, ou em algum jornal aqui e acolá, dormem no fundo dos teus baús. O que me dizes desse teu destino apagado?". Fernando Pessoa, entre um gole e outro de clarete, respondeu ao amigo: "Ó, Ferro, agrada-me este anonimato, sabendo-me gênio". Com tal resposta, Fernando Pessoa demonstrara o quanto sabia de si e do alcance maior de sua incomparável e imprescindível poesia. É verdade que o poeta teve a sorte de contar com os seus amigos e com a preservação de seus baús. Seja como for, para bons entendedores, a sua resposta a Ferro é um recado de tranqüila e absoluta clareza, em sua profética significação.

Linguagem construída
O caso de Fernando Pessoa, para mim, é exemplar. Assim como foi exemplar o caso de Paul Valéry, autor do famoso poema universal, "Cemitério Marinho", considerado, ao mesmo tempo, hermético e profundo. Uma vez, argüido sobre a dificuldade de leitura de sua poesia, Valéry teria dito o seguinte: "Eu prefiro ser lido mil vezes por um do que uma vez por mil". Esse "um" que lê mil vezes, na verdade, tem mil faces. Certamente, ele é fonte incessante de disseminação, propagação e valorização da linguagem única que os poetas constroem para que possamos ver e entender melhor as coisas e o mundo. Esse "um" se identifica com o leitor raro e diferenciado de poesia, seja ele crítico literário, historiador, professor ou estudioso de literatura. Ao poeta compete, portanto, criar a originalidade expressiva de uma fala capaz de, independentemente de consagração imediata ou reconhecimento popular, contribuir para a percepção estética da realidade e o enriquecimento da comunicação humana. Se me perguntarem se tomo os exemplos de Fernando Pessoa e Paul Valéry por parâmetros de postura e conduta, direi que sim. Sem concessões de conveniência ou de hora marcada, a obra deles, como a de qualquer outro poeta fiel ao seu verdadeiro ofício, integra o organismo vivo da poesia em qualquer lugar e tempo. Não faz muito, em uma longa entrevista que concedi ao suplemento Cultura, do jornal O Estado de S. Paulo, fui apresentado pelo entrevistador como "uma das mais polêmicas (e influentes) personalidades da Literatura Brasileira, na segunda metade do século passado". Dado que, graças a Deus, continuo vivo e produtivo, desfruto do privilégio de me ver espectador dos efeitos e das influências do meu passado presente. Devo isso aos poucos leitores dos meus catorze livros de poemas e dos meus outros dez de ensaios. A leitura sucessiva que esses raros leitores têm feito dos meus livros, desde minha estréia em 1955, parece provar o seguinte: certas popularidades midiáticas são o xarope passageiro do instante, enquanto a boa poesia é o néctar renovado de uma linguagem contínua e definitiva que fez, faz e sempre fará história.