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‘Prestar pras pessoas o serviço público de abraçá-las nesse momento de incerteza’

Se havia uma parcela da população que defendia bravamente que a internet tinha como única função afastar ou atrapalhar as relações sociais “reais”, talvez os argumentos que antes pareciam irrefutáveis agora estejam sendo repensados. E um vírus, um organismo microscópico, é que tem nos feito pensar sobre essa e muitas outras questões da humanidade.

Consciência e bom senso são essenciais, principalmente porque somos expostos a uma quantidade massiva de informações a cada minuto. O excesso do uso, sem critérios, pode acarretar superficialidades às relações humanas no universo virtual, e também na busca, absorção e questionamento dos conteúdos ali disponíveis. Conectar-se com as pessoas de forma saudável e buscar conhecimento são maneiras de passar pela enfermidade do mundo sem perder de vista o afeto e o rumo.


Mauricio Pereira/Foto: Rui Mendes

Para o músico Maurício Pereira, a internet é, sim, uma forma de estar mais perto das pessoas, apesar de alguns fatores. “A internet bota a gente muito online, vicia, tem muito estímulo, muita informação, muito tempo sozinho na frente de alguma tela, entretido, hipnotizado. Mas ela também faz o meio campo pra novas relações, ela mata a saudade, cria novos grupos, leva a gente pra lugares distantes”, diz.

Maurício fez o primeiro show brasileiro transmitido ao vivo na internet, em 1996. Foi um “Especial de Natal”, realizado no Centro Cultural São Paulo, na capital paulista. A transmissão aconteceu com a ajuda da USP, dois computadores 486 e duas linhas telefônicas, e a ideia técnica foi pensada por um adolescente de 14 anos, chamado João Ramirez.

E, desde o início da popularização da internet no Brasil, o artista tem usado as ferramentas online a favor de sua arte. Como conta o músico, os tempos eram outros e os anos 1990 foram um tanto difíceis para a cena musical independente paulistana.

Os anos 1990 foram de muita asfixia - comercial - pra a cena independente paulistana, no meu modo de ver, tinha poucas casas, não tocava no rádio. Eu escrevo num certo ‘dialeto’ paulistano, não era nem pop, nem MPB, SP não estava na moda como ‘tá hoje. Eu já me intitulava um ‘cantautor’, e foi só agora que essa palavra entrou no dicionário aqui no Brasil. Então, os anos 1990 foram dificílimos pra mim. Fui buscar soluções. Corri atrás de rádios livres, piratas, independentes, públicas, universitárias. Aí eu descobri a internet”, conta.

Em 1995, ele já tinha um site, vendia discos por e-mail e respondia todos os e-mails que recebia. “Sempre trabalhei muito próximo do público, sempre conversei com ele. Então quando pintou a ideia de fazer o show na internet, não pensei duas vezes: era um jeito de sobreviver, de aparecer, de experimentar uma mídia nova. E de continuar próximo do público, como eu sempre estive. A importância, imagino, foi que isso chamou a atenção de muitos artistas pro fato de que a internet era uma possibilidade nova e viável pra veicular o trabalho, especialmente os trabalhos independentes, com dificuldade de chegar à grande mídia”, conta.

Atualmente, as possibilidades virtuais para os artistas são muitas, assim como pontos que precisam ser driblados e muito trabalho a ser feito, como observa o compositor. “Pra arte [a internet] é um ‘ferramentaço’: é simples, relativamente barata, ajuda a fazer a produção e a divulgação, faz os artistas pensarem no todo do trabalho, serem mais multitarefas. Mas essa facilidade de produzir e divulgar gerou um excesso de oferta. Então, do mesmo jeito que tudo ficou mais fácil técnica e financeiramente, também ficou muito mais difícil aparecer nesse oceano de trabalhos. E de se remunerar também. É a velha lei da oferta e da procura, e a oferta aumentou muitíssimo”, diz.

Porém, Maurício lembra que, mesmo com todas as vantagens, o que é acessado pela internet não é capaz de substituir todo o pacote que o presencial proporciona. “Eu acredito que a coisa mais poderosa que a arte pode oferecer rola quando a gente ‘tá presente. Mais forte ainda quando a gente ‘tá muito próximo. Quanto mais perto, mais vivo, mais energia. Vale pra ver uma estátua, pra ver um show. Então, pra mim, a coisa realmente mágica da profissão acontece ao vivo, em especial no pequeno show, com as pessoas (e a emoção delas) muito perto, as imperfeições, as nuances, a respiração. A humanidade. É difícil a cibernética concorrer com isso…”, conclui.
 


Reprodução Facebook/Mauricio Pereira
 

Confinamento

Diante da não possibilidade atual de fazer shows ou sair de casa para assistir a um espetáculo, o músico destaca a importância da mobilização de artistas nas redes sociais. Em tempos de pouco dinheiro e confinamento, como afirma ele, a tecnologia pode fazer a arte chegar mais perto do público, de um jeito rápido, fácil e barato. “Pros artistas, é um jeito de exercitar linguagens, de não sumir da frente do público, achar novos formatos, conversar com o público de maneiras diferentes. Crises assustam, mas estimulam, né?”, diz.

E observa ainda que, em momentos de crise, não só a música, mas a arte em geral segue exercendo sua função. “Em tempos de crise, de medo, de comoção, de barbárie, a arte tem sempre um papel importante, pra questionar, pra entreter. Prestar pras pessoas o serviço público de abraçá-las nesse momento de incerteza, de solidão, de ética ameaçada. Resistir, de mil maneiras: pelo afeto, pela contundência, pelo respiro (eu sei que esse momento é excepcional, mas na minha cabeça o mundo tá sempre em crise, então que isso que eu falei meio que vale sempre)”.